linha cinza

linha cinza

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A menina que dançava com o vento - da série Histórias que a Mamãe Contava

 

/  Sheila Sacks  /



Alguns cadernos de seus primeiros anos de escola ainda estavam guardados na casa da mãe. Uma ampla reforma há muito anunciada fez com que aqueles velhos papéis voltassem às suas mãos. Seu antigo quarto, com novas poltronas e os armários removidos, agora era uma extensão da sala que se enchia de netos nas Grandes Festas. Como professor de literatura comparada na Universidade de Jerusalém, Aaron sempre tinha o passado de forma presente em suas aulas. Reservado e discreto, o estudo em escolas ortodoxas o moldou de um jeito onde o popular e o folclórico não tinham lugar relevante. 

Filho de uma brasileira de rara beleza que emigrou para Israel aos 17 anos, na década de 1950, Aron se sentia mais apegado às suas raízes europeias vindas do pai nascido na Antuérpia, descendente de austríacos. Negociantes de diamantes, seus avós chegaram à então Palestina em 1938, após os nazistas invadirem a Áustria. Uma parte da família ainda morava naquele país e o temor de que a Bélgica tivesse o mesmo destino forçou a mudança apressada para o protetorado britânico. Um influente comissário inglês a serviço na Palestina tinha laços comerciais com o avô e garantiu a entrada da família no porto de Haifa.  Quando Aaron nasceu, seus pais, avós e tios já moravam na eclética cidade de Savyon, perto de Tel Aviv, em amplas e belas casas rodeadas de jardins.

Lembrava sem muito entusiasmo a estadia no Rio, ainda moleque, para conhecer os avós maternos, que não falavam o hebraico. Então, o que restou daquela visita de poucos dias foram as tardes nubladas de julho e as longas e indecifráveis conversas entre a mãe e a avó, em português, que depois veio a saber se referiam a uma possível mudança dos avós para Israel. O que jamais aconteceu. Eles faleceram e foram enterrados no Rio, primeiro o avô e alguns anos depois a avó. Os tios, que moravam em São Paulo, Aaron só os conheceu no casamento de uma de suas irmãs, em um hotel em Jerusalém. Ambos estavam sozinhos, sem as famílias. Porém, daquela viagem ao Brasil, a mãe trouxe uma pintura enrolada, que ganhou moldura e espaço na antessala da casa.

Assim, o longínquo Brasil sobrou fora da vida de Aaron, lembrado esporadicamente quando o assunto girava em torno de futebol, esporte aliás que não desfrutava de  sua preferência. Entretanto -  e nem mesmo ele entendia o porquê - a partir de um determinado momento de sua vida, talvez aos quatorze ou quinze anos, ele começou a reparar com mais acuidade um quadro pendurado na saleta de entrada da casa, pintura feita pela avó nos idos de 1930. Pintado a óleo, a paisagem tinha cores fortes e mostrava uma praia com coqueiros ondulando ao vento; uma primitiva embarcação de madeira com a vela gasta pelas intempéries do tempo; e o pequeno pescador, de dorso nu, enrolando a rede de pesca. O barco estava a poucos metros do mar, cujas ondas desciam em espumas que avançavam pela areia.

Quando deixou a casa dos pais para morar sozinho em Jerusalém, Aaron surpreendeu a mãe e a si mesmo ao pedir para levar o quadro consigo para a nova moradia. Desde que havia se mudado para o apartamento perto da faculdade, ele se sentia incomodado e saudoso do aconchego da casa dos pais. E refletindo por mais de uma semana sobre esse sentimento de abandono chegou a espantosa conclusão de que o quadro da saleta poderia ajudá-lo nessa transição. No shabat, quando jantava com os pais, a visão do quadro ao adentrar na casa o fazia sorrir e tranquilizava seu coração inquieto. Tinha 29 anos e era o caçula e único filho homem. Suas duas irmãs estavam casadas e os cinco sobrinhos eram motivo de prazer e dispersão de seus afazeres. A mãe percebendo que a presença da criançada atrapalhava a rotina do filho, não pensou duas vezes. Comprou um apartamento para Aaron. O pai de Aaron nunca dizia não a mulher. Agradá-la era tudo o que queria. Sonia foi paixão à primeira vista, um amor sem limites que o tornava o homem mais feliz da terra.

