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quinta-feira, 30 de março de 2023

Memórias do Menino de Papel - Da série Histórias que Mamãe Contava

/   Sheila Sacks  /


O ano de 1937 já não era uma época boa para viver em Berlim. No escritório de paredes forradas de madeira, onde tantas vezes acolheu colegas juristas, Joseph Klein olha a estante coberta de livros e o desenho infantil meio escondido no alto do móvel. O quadrinho permanecia com a mesma moldura de paspatur azul, imune ao tempo e aos acontecimentos. Ele sim, um velho encurvado pelo rigor dos anos, as pernas fragilizadas, a falta de equilíbrio que o obrigava a recorrer a bengala, os lapsos inconvenientes de esquecimento a abalar seus dias.

O menino de papel ao lado da casinha de telhado vermelho o deixava intrigado e confuso. Às vezes parecia que o garoto se deslocava para mais perto das duas macieiras assentadas em tufos de relva por onde floriam três margaridas amarelas. O sol laranja e as nuvens azuis flutuando no alto do desenho reviviam lembranças desencontradas. A filha insistia em afirmar que ele era o autor daquela infantilidade. A esposa, há tanto tempo falecida, descobrira o desenho em um caderno esquecido na casa dos sogros, se encantou com a o menino de cabelo espetado, gravatinha verde, calça roxa e sapatos marrons. Escreveu no rodapé do papel “eu te amo”, encomendou a moldura e pendurou o quadrinho no quarto das crianças.

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Mas, Joseph tinha a certeza de que o desenho era do filho Simon, garoto criativo e rebelde. Não entendia porque Eva ria e dizia “não, papai, esse desenho foi você quem fez”.

Simon já tinha ido embora da Alemanha. Professor universitário, ensinava em uma faculdade em Londres. Solteiro por opção, pouco falava de sua vida particular. A filha Eva, pesquisadora e tradutora, trabalhava numa editora e o casamento com um intelectual alemão, colega de escola, durou apenas três anos.

Naquele dia, e lá se vão dois anos, pela primeira vez Eva falou em deixar a Alemanha. Medidas restritivas do governo nazista estavam em andamento, proibindo médicos judeus de tratarem pacientes não judeus, revogando a licença dos advogados judeus e promovendo o boicote a estabelecimentos judaicos.  “Vou partir, papai, e quero levar você”.

Joseph não pensou duas vezes, se recusou a acompanhar Eva.  Perto de completar 80 anos, ainda gostava de passear pelo parque nos arredores do apartamento. Sentava no banco, em frente ao pequeno lago, e acompanhava a tagarelice das jovens mães com seus carrinhos de bebês.  O que ele faria em Londres? Sofie cuidava tão bem da casa e dele também. Todos os dias, pontualmente às 8 horas, ela adentrava pelo corredor, pendurava seu casaco no cabideiro, o pão fresquinho na sacola e ia direto pra cozinha preparar o lanche matinal. Há quanto tempo fazia isso? Perdera a conta.  No fim de semana, quando folgava, parecia que a casa ficava mais triste e o tempo custava a passar.

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Naquela segunda-feira, ao entrar no apartamento, Sofie logo foi tomada por uma sensação diferente. A porta estava destrancada, as luzes apagadas, as cortinas de voal alvoroçadas pelo vento que zunia pela janela escancarada do corredor. O sopro úmido do outono esfriava a casa e dava um toque soturno à mobília.

“Levaram o patrão”, deduziu de imediato ao ouvir a voz da zeladora atrás de si. – Tenho que fechar o apartamento. Me entrega a chave. Mal humorada como de costume, a mulher a olhava desconfiada.  Sofie pede uns minutos.  Precisa recolher sua roupa de trabalho. A mulher desce as escadas resmungando. – Não demore.

Atordoada, Sofie vai ao escritório e num impulso retira de cima da estante o quadrinho do menino de papel. Esconde-o por debaixo da blusa. Recolhe o avental, algumas mudas de roupa, os chinelos e a louça que usa no dia a dia. Põe tudo em uma velha sacola, as mãos trêmulas, sentindo o coração disparar e as lágrimas embaçando a visão. Desde que a polícia acelerou as deportações, ela temia pelo destino do patrão.  No trajeto diário, a visão de caminhões atolados de famílias assustadas já não surpreendia os passantes. Desviar o olhar, apressar o passo e fingir que nada acontecia era uma boa receita para não enlouquecer.

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Sofie abraça o desenho e se emociona mais uma vez. Sentada na cama, olha a meia lua no céu soturno que prenuncia a tempestade. A artrose castiga seus membros e tem dia que se deixa ficar ao pé do fogão, perdida na paisagem bucólica que se vê pela porta aberta, sem ânimo para fazer o strudel de maça que aprendeu com dona Bella.  Desde que deixou Berlim, vive com a irmã e o cunhado na casa de roça que foi dos seus pais, e antes, dos avós.  Aquele desenho lhe traz lembranças felizes de uma vida que começou mal. Vítima de paralisia infantil, Sofie tinha uma das pernas mais curta e deformada.  Desde a infância, a doença tirou a inocência e a alegria que animam as fantasias da imaginação.  Procurava se esconder das pessoas. Na escola, por mais que desejasse ser invisível, era alvo da chacota da criançada que imitava seu andar manco e meio cambaleante. Os olhares de piedade dos adultos a martirizavam.  Não havia um dia que não caísse no choro, encolhida no  celeiro sob o olhar sonolento de uma mula.

Quando a esposa do jurista Joseph Klein a contratou, Sofie custou a acreditar. O semblante angelical e a voz doce da jovem senhora, dona Bella, a encantaram. Nunca sentira tanta bondade e ternura em alguém e naquela noite teve a certeza que sua vida, enfim, iria mudar.

Durante todo o tempo que serviu a família Klein, Sofie foi uma mulher feliz. Adorava as noites de sexta-feira, quando a casa se enchia de convidados. Lustrava os castiçais, o faqueiro de prata, lavava os copos de cristais, os pratos e travessas de porcelana decorada. Com a morte da patroa por complicações de um parto infeliz, Sofie perdeu o chão, mas agarrada ao livro de Salmos, presente muito caro ao seu coração, ela lembra da promessa que fez. “Enquanto me quiserem, ficarei aqui.”