1

Através das estepes geladas da Romênia, o trem avançada rumo a longa viagem até o porto de Hamburgo, naquele rigoroso inverno de 1923. Maya tremia de frio ainda que usasse o casaco de pele de ovelha comprado na véspera, cachecol, luvas e meias forradas de lã. Viajava em um dos vagões com assentos duplos estofados, abraçada à Eva, sua irmã favorita.  A mãe, Batya, olhava pela janela embaçada os contornos da paisagem nevada, parecendo absorta em seus pensamentos. Paulino, o caçula de cinco anos, dormia com a cabeça em seu colo. Ao lado da mãe, com o anel de noivado luzindo no dedo, Bela estava de olhos cerrados, talvez sonhando com o noivo na terra distante.



O pai, Samuel, tinha partido há mais de um ano para a cidade de Recife, lá do outro lado do mundo, lugar de gente hospitaleira e onde o sol brilha o ano inteiro, escrevia em suas cartas.  Depois das repetidas ameaças dos Camisas Verdes, um grupo fascista romeno que  constrangia os comerciantes judeus como Samuel, dono de uma frequentada loja de tecidos na principal via de comércio de Chernivtsi,  encontrar uma terra de paz para a família era tudo que o pai almejava.

Ele foi embora, acompanhado do filho mais velho e do noivo de Bela para tentar a vida em uma América de língua portuguesa que seus primos, há quase uma década ali estabelecidos, contavam uma história de sucesso. Residiam em casas bonitas, tinham lojas bem situadas e dinheiro para viver muito bem.

Na última carta, o pai deu a boa nova. Tinha comprado uma casa e o negócio estava prosperando com a clientela acima do esperado. Era chegada a hora de deixar a região de Bucovina para sempre. Batya se destacava como uma exímia costureira que moldava vestidos festivos e disputados de seda, musseline, cetim e linho que os fornecedores do marido traziam da China e da Índia, em peças de dezenas de metros. Com uma boa quantidade de tecidos estocado em casa, Batya conseguiu sustentar os filhos e juntar o dinheiro necessário para deixar a sua Romênia natal.

E assim foi. Depois de penosos dias no interior do trem, que por duas vezes teve o percurso interrompido pelo acúmulo de neve nos trilhos, e acompanhando as águias das estepes de plumagem castanha em seu voo migratório para o norte da África em busca de sol e calor, a família embarcou em Hamburgo no barulhento vapor com a grande chaminé expelindo fumaça negra. Foram mais de duas semanas de viagem na segunda classe o que fez com que Maya conhecesse outras crianças na mesma situação. Poucas pessoas, porém, tinham como destino o porto de Recife, Maya escutou a mãe conversar com Bela. Como eles, eram cinco poloneses, três irmãos músicos da cidade de Lodz e um jovem casal, ela grávida, de Varsóvia. Um grupo de judeus berlinenses ficaria nos arredores de Londres, a primeira parada do vapor, e o restante dos passageiros atravessaria o Atlântico em direção à América do Norte. Do porto de Nova Iorque a embarcação ainda faria uma parada no Panamá, antes de seguir, enfim, rumo a Recife.

2

Quando Maya finalizou o quadro da praia de Tambaú ela tinha 22 anos e morava com os pais em uma casa no bairro do Méier, no Rio de Janeiro. Havia concluído o curso de desenho e pintura na Escola Nacional de Belas Artes e dava aulas para iniciantes no ateliê nos fundos da residência. Era uma jovem alta e esguia, de cabelos escuros esmeradamente trançados e presos em um coque elegante.

Maya tinha pernas longas e bem torneadas e profundos olhos azuis e quem quer que fosse não passava incólume diante daquela visão. Aprendera a costurar com a mãe e fazia seus próprios vestidos. Mas os sapatos exclusivos e os chapéus que gostava de exibir eram a sua paixão. Ao passear pela movimentada Rua Gonçalves Dias, no centro da cidade,  Maya se deliciava contemplando as vitrines. Uma vez por semana, acompanhada de Eva, bacharel em Direito que trabalhava em um cartório na Rua do Ouvidor, adentravam na Confeitaria Colombo para um chá com torradas Zwieback, atraindo os olhares masculinos.

Mas, naquele específico ano de 1934, Maya estava ocupada em produzir uma série de pinturas para a exposição anual do Salão de Belas Artes na qual foi convidada. Imaginava como pintaria as quatro estações do ano, cada uma em um quadro, e logo pensou no rigoroso inverno de sua terra natal, com as ruas cobertas de neve. O verão remontaria ao sol quente da praia dos pescadores, e quanto à primavera e outono, conjeturava, iria recorrer à beleza dos campos floridos dos arredores de Bucovina, e as folhas alaranjadas que se desprendiam das frondosas faias nos parques silenciosos. Paisagens vivas em sua memória.

Durante três meses trabalhou incessantemente, sem deixar de dar aulas porque também precisava comprar as molduras. No dia da exposição, a ansiedade tomou conta de Maya ao ver a quantidade de pessoas presentes. Doze ex-alunos faziam parte da mostra, cada um representando um estilo artístico. Ao lado da mãe e das irmãs, Maya deslumbrava a todos em seu vestido azul marinho de bolinhas brancas, sapatos de salto forrado do mesmo tecido, faixa vermelha amarrada à cintura, casaquinho branco e um pequeno chapéu com uma pena vermelha na presilha dourada. De seus olhos azuis emanavam uma luminosidade e beleza que nenhuma pintura poderia alcançar.

Assim pensou Tobias ao ver Maya pela primeira vez. Tinha sido convidado por Eva para a exposição e veio acompanhado do primo, seu sócio no escritório de contabilidade. Com 35 anos, ele era um homem independente, como aliás sempre almejou, a partir do dia que desembarcou no porto do Rio de Janeiro, há duas décadas, rapazote franzino, sozinho e inseguro. Órfão desde os sete anos, foi acolhido pelos tios depois que a irmã mais velha foi para a Palestina como madrichá (orientadora) no movimento sionista Hashomer Hatzair.

Alto, magro, culto, discreto e de poucas palavras, Tobias foi apresentado à Maya e sentiu no meio sorriso da jovem qualquer coisa de receptividade, ou, talvez, estivesse completamente enganado. Não era de hoje que se imaginava um solteirão convicto, um cara esquisito e sem paciência para vida em família. O trabalho o absorvia por completo e o tempo que sobrava era dedicado à literatura. Tinha paixão por livros de filosofia, biografias e romances. Frequentava as sessões de teatro e cinema, era espectador de concertos e óperas, apreciava e visitava as exposições de arte. Cada restaurante que abria no Rio, na semana seguinte lá estava ele conferindo o menu. De que jeito poderia conciliar essa vida que tanto amava, livre e sem amarras, com esposa e filhos?

Mas, olhando o porte, a beleza e a desenvoltura de Maya, suas convicções que pareciam tão firmes foram por água abaixo. Marcaram um jantar para o fim de semana, com a aprovação de Batya que se encantou com Tobias. Um homem de classe, definiu a mãe de Maya, surpreendentemente feliz ao contar a nova ao marido. - Baruch Hashem (Louvado seja D’us), murmurou Isaac, desejando do fundo do coração que alguma coisa boa resultasse do encontro. Ele não tinha muito a festejar. Bela vivia às turras com o marido e o noivo de Eva desistiu do casamento um mês antes do enlace. Talvez com Maya, a filha linda e rebelde, que não aceitava conselhos, o destino fosse mais camarada. 

3

Maya acordou com o vento entrando pela janela e sacudindo as cortinas de voal. Saltou da cama animada e ainda descalça atravessou a porta lateral que se abria para a praia. O sol começava a se erguer no horizonte, parecendo flutuar na imensidão do mar. Os pescadores empurravam os toscos barcos de madeira pela areia e alguns carregavam as redes nos ombros. Com o vento se encorpando pela manhã, os homens voltavam mais cedo da pescaria. Os ventos alísios habitavam aquelas paragens já no início de julho e só se despediam em setembro, quando começavam os preparativos para Rosh Hashaná ( ano novo judaico).