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Mas, longe de perder o emprego, a responsabilidade aumentou. As crianças na pré-adolescência eram difíceis de lidar. Sem a referência da mãe, ficaram rebeldes e descuidadas. Mas, a mão forte do patrão freou a bagunça e mesmo sendo um homem de muitos compromissos ele manteve os filhos na linha.

Mas o passar dos anos se mostrou impiedoso e os parentes mais chegados se foram. O grupo de juristas, professores e alunos, mais de uma dezena de gente que frequentava a casa, foi minguando até se reduzir a um único membro, o mestre do xadrez. Notícias davam conta de fugas mal sucedidas, deportações, prisões e execuções.

Agora, passado o pesadelo da guerra, Sopfie está de volta a Berlim onde divide com a sobrinha um pequeno apartamento no bairro proletário de Britz, ao sul da capital.  Apesar dos bombardeios, a maior parte do conjunto habitacional restou inteira. Tinha adquirido o imóvel com a ajuda do patrão e com um teto garantido procurava um novo emprego entre as pessoas conhecidas.

Soube que o mestre do xadrez, seu convidado preferido, retornou à cidade. Foi procurá-lo e se deparou com um homem fustigado pela dor. Perdera mulher, filhos, irmãos e os pais, ainda saudáveis em seus setenta anos. Os cabelos precocemente grisalhos, o corpo, antes atlético, agora de uma magreza doentia, e o rosto marcado por fundos sulcos nas têmporas  impactaram Sofie. Deportado para o campo de concentração de Buchenwald, Rony, era seu nome, estava vivo graças a arte do xadrez. Um dos subcomandantes o escolheu como parceiro e professor dos filhos. Ao sorrir, Sofie reencontrou nos olhos azuis de Rony aquela beleza interior que sempre a fascinou. Ele estava de partida para o Reino Unido, tinha sido aceito para lecionar direito na Universidade de Edimburgo. Contou que iria se encontrar com Eva, em Londres. Sofie então revelou, constrangida, que o quadrinho do menino de papel estava consigo. Nos últimos tempos sentia uma espécie de culpa por estar com aquela peça tão particular e que afinal não lhe pertencia.

No dia seguinte, Sofie devolveu o desenho.  Chorou ao abraçar Rony e mais uma vez agradeceu ao mestre de xadrez o livro de Salmos que ele tão carinhosamente havia dado para ela em uma noite fria de inverno, semanas após os terríveis tumultos e saques da Kristallnacht (Noite dos Cristais). Era véspera do Natal de 1938 e Rony se despediu do patrão com um forte aperto de mão. - Espero que não seja tarde demais, dr. Klein. Soube do decreto que obriga os judeus homens a acrescentar o nome Israel em seus passaportes. E as mulheres o nome de Sara.

Foram as últimas palavras que Sofie ouviu antes de vê-lo vestir o sobretudo, apanhar o chapéu e bater a porta apressado. Desde então, Sofie se apegou aos Salmos e diariamente lia e relia seus versos, clamando para que o Senhor jamais abandonasse Rony.

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Percebo que mais uma vez vou mudar, foram anos felizes em meio aos risos das crianças, correrias, brincadeiras, tanta coisa boa que à noite eu desfalecia muitas vezes sem fôlego para namorar a lua recortada pela janela do quarto, como era bom! Preciso contar, estou em frente a uma janela adorável emoldurado por um paspatur azul ainda que imprensado por um vidro transparente gosto muito de estar aqui onde o nascer e o pôr do sol são presentes diários, a chuva forte tempestuosa, os leves chuviscos, as noites quentes, a brisa amiga, o vento tagarela, e lá longe mas ainda visível as copas opulentas das árvores do parque municipal, momentos que encantam a minha vida, no entanto devo admitir que já não existem mais crianças correndo pela casa, os móveis do quarto foram trocados, novas cortinas adornam a janela,  gravuras de carros enchem as paredes, confesso que me sinto deslocado, pouco à vontade, mas eis que mãos decididas interrompem meus pensamentos e me arrancam da parede  passando por um corredor comprido e entrando na saleta com ares de escritório onde eu notei que é preciso falar baixo, bater na porta, pedir licença, conheço esse jeito sem cerimônia que me coloca na estante espremido entre as fileiras de livros, mãos de minha incansável inimiga, a tirana do pé manco e espanador de prontidão, sempre a procura de algum cisco, uma poeirinha que seja, me esfregando com pano molhado, me impondo a flanela de bolso de seu avental. Tremo em pensar em possíveis estragos a minha pessoa, um dia cheguei a escorregar, acreditem, e pela sorte do destino saí ileso, calculo que a tirana malvada queria acabar comigo, enfim, cá estou desta vez de costas para a janela, minha referência e prazer, e de frente para a porta fria e indiferente, essa tirana é um caso perdido!

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Sozinho na noite, mais uma vez me sinto entediado, sem muita disposição de sonhar, fazer planos, construir quimeras, já não me incomoda o correr do tempo, se salta, atropela, monta barreiras ou matreiro aguarda minha passagem pelo desfiladeiro, que jeito, somos todos humanos, os cabelos embranquecem, as juntas incomodam, ficamos à mercê das dores, de um corpo que não responde às ínfimas vontades, noto isso no homem curvado, de passos lentos, afundado na poltrona sob a luz do abajur na mesa outrora repleta de agendas, papéis, telefones, trecos variados, uma loucura, que tempos! O livro aberto no colo quase cai, o velho cochila, balbucia qualquer coisa ao tentar se levantar ao som das batidas do relógio centenário, relíquia de seu bisavô contava aos amigos doutores em incisos, alíneas, parágrafos, e eu orgulhoso lá no alto da minha estante, acho que posso  chamá-la assim com a intimidade de antigo morador respeitado até por aquela insana tirana, mestre em me tirar do sério com seus infames paninhos, livrai-me Senhor!

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E cá estou a milhares de quilômetros além da minha imaginação na cidade de pedra em uma rua estreita de cheiros e vozes que não conheço e que ondulam ao longo do dia já por longo tempo companheiro da mulher que me inspira tão diversa da menina implicante de outrora agora tradutora dos livros perfilados na antiga estante de madeira que ao lado do relógio carrilhão revivem lembranças de uma infância de risos e alegria. Na mesa, um velho calendário marca a data de 1968 o que acho surreal porque as páginas dos meses foram arrancadas. Desconfio que o tempo andou a passos largos e nos deixou para trás. Percebo ainda que a idade madura a fez solitária e recolhida, mas não me importo porque o meu prazer é ouvir histórias e minha contadora de histórias nos inumeráveis volteios pelo quarto da aurora ao entardecer me mantém aconchegado em seus braços enquanto fala de um mundo passado onde as pessoas queridas permanecem presentes na mágica das palavras que me envolvem não importando a chuva ou o sol que se avista da janela gradeada - lá se vai saber o porquê - ou os estranhos que sem cerimônia insistem em nos importunar às vezes por minutos às vezes por horas afastando-a de mim dependendo das tarefas insanas que não faço ideia quais sejam pois nunca saí porta afora para acompanhar essa gente que cantarola boker tov todas as manhãs e oferece pastilhas variadas a minha  amiga que engole com um dedo de água e agradece. Ainda que nossos colóquios sejam descontinuados reconheço que tenho muita sorte de ter uma parceira tão gentil nesses meus derradeiros dias aquecendo a minha imaginação com as narrativas extraordinárias de personagens de tempos outros, paisagens deslumbrantes e enredos surpreendentes nos quais me apraz permanecer em encantamento cúmplice e aliado de um mundo mágico de incontáveis e fantásticas aventuras.

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Verdade é que não foi fácil chegar até aqui. Lembro da sacola esgarçada onde fui jogado no melhor estilo mafioso o que exauriu minhas forças e abalou o meu ego, sem imaginar para onde me levariam, suponho para o calabouço fétido onde vicejam ratazanas, morcegos, bichos ávidos que não toleram intrusos. Quando senti a força daquelas mãos tiranas, juro temi por minha integridade.  Me arrancando da estante de supetão despertando o estupor que me paralisa, aquelas mãos decididas e temidas que me metem nesse saco velho empreitando uma fuga que não estava no script, confesso meu estado de choque  que prossegue no sacolejo da estrada sem fim, tenho medo do que me aguarda, um tempo de infortúnio, será? Imaginar o pior nem sempre é saudável ainda que o espectro de uma medonha  lata de lixo me atormente sobremaneira, ouço o ruído da chave que gira na fechadura, o barulho da janela que se abre, o clarão de luz que me alcança livre do saco da tirana, que já arrasta  o banco para perto de mim, de onde vejo o passarinho cantor que trina agitado, a folhagem da bétula se derramando no vaso, o galo madrugador imponente dono do quintal, também o sol, o céu, a lua, o vento, a brisa, a chuva, a montanha, os insetos da madrugada, ao pé do fogão a escutar histórias com  o sol se pondo e o céu pintado de marinho, o natural  perfume da roça em harmonia com o forte aroma das panelas, ouvir encantado sobre o amor do patrão pela dona Bella, da doença maldita que a levou antes do tempo, mulher boa, uma santa! Das crianças que se debandaram para o estrangeiro, da manhã em que um pôster de avião por obra e graça do filho rebelde me desbancou da parede e pela ação imediata da tirana, assim ela conta,  fiquei a salvo  escondido na estante, a tristeza doída de ver o patrão doente,  homem letrado, doutor nas leis, sozinho coitado, também nem tão sozinho porque lá estava a tirana do espanador,  apesar do pé manco, coluna chumbada e a penosa artrite diz ela não deu para trás, aguentando até uma ajudante por pouco tempo,  mulher metida sempre se achando melhor,  ora bolas,  nunca falhei em  minhas tarefas, sustenta, me encarando com o semblante carrancudo, mas teve um dia, lembro bem do susto, tropecei e por pouco não quebro a sua moldura, meu menino de papel, valha-me Deus, tantas histórias a encher as noites de sons, lembranças, memórias, um caleidoscópio de sentimentos a me arrebatar, não estou infeliz, reconheço, ao lado dessa loquaz tirana mas a saudade me torna impertinente e ansioso, longe de mim assustá-la arrebatada tirana, suas madrugadas insones de dúvidas tormentosas falam por si  e para meu alívio na suave aurora de uma manhã que se anuncia radiosa sou levado para as mãos mágicas do mestre do xadrez, parceiro inconteste de jogos memoráveis, surpresa maior duvido, suspiro agradecido, obrigada louca tirana estou a caminho de casa vejo isso nos olhos do sábio dos sábios erguendo os braços ao me ver, olá rapazinho valente diz ele sorrindo, em uma calorosa e infinita acolhida de boas-vindas!


 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Egito restaura sinagogas de olho nos turistas

Comunidade judaica foi expulsa do país na década de 1950 e seus bens e propriedades encampados pelo governo. Uma tragédia humanitária das muitas que marcaram o século 20.

/  Sheila Sacks /

Sinagoga Eliahu Hanavi - Alexandria


Outrora uma das mais antigas e pujantes comunidades judaicas do Oriente, o Egito conta hoje com menos de dez judeus remanescentes  de uma era dourada onde o país chegou  a somar mais de 80 mil judeus.

Depois da morte de Carmem Weinstein, em 2013, ela que foi durante décadas a responsável pela preservação das quatro mais importantes sinagogas e do único cemitério judaico que restou, sua sucessora, Magda Haroun, 70 anos, tem atuado junto às autoridades egípcias no trabalho de preservação das construções e artefatos judaicos ainda presentes principalmente no Cairo e Alexandria. Em 2018, a imprensa local deu ampla repercussão à notícia de que o Ministério de Turismo e Antiguidades alocou recursos da ordem de 71 milhões de dólares para a restauração  dos locais de herança judaica.

Em dezembro último, depois de mais de seis meses de reforma, a Sinagoga Ben Ezra, no centro do Cairo, abriu suas portas para a visitação de turistas. Acredita-se que foi construída em 882 sobre os restos de uma igreja copta e seu nome homenageia o sábio e filósofo judeu Abraham Ibn Ezra, nascido no norte da Espanha por volta de 1093. O interior da sinagoga, de dois pavimentos, é rico em colunas de mármore, madeira e detalhes únicos, como flores de lótus e palmeiras.