Maya viu Pedro sentado na areia e correu ao seu encontro. O menino com o corpo molhado abriu o sorriso e apontou a penca de peixes sendo retirada de um dos barcos. - Hoje tem tainha, disse. Do jeito que dona Batya gosta. Maya escutava o vento e mal ouvia o que Pedro dizia. Com os longos cabelos livres das tranças, o rosto alvoroçado de prazer, lança a vista em direção aos altos coqueiros com suas copas verdejantes farfalhando sob um céu coalhado de nuvens. Dominada pela mágica da natureza, abre lentamente os delicados braços e já com eles abertos começa a rodopiar, primeiro devagar e depois mais rápido, virando o corpo de um lado para o outro, emendando com pequenos saltos ornamentais, olhos cerrados, em uma dança singular e graciosa.  A figura esguia, quase etérea, deslizava pela areia revolvida pelo forte sopro do vento que fazia ondular a fina camisola bordada nas beiradas.  Maya sorri inebriada e já perto dos altos coqueiros imita fascinada o vento que brinca com as imensas folhagens. Dança em frente às árvores, imitando seus movimentos, os passos ligeiros em consonância com o ritmo intermitente dos sopros e lufadas, às vezes mais apressados, outras vezes parecendo longos suspiros.  

Da janela, Eva percebe que Maya mais uma vez dançava com o vento. Interrompidos em seus afazeres, os pescadores olhavam curiosos na direção da menina e dos coqueirais. Há três anos a família vivia em João Pessoa, na Paraíba, onde o pai Samuel instalou uma loja de tecidos de seda e tafetá. Batya trabalhava ao lado do marido e tinha uma boa clientela para seus vestidos de festas.

Bela estava casada e morava com a família. Uma vez por ano alugavam uma casa na praia de Tambaú para um breve descanso. Maya aguardava ansiosa a temporada de praia. Gostava de ver os pescadores sentados embaixo das caiçaras revestidas de palha, indo e voltando do mar, com suas redes e peixes. Navegar na jangada de Pedro era a diversão preferida, assim como escutar suas histórias assustadoras sobre criaturas gigantes, meio homem, meio peixe, que nas noites de lua cheia rastejavam pela areia e raptavam as moças mais bonitas do lugar.

Maya gostava de desenhar e pintar. Através de uma cliente, Batya conseguiu uma vaga em uma escola onde havia professoras talentosas nessa arte. Era um colégio administrado por freiras francesas e ficou combinado que a filha teria aulas de pintura e bordado. Em pouco tempo, Maya já pintava aquarelas que recebiam elogios das professoras. – A menina tem talento, diziam. Precisa continuar o aprendizado em uma escola de Belas Artes. Talvez no Rio, talvez em Paris. Na ocasião, Samuel tinha ido a Recife a negócios e Batya já sonhava em se mudar para uma cidade maior pensando no futuro de Eva e Maya.

4

Tinham terminado o jantar quando Maya chamou a filha para conversar. Foram para o Jardim de Inverno, uma varanda envidraçada onde Maya tinha vasos de gerânios vermelhos e samambaias. Sonia percebeu pelo semblante da mãe que a conversa não seria agradável. Sentaram-se em silêncio em volta da mesa redonda de madeira branca. Sonia tinha terminado o científico e se preparava para o concurso de ingresso na faculdade de arquitetura.

- Você vai ficar um tempo em Israel, disse Maya em voz baixa, os olhos fixos na filha. Já falei com a irmã de seu pai. Ela vai receber você de braços abertos, completou. Ao escutar a sentença, Sonia se ergueu da cadeira, deu às costas e seguiu para o quarto. Quando seus irmãos menores quebraram a promessa e contaram de seu namoro com João, ela sabia que vinha castigo pela frente.

Sônia era a cópia da mãe. Alta, magra, longos cabelos castanhos, feições harmoniosas e belos olhos azuis que causavam impacto à primeira vista. João era filho da professora de Geografia, morá Cíntia, do Hebreu Brasileiro, a escola judaica onde Sonia estudava desde a infância. O rapaz, que já cursava a faculdade de Direito, não  era judeu e estavam namorando às escondidas há dois anos.

Na primeira conversa séria com a filha, depois da revelação do namoro secreto, Maya foi explícita. – Não saímos da Europa, eu e teu pai, para vermos uma filha nossa envolvida com um goy (não judeu). Isso jamais aceitaremos, afirmou.



Sonia chegou a Israel com a cabeça cheia de planos para dar um jeito de retornar logo ao Brasil. Mas, quis o destino que ela encontrasse em sua primeira visita à faculdade de Tel Aviv, um jovem insinuante, de corpo atlético, sorriso largo, nascido em berço de ouro e pronto para satisfazer suas vontades. Eli estava no último ano do curso de administração e trabalhava com o pai no ramo de diamantes. Em menos de um ano casaram e Sonia adiou seus planos de cursar arquitetura. Vieram os filhos, Ilana, Ava e finalmente Aaron, o menino tal almejado por Eli.

5

Naquela tarde cinzenta, Maya retornou do cemitério com os filhos. Um enfarte fulminante matou Tobias enquanto almoçava com amigos no centro. Rony e Rubem ficariam mais dois dias com a mãe antes de voltarem para São Paulo. Sonia planejou a estadia de uma semana. Iria encontrar algumas amigas dos tempos do ginásio no Hebreu Brasileiro. Maya pensou que gostaria de estar sozinha com sua dor, mas esse desejo poderia magoar os filhos. O sofrimento a tornava arredia, calada e solitária. Apesar dos 81 anos, o marido ainda gostava de encontrar os amigos e clientes de longa data, do tempo do escritório de contabilidade. Arrumava-se com esmero, de paletó, gravata e sapato social, chamava o táxi e partia para o centro para o almoço festivo. Quando voltava, lembrava Maya, vinha tão satisfeito, falante, cheio de histórias.

Os primeiros anos de casamento não foram fáceis para Maya. Tobias era calado, tinha seus hábitos e na maioria das vezes parecia distante dos problemas cotidianos. Maya compreendeu que tinha que resolver sozinha os problemas domésticos e familiares. Tobias tinha dois primos solteirões e uma vez ao ano os três realizavam um cruzeiro de dez dias para aproveitarem o período de descanso do trabalho.  Nas férias escolares, Tobias pagava para Maya e as crianças se hospedarem em um hotel fazenda no interior do estado, às vezes em uma pousada de praia, ou alugava uma casa por temporada na região serrana. Ele permanecia no Rio, cuidando do escritório.

Aos poucos Maya foi se esquecendo de si mesma, de seus sonhos e de tudo que um dia planejou. Ficou mais calada e contida. Com os filhos adolescentes, Maya teve um pouco mais de tempo e voltou a pintar. As lembranças de Tambaú se avivaram e as paisagens praianas e urbanas, de prédios coloniais e estradas de pedras, foram surgindo em sua memória para as telas a óleo.  Alugou um espaço em uma galeria no centro e depois de três meses recolheu os quadros. Os transeuntes passavam, olhavam ligeiramente e seguiam adiante. Desapontada, cobriu os quadros com lençóis e os esqueceu no quarto dos fundos da ampla casa da Tijuca. 

6

O encontro de Sonia com as colegas de colégio em um restaurante de Ipanema foi repleto de surpresas. Observou que o tempo havia maltratado as mais bonitas e feito menos estrago nas meninas não tão populares. Cada uma com uma história de vida, todas casadas, aparentemente felizes, com filhos, bons empregos, diplomas universitários e residindo na zona sul.

Entre um copo e outro de vinho, sua melhor amiga no colegial, Bertinha, contou em tom se segredo que foi convidada para um cargo importante em Brasília. Ela trabalhava na promotoria do Rio, e apesar da lisonja do convite teria que recusar porque não dava para ficar a semana toda longe dos filhos e do marido. - Ele é ministro do Superior Tribunal da Justiça, revela. O João, lembra?

Sonia, então, soube que João estava tendo uma carreira brilhante. – Quando você partiu, o João ficou mal. Chegou a chorar, confidenciou. Fiquei com muita pena. Somos amigos desde então. Aliás, a esposa dele é um doce, advogada também. Quer ouvir mais? indagava a amiga.

Já em casa, Sonia caminha até a varanda, acende a cigarrilha e pensa em tudo que ouviu. A amiga falava rápido, misturando tempo e datas. João só casou aos 38 anos, com uma jovem aluna de Direito, filha de magistrado, muito linda, “parece você, Maya, no colegial”.

Bertinha tinha ficado mais bonita com a idade. Envergando um terninho de linho, pouco lembrava a adolescente acima do peso, de rosto redondo e cabelos cacheados. – Me recordo que todos os garotos eram caidinhos por você, continuava. - E as meninas tinham uma inveja danada.

Balançando a cabeça, rememorava o passado. - Quando descobriram que você estava de namoro com o João, bem, foi como tivessem jogado uma bomba no colégio. Foi um disse me disse geral. Imagina ! O único garoto goy da escola, o filho da professora Cíntia ! Nossa ! Foi um escândalo !