 A restauração ficou a cargo do Ministério de Turismo e Antiguidades que em 2020 já havia aberto para visitação pública a Sinagoga Eliyahu Hanavi, em Alexandria, depois de um período de reforma onde foram investidos em torno de 6 milhões de dólares.  A sinagoga, construída originalmente em 1345, foi destruída em 1798 em um bombardeio por tropas de Napoleão, e reconstruída em 1850. Estava fechada desde 2012.

Pelo trabalho realizado, o governo egípcio foi agraciado com o prêmio internacional  ENR 2021 Global Best Projects Award na categoria de melhor projeto de Renovação/Restauração de Engenharia. A revista americana ENR - Engineering News-Record é considerada uma das publicações de maior influência no ramo da indústria da construção mundial.

De acordo com o Ministério das Antiguidades até 1930 havia 20 sinagogas em Alexandria de propriedade de judeus marroquinos, turcos, italianos, espanhóis, franceses e árabes.

Águas do Nilo

Sinagoga Ben Ezra - Cairo

Em relação à antiga sinagoga Ben Ezra, os guias de turismo enfatizam que talvez seja esse o local onde o bebê Moisés foi encontrado. Em recente reportagem da revista ortodoxa Mishpacha (3/1/23), dois visitantes judeus  narram sua visita à sinagoga: “Esta sinagoga, onde dizem que o Rambam (Maimônides:1135-1204 ) rezava, foi reformada inúmeras vezes nos últimos mil anos e hoje é um importante local turístico. Enquanto estávamos lá, grupos de turistas da Europa, Estados Unidos e Ásia entraram e ouviram do guia egípcio como o rio Nilo na época das cheias supostamente beirava o local onde estávamos e que pela tradição local, esse é o exato lugar onde a cesta do bebê Moshe estava escondida nos juncos.”

Segundo  a  Sociedade Histórica dos Judeus do Egito - Historical Society of Jews from Egypt /HSJE, sediada nos Estados Unidos, pouco se sabe sobre o edifício original. “Por volta de 1012, o califa Al-Hakim bi-Amr Allah ordenou a destruição de todos os locais de cultos  judaicos e cristãos. O próximo califa Ali az-Zahir permitiu a reconstrução de instituições cristãs e judaicas, e a sinagoga foi reconstruída no período de 1025-1040.”

Desde então a sinagoga ganhou várias reformas e o prédio atual data de 1890. No século 19 (década de 1890),  a descoberta de uma geniza (área de armazenamento de livros e manuscritos) no porão do da sinagoga, com mais de 300 mil documentos religiosos e seculares escritos em hebraico, aramaico e árabe, tornou o local ainda mais significativo  para os estudiosos.  A coleção conhecida como Cairo Geniza foi transferida inicialmente para a Universidade de Cambridge, na Inglaterra, por iniciativa do rabino e educador Salomão Schechter (1847-1915).  Atualmente, vários documentos estão preservados em bibliotecas acadêmicas. Com o acesso aos papéis, pesquisadores  puderam conhecer  mais a vida das comunidades judaicas locais nos séculos 11 a 13.


 O fundador e presidente da HSJE,  Desire L. Sakkal, é crítico em relação a abrangência das restaurações das sinagogas.  Ainda em 2019, por ocasião do anúncio das obras, Sakkal  viu na divulgação uma manobra política e de propaganda do governo do Cairo para angariar simpatia dos países ocidentais e incrementar o turismo, principalmente dos judeus americanos.

Sakkal observa que restam muito poucos judeus no país capazes de realizar serviços religiosos e que os turistas precisam de permissão especial e guias egípcios para visitar os locais judaicos. Aos egípcios não são permitidas visitas por questão de segurança.

De fato, pouco tempo depois do anúncio repercutido pelas mídias judaicas e até pelo site da Embaixada israelense no Cairo,  o próprio Ministro das Antiguidades corrigiu a informação e disse que o montante de recursos, na verdade, iria para a restauração de todos os monumentos religiosos (mesquitas e igrejas inclusive) que necessitassem de reparos.

O rabino Andrew Baker, diretor de assuntos internacionais do grupo de defesa do Comitê Judaico Americano (American Jewish Committee -AJC ), conta que nas diversas vezes que visitou o Egito percebeu que o governo não está interessado em parcerias com organizações de fora. “Eles sustentam que a herança judaica também faz parte da história do Egito”,  relata Baker que também já criticou o estado deplorável da maioria das construções judaicas ainda existente no país.

Sinagogas sob tutela


Em recente entrevista à CBS News, Magda Haroun falou que ainda existem doze locais de culto judaico no Cairo e que as chaves ficam sob a sua guarda.  Preocupada com o destino dessas construções, já que a comunidade judaica está praticamente extinta no país, ela conseguiu que as sinagogas ficassem sob a tutela do Ministério das Antiguidades e assim protegidas em relação a demolições. Isso inclui a Sinagoga Ben Ezra, a mais antiga do Oriente Médio. Haroun destacou que foi feito um inventário de cada sinagoga, com as peças catalogadas com fotos e numeração.

Em novembro do ano passado, através de outra parceria, desta vez com a Embaixada americana no Cairo, a Drop Mil Foundation, uma organização centenária que visa preservar a herança judaica no Egito, e a American Research Center in Egypt  (ARCE), um centro de pesquisa que apoia a preservação de bens culturais no país, foi inaugurada a restauração de parte do cemitério de Bassatine ( a ala reservada aos judeus caraítas),  o segundo cemitério judeu mais antigo do mundo, construído no século 9 (o primeiro está situado no Monte das Oliveiras, em Jerusalém).

Foram investidos 150 mil dólares na recuperação do local que ganhou também um Jardim Memorial com doações dos judeus caraítas que vivem nos Estados Unidos. Os caraítas seguem apenas a Torá escrita – os mandamentos divinos transmitidos a Moisés - não considerando a lei oral (Talmud ) e outras tradições orais que são parte fundamental do judaísmo rabínico. Vivem em Israel de 30 a 50 mil judeus caraítas, a maioria na cidade de Ashdod.  Também existem pequenos grupos na Turquia, Europa e Estados Unidos.