Já no quarto estava no quarto copo de vinho, diante da sobremesa, Bertinha tinha o rosto afogueado pela bebida e pelas revelações. – Não resisti e contei pro João que você está no Rio, fiz mal? Diante do gesto de indiferença de Maya, prossegue: -  Ele primeiro ficou em silêncio e depois respondeu assim, vou reproduzir as palavras do João: “Superei, sobrevive e me sinto muito bem agora.  Afundei nos estudos e alcancei meus objetivos. Hoje sou um homem sem mágoas.”

Maya há muito tinha varrido da memória esse capítulo de sua vida. João foi o amor adolescente que não podia dar certo. Era sofrimento, paixão, insegurança, culpa, segredos.  Seus pais tinham razão: Israel foi a salvação. Abalada pelas palavras da amiga que trouxe para o presente um momento dolorido do passado, telefonou para o marido, falou com as filhas e Aaron, e se acalmou.  Eles eram a sua base emotiva, os alicerces de sua existência.  Em poucos dias estaria de volta ao carinho do lar, na amada terra santa que a abrigou e a encheu de felicidade desde o primeiro minuto de sua chegada.  Somente lá se sentia segura, altiva e dona de seus sentimentos. Só tinha a agradecer o seu ditoso destino.

Maya vê a filha na saleta, ao lado do telefone, e chega até ela. Sonia abraça a mãe e não consegue conter as lágrimas. – Agradeço muito a você, mamãe, e ao papai também, por terem me tirado daqui. Encontrei a felicidade em Israel. Na época, confesso, me pareceu um castigo, mas o tempo deu razão a vocês. E levando a mão ao coração, reforçou: - Hashem (D’us) olhou por mim, me protegeu e abençoou. Foi a melhor decisão e hoje entendo isso muito bem. Baruch Hashem !

7

Pedro ficou triste quando Maya partiu para a cidade do Rio de Janeiro. Gostava de ver a amiga dançar quando os ventos alísios se aproximavam da costa.  Muitas vezes, encantado, aplaudia  a menina  em seus saltos ornamentais. Quando a maré permitia, Pedro avançava pelo mar levando Maya para a pescaria. Mas, o que Pedro mais gostava era conversar com Maya e ouvir seus conselhos . Três anos mais velha que Pedro, a menina tinha umas ideias que faziam o menino matutar.  – Você precisa aprender a ler e escrever, Pedro.  Ser um homem de negócios, igual a meu pai. Ficar só pescando não vai te dar uma casa bonita e nem dinheiro para viver bem, insistia Maya nas conversas ao pôr do sol.

O menino cresceu, estudou, instalou primeiro um bar perto da praia e depois ampliou para um restaurante. O local virou atração turística pelos pratos de peixe da região. Com o tempo investiu em imóveis e ficou rico.  Um dos prédios que construiu, à beira da praia, ganhou o nome de Maya. Cultivava a esperança  de um dia encontrar a amiga de infância onde quer que fosse, ainda que velhinha, iria reconhecê-la, sonhava  



Uma vez, soube que uma mulher de fora, com sotaque, muito elegante e bem vestida , perguntou ao porteiro sobre a origem do nome do prédio. Pedro, com o coração aos saltos, passou o dia percorrendo a cidade contando com a sorte para encontrá-la. Poderia ser a Maya, pensou, ainda que considerasse a hipótese fantasiosa.  

Contratou um detetive para encontrar a tal mulher misteriosa. Primeiro em João Pessoa e depois no Rio. Com o fracasso da busca, uma obsessão estranha veio à tona e João percebeu, pela primeira vez, que Maya sempre esteve presente em seu inconsciente.  Ele se alfabetizou, trabalhou e alcançou a riqueza tentando mostrar a si mesmo que poderia estar à altura da menina de olhos azuis, tão linda quanto simples e encantadora.

Os anos se passaram e Pedro faleceu antes de completar 60 anos, em um desastre na principal rodovia da cidade.  Nunca deixou de pensar em Maya, um amor que o tempo foi revelando de uma forma inequívoca. Às vezes a esposa e os filhos viam Pedro silencioso, de olhar perdido, meio sorriso à beira da  imensa piscina da casa em estilo colonial, e não imaginavam no que ele estaria pensando.  Maya, a menina que dançava com o vento, aos poucos foi ocupando os hiatos de tempo e os sonhos de Pedro de uma forma doentia. Pagou um novo detetive  para descobrir seu paradeiro no Rio. Em vão. Tentou uma terapia de grupo e de alguma forma se sentiu melhor. Jamais contou à família sobre aquele amor obsessivo e impossível. Começou a beber um pouco a mais do que o desejável e no interior do carro que dirigia na noite chuvosa em que faleceu, foram encontradas algumas latas de cerveja vazias.  

8

O vento soprava forte naquela manhã de setembro. Era a época dos ventos no balneário de Cabo Frio, na região do Lagos. Maya sentada na cadeira de praia louvava a natureza que era um presente diário em sua vida.

Seis meses depois da morte de Tobias resolveu sair da casa na Tijuca. – Finalmente, comemorou Sonia pelo telefone. Sempre invejei minhas amigas que se mudavam para a Zona Sul.  Você não tem ideia, mamãe, como eu sonhava viver ao lado da praia, confessou.

Maya então revelou. – Lembra, filha, daquele balneário que a gente passou as férias? Você tinha uns dez anos.  Resolvi que vou pra lá.

Sonia engoliu em seco. – Mas é muito longe, mamãe! É um lugarejo de férias. Se você quer morar perto da praia, Copacabana é tudo de bom, argumentou.

Maya então contou que Bertoldo, o advogado que administrava os imóveis, já tinha alugado a casa da Tijuca para uma clínica médica e que na semana seguinte ela iria se instalar na casinha à beira mar. - É só atravessar a rua e se está na praia. Um sonho de lugar. Não se preocupe, filha, lá tem tudo que preciso. Agência de banco, supermercado, e até um cinema.

Sonia ouvia calada a mãe falar animada sobre o lugar que ela mal se lembrava. Só sabia que era uma praia de pescadores e ficava muito longe do Rio.  – Não é tão longe assim, replicava Maya, talvez umas quatro horas de ônibus. E é tudo tão lindo, descrevia. Uma cidade de interior com praia, mar e vento. Muito vento, aliás, enfatizava. -  Acho que estou quase feliz, filha, se isso é possível.

Maya viveu seus últimos anos inteiramente livre e em estado de graça como ela bem definia seu sentimento em relação a si e ao mundo ao redor. A natureza era a sua companheira de cama e mesa e as nuances de sua beleza e humores a encantavam. Chegou a pintar alguns quadros que exibia na varanda da casa e vendia principalmente para os veranistas que passavam por aquelas paragens. Andar na areia, comprar peixe e conversar com os pescadores que costuravam suas redes e arrumavam seus barcos na enseada da praia do Forte era rotina diária. Às vezes imaginava Pedro já homem feito, pele curtida pelo sol, mãos calejadas, retornando do mar em seu pequeno barco repleto de peixes.

Em suas andanças pela longa praia, fez amizade com a gente simples do lugar cujo sustento vinha do trabalho na areia, principalmente nos meses do verão.

Quando faleceu, de uma gripe que evoluiu em poucas semanas para uma pneumonia aguda, os filhos já estavam ao seu redor, avisados por Bertoldo, a quem Maya tinha um carinho especial pelos anos que trabalhou com Tobias. Transportada para um hospital no Rio, ainda resistiu alguns dias, mas sem recobrar a consciência.

9

Maya foi enterrada no cemitério israelita, conforme a tradição, e Sonia e os irmãos, pela primeira vez em muitos anos, se abraçaram, dominados por uma sensação de perda, tristeza e desconsolo que jamais imaginaram ter tamanha amplitude.

Avisados por Bertinha, os colegas da turma do Hebreu compareceram e Sonia percebeu que os amigos de seus irmãos também estavam presentes. – Somos yehudim (judeus) e precisamos ficar juntos não somente nas festas, mas principalmente em ocasiões difíceis, disse um dos colegas consolando o irmão.

Maya foi uma mãe presente, cuidadosa, preocupada e rígida quando a ocasião exigia. Mas, ao mesmo tempo, sem muitos arroubos de carinho e abraços. A beleza e a elegância que a tornavam alvo de olhares e elogios, perduraram por um longo tempo. A iniciativa de se isolar e morar sozinha numa pequena cidade do interior, distante de tudo e de todos, frequentemente era questionada pelos filhos. Contudo, diante da morte, da inexorabilidade à qual todos devem enfrentar, as memórias felizes da infância e da adolescência inundaram de amor e saudade os corações de Sonia e de seus irmãos.