O cemitério de Bassantine foi saqueado ao longo do tempo e invadido por pessoas sem moradia. Desde 1970, o trabalho de Carmem Weinstein foi fundamental para preservar 300 túmulos cujas lápides de mármore estavam sendo roubadas ou destruídas por construções na periferia.  Com o auxílio de judeus sefarditas da França e da Suiça, ela construiu um muro circular de 2 quilômetros ao redor do terreno, mas, anos depois, uma parte foi derrubada, novamente invadida e transformada em lixão. A situação era tão degradante que por ocasião de seu falecimento ela teve de ser enterrada longe do túmulo da mãe, em outro terreno do cemitério.

Expulsão traumática

O êxodo dos judeus egípcios teve início após a criação do Estado de Israel e a guerra da coligação dos países árabes contra o novo estado. O antissemitismo aumentou ainda mais quando estourou o Conflito do Canal de Suez, em 1956 ( com tropas israelense se juntando às tropas francesas e britânicas para garantir o acesso ao canal), e na chamada Guerra dos Seis Dias (1967), quando o exército israelense destruiu as defesas do Egito, Síria e Jordânia, conquistando a Península do Sinai, as Colinas do Golã, a Faixa de Gaza, Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém.

A organização Justice for Jews from Arab Countries (JJAC), com sede em Nova York, estima que cerca de 856.000 judeus de 10 países árabes ( Egito, Marrocos, Iraque, Síria , Iêmen  Irã , Tunísia, Líbia, Argélia e Líbano) fugiram ou foram expulsos em 1948 , sendo que muitos foram mortos ou ficaram feridos em consequência dos violentos ataques praticados pelos árabes desses países.  Perto de 800 mil vieram para Israel.


Em 2019, depois de 18 meses de trabalho, o governo israelense calculou em mais de 250 bilhões de indenização pelas propriedades e ativos dos judeus forçados a fugir, partir de 1948. Também já foi estimado que os imóveis de judeus deixados para trás em terras árabes equivalem a 100 mil quilômetros quadrados, quatro vezes o tamanho do estado de Israel.

Para lembrar a saída e deportação desses judeus,  o parlamento (Knesset) instituiu, em 2014,  a data de 30 de novembro  como um dia de conscientização e de eventos diplomáticos visando reforçar, a nível internacional, os direitos de ressarcimento dessas famílias. A data se relaciona com o 29 de novembro de 1947, quando a ONU votou a resolução a favor da partilha da Palestina. No dia seguinte, 30/11, teve início a perseguição aos judeus no mundo árabe.

Ressaltando que a península do Sinai foi devolvida ao Egito nos acordos de Camp David, em 1978; a Cisjordância entregue para controle da Autoridade Palestina (acordos de Oslo, nos anos de 1990); e a Faixa de Gaza desocupada por colonos israelenses durante o governo de Ariel Sharon, em 2005.

Segurança reforçada



Em dezembro último, a festa de Hanuchá  foi celebrada  na Sinagoga Meyr Biton (inaugurada em 1934), no arborizado bairro Maadi, com a participação de diplomatas e de três idosas judias que ainda vivem no Cairo. A plataforma de notícias Al Monitor reportou que os arredores da sinagoga no dia do evento concentravam mais policiais do que visitantes. Um exagero, para alguns, que viram na ação o reflexo da ainda presente desconfiança das forças de segurança egípcia em relação a qualquer reunião judaica.

O diretor do documentário Judeus no Egito, Amir Ramses (44 anos) disse que a palavra "judeu" é em si uma fonte de paranoia para a segurança nacional do Egito  - talvez o resultado de décadas de doutrinação pela mídia estatal e livros escolares que incitam o ódio aos judeus.  O documentário exibido em cinemas do Cairo, em 2013, conta a história da comunidade judaica exilada do Egito,  através de  uma série de depoimentos de judeus egípcios residentes em Paris, intelectuais e até de um membro da Irmandade Muçulmana que participou, em 1947, dos ataques às lojas judaicas.


Magda, que representa uma comunidade praticamente extinta, afirma que  ainda existem judeus egípcios que escondem sua condição e vivem como muçulmanos. Considera que tem havido progresso em seu empenho de resguardar os locais judaicos e preservar algumas tradições religiosas. Diz que recebe o apoio de organizações locais, embaixadas estrangeiras, principalmente a dos Estados Unidos,  e do próprio governo. Sonha em promover concertos musicais nas antigas sinagogas e ver restaurantes kosher se espalharem pela cidade. “Quero conciliar os egípcios com seu passado”, justifica.

Em 1967,  seu pai, advogado e político, fundador do Partido Comunista Egípcio, foi preso por sua condição de judeu.  Chehata Haroun se recusou a sair do país e permaneceu vários anos na cadeia. Antissionista, morreu no Cairo, em 2001, aos 82 anos. Intrigante também é a história pessoal de Magda. Foi casada com muçulmano, tem duas filhas muçulmanas que foram criadas por um cristão, seu segundo marido.  Se declara pluralista mas, como o pai, é antissionista e não mantém contato com a embaixada de Israel.

Foco no turismo


Um dos principais roteiros turísticos da região, o Egito recebeu 4,9 milhões de visitantes no primeiro semestre de 2022. Em novembro, a filha do ex-presidente Donald Trump, Ivanka, em visita de férias ao Egito, levou a família para conhecer as principais atrações turistas do país, entre elas, a Sinagoga Ben Ezra. Ela estava acompanhada do marido, Jared Kushner, e dos três filhos.

Segundo a reportagem da revista Mishpacha, turistas individuais geralmente não têm segurança, mas o grupo israelense ganhou escolta policial durante os dias que esteve no Egito. “Na verdade, achamos um pouco exagerado ter um carro da polícia na frente de nosso ônibus e outro carro da polícia atrás, o tempo todo”, revelaram os dois israelenses autores da matéria (Ary Z. Zivotofsky e Ari Greenspan). “Além da presença de um guarda armado dentro do ônibus”, enfatizam.

Outro lance que os autores classificam de “incrível”  diz respeito aos quiosques turísticos nas paradas de ônibus. “Todos oferecem a opção de compra de lanches e bebidas kosher para os visitantes ”, ressaltam.