No avião, retornando a Israel, Sonia percebeu que de agora em diante teria de conviver com um sentimento de vazio que a deixava à mercê da solidão e de uma incômoda melancolia. Engoliu o remédio de enjoo, fechou os olhos e rememorou o encontro com João, depois de tanto tempo. Ele estava ao lado de Bertinha, na cerimônia do enterro, um homem de cabelos e barba grisalhos, fisionomia serena e olhos tranquilos, elegante no terno azul marinho.

Depois de abraçá-la, João sorriu e segurou suas mãos. Sônia, emocionada, sentiu como uma névoa se dissipasse em seu horizonte. – Como está a morá Cíntia, perguntou. João contou que sua mãe tinha falecido há três anos, de câncer, e a grande maioria de seus alunos do Hebreu foram ao enterro e que ele era muito grato pelas homenagens e demonstrações de  respeito de todos. – Foi tocante e só tenho a agradecer a oportunidade que tive em estudar e conviver com vocês no Hebreu.

Sonia, finalmente, sentia-se em paz com seu passado. A generosidade de João de ir até ela, sem cobranças ou amargura, a emocionou. Lembrou como foram difíceis os primeiros dias em Israel, oprimida por sentimentos de impotência e dor. Uma semana depois de sua chegada ao país, recebeu a primeira carta de João. Seu coração disparou e sentiu um sopro de alento. – Não abra a carta, recomendou a tia de Maya ao entregar o envelope. Meses depois, olhando a pilha de cartas fechadas dentro do armário, escreveu para Bertinha comunicando seu noivado com Eli. As cartas cessaram e antes de jogá-las no lixo não conteve a curiosidade e abriu uma delas. O que estava escrito a perturbou: “Por favor, responde. Estou enlouquecendo de paixão. Sempre seu, João.”  Com a alma contrita, foi rasgando uma a uma as cartas, clamando aos céus para apagar de vez esse doloroso período de sua vida.

10

Na ligação de despedida, Bertinha anunciou a Maya que tinha combinado com a turma que anualmente, em novembro, depois das Grandes Festas (Rosh Hashaná e Yom Kipur) se encontrariam para um jantar de gala. – Clarinha, que está nos Estados Unidos, e Sofia, na Itália, já confirmaram, exultou. Espero que você venha também.

No aeroporto de Roma, enquanto esperava o voo final até Israel, Maya voltou a ocupar os pensamentos de Sonia. Em conversa com a vizinha de Cabo Frio soube que Maya ficou doente depois de uma tempestade de chuva e vento que assolou a cidade. Ela estava na praia e ao invés de logo voltar para a casa, ficou dançando na areia por um bom tempo. Os pescadores me contaram, disse a vizinha consternada. – A propósito, um dia dona Maya me revelou que quando menina dançava com o vento, lá em Tambaú, onde disse, viveu os melhores anos de sua vida.

Sonia olhava a praia que se descortinava pela janela. A beleza do lugar era inquestionável. Ao fundo, a fortificação centenária caiada de branco ladeada pelo mar de um azul intenso. Acenou com a cabeça dando a entender que sabia da infância da mãe, o que não era verdade. Chegava a triste conclusão que não conheceu a mãe. – Acho que sob esse pedacinho de céu ela também foi muito feliz, pensou em voz alta, procurando segurar o choro que, malgrado seus esforços, teimava em irromper a qualquer instante.

Bertoldo a esperava no carro e Sonia pôs os óculos escuros ao sair da casa à beira mar. – Vou sentar no banco de trás, avisou.  Não se incomode comigo, Bertoldo.  Só preciso de um canto para chorar, suspirou, enquanto o homem fazia a curva e dirigia rumo ao aeroporto. Na bagagem, Sonia levava a última tela pintada por Maya, com pescadores, barcos e redes. A menina ao fundo, meio escondida entre os coqueirais, surpreendeu Sonia. Sua camisola de um tecido fino e drapeado  ondulava como as folhagens nas copas das árvores. Na areia, pés descalços, com uma bata de algodão cobrindo o corpo, Maya olhava serena o horizonte furta-cor da manhã, onde um sol esplendoroso emergia de dentro do mar anunciando mais uma jornada terrena singular, surpreendente e ininteligível.