Mas, muito mais surpreendente que os lanches kosher nas paradas de ônibus foi o evento  que ocorreu em maio do ano passado, quando da comemoração do 74º aniversário da criação do estado de Israel. Sob os auspícios da embaixada israelense no Cairo, uma orquestra de Israel se apresentou para convidados egípcios e de outras nacionalidades, executando clássicos egípcios das décadas de 1950/60. O concerto a céu aberto teve como cenário as famosas pirâmides do Egito.

A orquestra Firqat Alnoor (do árabe Banda da Luz) é especializada em música árabe e seu maestro Ariel Cohen se disse emocionado pela recepção calorosa do público presente. Ainda que nas redes sociais egípcias e de países árabes o clima fosse outro com muitas críticas contundentes à organização e localização do evento. "Os israelenses comemoram o Dia da Independência nas pirâmides, que vergonha para o Egito", escreveu um internauta. O assunto foi registrado pela a plataforma de notícias Times of Israel , em  25/5/2022, sob o título Israeli orchestra performs in Egypt for the first time in 40 years. 

Mais sobre o tema:  

Houve um tempo no Egito - A vida de Henri Curiel

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Bem-vindos ao paraíso - Da série Recordando Mamãe

 / Sheila Sacks /

 


Quando papai comprou o Plymouth de quatro portas, a minha vida mudou. Eu tinha sete anos e morávamos em um ponto esquecido à esquerda da linha férrea que cortava a zona norte do Rio. O carro seminovo tinha cromados reluzentes, pneus de bandas brancas e assentos de couro. Papai mostrou a novidade em uma tarde de primavera e mamãe, radiante, beijou-o no meio da calçada.  No domingo, de vestido florido, batom vermelho e sandálias de solado alto, ela anunciou que íamos ao Cais do Porto. Felizes, meu irmão e eu colamos os narizes na janela do veículo que avançava pela rua margeada de casario urbano.

 

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No cais, o navio enorme causava espanto.  Sobreviventes da 2ª Guerra, dois primos de papai chegavam da Europa. Os rapazes desembarcaram do imenso cargueiro equilibrando-se em uma estreita escada de corda. Usavam casacos pesados e pareciam assustados. Papai abraçou-os e sussurrou qualquer coisa em iídiche*. Mamãe traduziu a saudação, estendendo-lhes a mão. “Bem-vindos ao paraíso”, disse em voz alta, despertando a atenção das pessoas no píer.

 

Nos dias posteriores uma chuva persistente entristeceu a semana. Pedi aos céus para o tempo melhorar.  Em uma manhã acordei com o sol no quintal. A claridade me cegava, mas assim mesmo eu teimava em encarar o sol. “Vamos à praia no domingo”, exclamei confiante, enquanto mamãe bordava. “Agora de carro”, insisti ao perceber um olhar maroto em minha direção.

 

Semanas depois, enchendo o baldinho de areia na praia, escutei os primos de papai anunciarem a novidade: fariam aliá** em breve. O recém-criado estado de Israel precisava de gente para arar a terra e jovens para defendê-lo, justificavam.   Mamãe traduzia as frases e eu percebia o entusiasmo com que falavam sobre a gloriosa vida que teriam no novo país. Sem me conter, imitei minha mãe abrindo os braços para o mar que espumava sobre a areia. – Mas o paraíso é aqui ! disparei. Mas os jovens pareciam não entender, abrigados sob o guarda-sol de gomos coloridos. Ao meu lado, esbelta em seu maiô preto e chapelão de ráfia, mamãe sorria balançando a cabeça de modo afirmativo.  

 

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Naquele verão de final dos anos 1940 papai iniciou um novo ritual aos domingos. Acordávamos cedo, entrávamos no carro e seguíamos para Copacabana. O prédio escondido pelos tapumes estava sendo finalizado. Enquanto ele conferia o avanço nas obras do futuro apartamento, ficávamos no carro. Mamãe, no banco da frente, abanava-se com o leque japonês não escondendo a impaciência. Após uma espera que parecia durar horas, papai surgia na calçada. Com um suspiro de alívio, mamãe saltava fora do carro e lá íamos nós caminhando pela rua arborizada rumo à praia. “Um sonho antigo, esse de morar em Copacabana”, confidenciou mamãe ao telefone, em conversa com a vovó.

 

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E assim foram se passando os meus domingos.  Como um pequeno milagre, o domingo de praia se incorporou aos hábitos da família, agora instalada no novo apartamento e surpreendida pela auspiciosa chegada de um bebê.  Problemas e discussões podiam esperar. Compromissos, visitas e encontros eram adiados. Andar pela areia úmida, estirar os corpos ao sol e se banhar nas águas geladas redimiam as agruras da semana. Esquecido na garagem, o carro sem serventia foi ficando com o porteiro. A loja de ferragens no subúrbio alugada ao comerciante de madeira conhecido de longa data.  Para a  vida prazerosa que papai imaginava bastavam os livros da biblioteca municipal do bairro, a praia bela e generosa, a pequena poupança de trinta anos de trabalho e, principalmente, a presença de mamãe. Dona de mãos de fada, cozinhava, bordava, pintava quadros  e, se isso era pouco, tinha a pele cor de mate e contava histórias fantásticas.

 

Muitos anos depois, já velhinhos, no final da década de 1980, mamãe e papai ainda se sentavam na areia para ler e namorar o mar. “Bem-vindos ao paraíso”, eu lembrava da frase dita há tanto tempo na beira do cais. Meus pais sorriam e se entreolhavam imaginando, talvez, um paraíso celeste bem parecido com aquele em que viviam, com muito sol, areia e mar, e onde todos os dias seriam domingos de praia.


 * iídiche - adaptação do idioma germânico, falado pelos judeus europeus e escrito em caracteres hebraicos.

** aliá - termo que designa a imigração judaica para Israel (do hebraico ascensão).

 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Rio ganha seu Museu do Holocausto em área turística

 

/ Sheila Sacks  /


O monumento localizado no Morro do Pasmado, em frente à enseada de Botafogo, estará aberto à visitação pública a partir de 27 de janeiro

Em setembro do ano passado (2021), com as obras do Museu praticamente concluídas e o Monumento em Memória às Vítimas do Holocausto já inaugurado  pelo então prefeito Marcelo Crivella, o Ministério Público Federal  ingressou com um pedido de liminar   para interromper os serviços no local até o término da perícia judicial que estava em curso. 

A ação, movida pela associação de moradores do bairro, alegava que o Morro do Pasmado, em Botafogo,  era um bem tombado pelo  Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)  e sob proteção cultural da Unesco, e, portanto, não caberiam obras que pudessem alterar  a paisagem. O questionamento se fazia presente principalmente em relação ao obelisco de quase 20 metros de altura, representando os 10 Mandamentos, e ao projeto de paisagismo da encosta mesclando plantas nativas da Mata Atlântica com outras espécies.

No entanto, ainda em 2018, o Iphan já tinha emitido parecer concluindo que o Morro do Pasmado não estava inserido “em área de entorno do bem tombado”, que abrange os morros do Pão de Açúcar, Corcovado, Babilônia, Cara de Cão e da Urca. Também a Câmara Municipal do Rio já tinha aprovado uma lei de cessão do espaço, por 30 anos, para a construção do Museu, e a prefeitura, por sua vez,  concedida  a devida licença para as obras

Dias depois, amparados por decisão judicial , os serviços de conclusão das instalações internas do prédio não foram interrompidos e seguiram normalmente.



Na abertura do Museu, inicialmente restrita a convidados, esteve presente o prefeito do Rio, Eduardo Paes, que se manifestou em rede social sobre o evento: “Lembrar para que jamais se repita! O Rio se torna mais uma cidade do mundo a contar com um Memorial do Holocausto. Estive hoje na inauguração do espaço que foi erguido em memória das milhões de vítimas do Nazismo durante a Segunda Guerra.”

Igual sorte não teve o Museu Judaico de Lisboa cuja construção teve que ser deslocada para longe do local original, depois de mais de quatro anos de luta judicial com a Associação do Patrimônio e População de Alfama.  Projetado para ser construído no histórico bairro de Lisboa, onde existiu na Idade Média um populoso núcleo judeu, o museu agora será erguido no distrito de Belém, a uma quadra do Rio Tejo. Porém existe a promessa da construção de um Memorial no Largo de São Miguel, em Alfama.

Mais sobre o tema:

Memorial do Holocausto no Rio terá árvores da Mata Atlântica e bosque de Oliveiras

Museu Judaico de Lisboa: de Alfama para a freguesia de Belém


 

 

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Araguaia, meu amor - Da série Histórias que Mamãe Contava

/ Sheila Sacks /



O e-mail dizia pouco: “Cara Aniela. Foi bom revê-la. Me perdoe os dez anos de silêncio. Lino.” O homem de tez morena, cabelo grisalho e porte ereto fechou o notebook. A mensagem o remetia a um tempo que teimava em voltar nos momentos mais inoportunos. Em poucas horas estaria com a família no casamento da sobrinha, na aprazível costa espanhola. Tão diferente e tão longe daquelas matas molhadas e do chão de barro de Xambioá. Uma vila sertaneja, nos idos de 1974, que na semana do carnaval mudava de humor e de roupa, em animados bailes e blocos de rua.

 

E foi naqueles dias perdidos no tempo que o tenente Lino conheceu Aniela, menina de 17 anos, franzina, cabelo escorrido, rosto de anjo, gestos delicados e voz baixa. Ela chegara à localidade para passar o carnaval com os avós, o seu Zé e dona Maria, donos do armazém-bar que vendia fiado para o povo da região. Tenente Lino tinha 30 anos e estava noivo de uma professora no Rio de Janeiro. Mas ficou fascinado por Aniela logo que a viu. Os avós tentaram escondê-la, mas o tenente ia ao armazém várias vezes ao dia e se convidou para jantar na casa do seu Zé na terça-feira de carnaval.

 

Por sua vez Aniela também não conseguia esconder a atração que sentia pelo tenente. Conversavam no balcão do armazém e na varanda da casa sob os olhares preocupados de seu Zé e dona Maria. Finda a semana, Aniela partiu e o tenente deixou com ela um número de telefone. Esperou semanas, meses, pela ligação. Entretanto, isso jamais ocorreu.

 

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Em Jerusalém, a noite quente e abafada levou Aniela a abrir a janela. Em pé olhava o céu escuro, sem estrelas, que ameaçava desabar em sua cabeça. Há pouco havia recebido a mensagem do general em meio a um repentino mal-estar. A ansiedade que vez ou outra comprimia seu peito como uma dura couraça mostrou as garras e a fez ofegar. Lembrou do evento, há quase dez anos, no início dos anos 2000, e do militar empertigado a sua frente, meia-idade, rosto magro, com sulcos profundos na testa e na face. A intensidade de seu olhar não deixava dúvidas quanto a descoberta. Por um momento Aniela sentiu vergonha dos cabelos tingidos e da maquiagem esmerada. Em um gesto mecânico de cumprimento suas mãos se tocaram e antes que alguma conversa pudesse ser iniciada ela pediu licença e se afastou.


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No amplo salão da representação diplomática o grupo de militares se despedia de seus anfitriões após alguns dias de visita à feira de armamentos em Tel Aviv. O chefe da delegação, um austero coronel do exército, mostrava-se impaciente desde que a assessora de um dos adidos sul-americanos presentes à recepção passou por ele apressada. A mulher esplêndida, de pernas bem torneadas e vestido justo orientava os garçons, do outro lado da sala. Pouco antes, ao ser apresentada ao coronel, ela pareceu constrangida e não conversou. Apartou-se do grupo e desapareceu por um das portas do salão. Agora o militar percebia que ela vinha em sua direção e estranhamente a vista começou a embaçar. Embaralhando sentidos e sentimentos se deu conta que Aniela sorria, rosto de menina, pés soltos nas gastas sandálias japonesas, cabelos escorridos em um mal-amarrado rabo de cavalo. Respirou fundo e sentiu um fio de suor resvalar pela nuca. Bem perto, seus corpos quase se tocando, ela estendeu um papelzinho dobrado. Surpreso, magoado, desamparado, sussurrou pra si mesmo: Aniela do Araguaia.


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Estudar no colégio Pedro II deu a Aniela Rubinstein uma outra visão do mundo. Filha de uma chapeleira da comunidade judaica do Rio, ela e o irmão viviam meio que apartados de sua origem. Dona Eva, mãe de Aniela, evitava falar do passado. Dos pais, avós, irmãos e tios reduzidos a cinzas nos crematórios da Polônia. Escondida no porão da casa da professora de ginásio, Eva sobreviveu por milagre e pode dar à filha o nome de quem a acolheu. Anos depois, no navio norueguês que a transportou para a América do Sul, ela conheceu um violinista do campo de Dachau. Desembarcaram no Rio, casaram e foram morar no Estácio. Mas a tuberculose a deixou viúva e com duas crianças para alimentar.

 

Assim, quando Wilsão pediu a Aniela para que o ajudasse naquela missão, a resposta veio imediata. Sua idolatria juvenil por Che e Fidel e o gosto pela aventura levaram Aniela a mentir. Contou para a mãe que iria trabalhar como monitora em uma colônia de férias em Sacra Família e partiu para a região do Araguaia.

 

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Sob o codinome Selma foi apresentada ao seu Zé e dona Maria, donos de uma vendinha naquele fim de mundo. Trazia um documento em linguagem cifrada para ser entregue ao grupo que lutava na selva. O trato era ficar alguns dias na casa do comerciante, aguardando a resposta, e depois sumir. Porém o tenente bonitão do destacamento da região não arredava o pé das redondezas do balcão. Puxava conversa com Selma a troco de nada. Ao seu Zé e dona Maria elogiou a beleza e a doçura de Selma e como ela falava bem e entendia de tudo.  A casa ficava nos fundos do armazém e quando no início da noite a figura alta, fardada, assomou na varanda, todos engoliram em seco. Seu Zé se apressou a apresentar o rapaz barbudo que comia com eles como um sobrinho da capital que estava de passagem pelo local. De bom humor, o tenente cumprimentou o estranho e pediu licença para participar da janta. Pegou sem cerimônia o banquinho na cozinha e se sentou ao lado de Selma. Nestas alturas, os dois já estavam apaixonados.

 


Em cinco dias veio a resposta e Selma foi embora. Horas antes, o tenente deu um número de telefone e pediu para que Selma ligasse. Estaria no Rio em seis meses para uma licença. Selma prometeu telefonar. Na despedida chorou ao abraçar seu Zé e dona Maria. Semanas depois, em conversa com Wilsão em uma rua da Tijuca, vem a saber da morte do casal de Xambioá e do rapaz barbudo, encontrados amordaçado e com tiros na cabeça. Atordoado, Wilsão diz que vai fugir do país e aconselha Aniela a fazer o mesmo.


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A ordem superior era poupar os adolescentes. O tenente Lino pediu a seu informante para que seguisse os passos de Aniela no Rio. Após trinta dias, chegou o primeiro relatório: “A pessoa em questão pertence a um grupo de judeus que usam camisas de brim azul e se reúnem em uma casa de Botafogo. Fiz amizade com o vigia e soube que são comunas, mas não atuam no Brasil. Todo ano um punhado deles vai embora para a Palestina, onde vivem e trabalham em fazendas coletivas iguais às da Cortina de Ferro. A pessoa investigada também vai deixar o país. Em anexo estão as fotocópias dos passaportes dos comunas que viajam no meio do ano.”

 

O tenente leu duas vezes o documento com carimbo de confidencial antes de guardá-lo na pasta. Sentia-se traído pelos sentimentos. No fundo da alma tinha a convicção de que Aniela o amava e que iria telefonar. Esperava vê-la no Rio e talvez, com o tempo, abrir o jogo. Contar que sabia de sua missão e de sua falsa identidade. Explicar a bobagem em que se meteu por pura infantilidade.

 

Os dois meses seguintes foram difíceis para o tenente. Infectado pela malária teve que ser hospitalizado em Belém. De volta ao destacamento, um novo relatório com carimbo de urgente já o esperava. Leu avidamente o seu conteúdo, da primeira à última palavra: “Pegamos o Wilsão... e finalizando, os comunas judeus estão de partida. Preciso de uma diretriz. Quais são as ordens, tenente?”.

No dia seguinte, após uma noite mal dormida, o tenente despachava a resposta: “Trabalho encerrado.”


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O casamento da sobrinha na igrejinha medieval fez a esposa do general chorar. Padrinhos dos noivos, o enlace pegou a família de surpresa. Estudante de artes em Paris, a jovem namorava um colega espanhol. A gravidez inesperada acelerou a decisão de ambos de casar e conhecer a Malásia.

 

Depois da cerimônia, o general seguiu para a boate onde os recém-casados foram saudados por amigos alegres e poliglotas. O som vibrante da música empurrou os convidados para o centro da pista. O general, no canto do bar, imaginou Aniela lendo o email, depois de tanto tempo. Estaria viva? Talvez em Tel Aviv, Jerusalém ou qualquer outra cidade daquela terra estrangeira. Sentiu uma vontade incontrolável de fumar. Na parafernália eletrônica de cores e ruídos ao seu redor, o general só ouvia mesmo o grito da angústia e da solidão que o mantinham cativo em suas teias satânicas. Pôs uma pastilha de hortelã na boca e saiu da boate. Lá dentro, a música do final da década de 1970 explodia estridente, repetindo-se em um coro de vozes cambaleantes: Please don’t go, don’t go, don’t go away, please don’t go, don’t go...


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Amanhecia em Jerusalém e Aniela entrou na sala de trabalho entulhada de folhetos, cartazes e recortes de jornais. Na parede, a folhinha estampava o ano 2009 em relevo. Estava sozinha e resolveu responder ao e-mail do general, recebido há mais de um mês: “Certos encontros, ainda que breves, sobrevivem ao tempo e a lógica. Tive a certeza disso na festa do consulado. Compreendi que a minha vida sempre esteve em suas mãos, general Lino Sotero. No Araguaia, quando não me delatou. No Rio, quando me deixou partir. Em Tel Aviv, quando me viu e permaneceu em silêncio. De alguma forma, general, devo a você a minha história.” Yafa Navon, da ONG World No Wars – Mundo sem Guerras.
P.S. Ainda guardo o número de telefone. Que bobagem!


Conto vencedor do Concurso literário Moacyr Scliar 2009, do Centro Cultural Mordechai Anilevitch/RJ, e publicado no livro Escritos Revelados.