Por Sheila Sacks
A Inquisição espanhola e portuguesa
desestruturou as comunidades judaicas na Península Ibérica, uma das mais cultas
e prósperas da época, com grande parte de seus membros partindo para o exílio
ou se convertendo à força ao cristianismo. Instalada oficialmente na Espanha em
1478, a Inquisição precedeu em 14 anos o édito real de expulsão dos 300 mil
judeus que viviam nas terras de Sefarad. Mas a perseguição aos judeus e
cristãos-novos (marranos) foi além do continente europeu e atingiu as colônias
das Américas, com a instalação de tribunais do Santo Ofício em várias
cidades. Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte sob a acusação de
prática secreta de ritos judaicos.
“Esta singela e preciosa chave de ferro simboliza o magnífico lar de
nossos antepassados espanhóis. Meu bisavô amarrou a chave em seu cinto e nunca
mais se separou dela” (do livro “A saga do marrano”, de Marcos Aguinis).
Em 2015, judeus expulsos da Espanha e Portugal há 523 anos terão a
oportunidade de reconquistar as suas nacionalidades ibéricas a partir das novas
leis aprovadas em ambos os países. A estimativa é que existam 3,5 milhões
de judeus praticantes de ascendência sefardita (originários da Península Ibérica
– Sefarad, em hebraico) vivendo em Israel, França, Estados Unidos, Turquia, México
e em países da América do Sul.
No Brasil são 40 mil judeus sefarditas (que seguem a religião judaica) e
outros milhares de descendentes de judeus originários da Espanha e Portugal que
se afastaram do judaísmo há dezenas de gerações. Para essa grande maioria não
será fácil preencher todos os requisitos burocráticos e legais para a obtenção
das cidadanias.
As dificuldades para comprovar com documentos válidos uma origem
familiar que remonta a um passado de cinco séculos certamente vão barrar a
pretensão não só dos que se mantêm dentro das normas religiosas judaicas como
principalmente daqueles descendentes de marranos (vocábulo
espanhol depreciativo que designava os cristãos-novos) ou B’nei
anussim (“filhos dos forçados”, em hebraico), que por
razões diversas se distanciaram de sua religião nativa.
Busca de identidade
No livro “Nunca podras volver a casa” (Nunca voltarás a casa), o jornalista espanhol José María
Carrascal, por muitos anos correspondente em Nova Iorque do diário “ABC”, de
Madri, narra a busca íntima e pessoal de um professor universitário por suas
origens na antiga Sefarad. Publicada em 1997, a história acompanha a viagem do
americano Simon Told (Simón Toledano) à cidade espanhola de Toledo, logo após a
morte da avó de origem sefardita. Ele parte ao encontro de um passado remoto de
muito sofrimento, sangue e glória, levando consigo a chave da casa deixada para
trás há centenas de anos e zelosamente guardada por seus antepassados.
Coube ao casal de reis católicos Fernando II, do reino de Aragão, e Isabel I, de
Castela editar o decreto de expulsão dos judeus da Espanha, em 31 de março de
1492, logo após obterem a rendição de Granada, o último bastião mourisco nas
terras ibéricas. O historiador especialista em história judaica medieval,
Yitzhak Baer (1888-1980), calcula que provavelmente existiam 300 mil judeus na
Espanha nessa época. Pelo decreto, os judeus tinham três meses para sair do
país ou optarem pela conversão. Cerca da metade dos judeus se tornou cristã e
uma multidão em torno de 150 mil se lançou ao exílio.
Muitos judeus fugiram para Portugal – aproximadamente 80 mil -, mas
quatro anos depois, em 5 de dezembro de 1496, o rei português Dom Manuel I promulga
um decreto semelhante ao édito dos reis espanhóis, impondo a conversão como
condição para a permanência da comunidade judaica no país. Tem início um novo
êxodo e o rei fecha os portos, com exceção o de Lisboa, para tentar impedir a
fuga em massa. Aqueles que ficam são batizados à força e embora publicamente se
apresentem como seguidores da fé católica, uma grande parcela continua seguindo
os ritos judaicos em segredo.
Entretanto, havia um clima de intolerância em relação aos “conversos” ou
cristãos-novos que culminou no massacre de 1506, quando mais de dois mil
convertidos foram mortos nas ruas de Lisboa por uma população assolada pela
peste negra (bubônica) e pela fome que culpava os judeus recém-batizados por
tais infortúnios.
Depois da carnificina que durou três dias os remanescentes judeus
partiram de vez de Portugal tomando o caminho para o norte da África (Marrocos,
Tunísia, Argélia, Egito), Turquia, Grécia, Europa Central e as terras do novo
mundo na esperança de se libertarem das perseguições e do medo. Três décadas depois, em 23 de maio de 1536, é instituída oficialmente a
Inquisição em Portugal, no reinado de D.João III.
Inquisição além-mar
Na Espanha, antes mesmo do decreto de expulsão dos judeus, os reis
Fernando e Isabel, com o apoio da Igreja, já tinham instalado oficialmente a
Inquisição em 1478, nomeando o frade dominicano Tomás de Torquemada como
Inquisidor Geral. Por mais de 300 anos a Inquisição espanhola (que se estendeu
até 1834) perseguiu e matou judeus e conversos, sob a acusação de “prática
secreta de ritos judaicos”.
Com a descoberta do novo mundo, vieram os missionários seguidos pelo
aparato da Inquisição que implantou tribunais do Santo Ofício em
Lima, no Peru (1570), na cidade do México (1571), e em Cartagena das Índias, na
Colômbia (1608). No livro “A Inquisição” (1999), o pesquisador e escritor
Michael Baigent (1948-2013) e seu parceiro Richard Leigh (1947-2007) detalham a
presença dessa instituição no continente americano.
Centenas de cristãos-novos de ascendência portuguesa acusados de serem
judeus clandestinos tiveram as suas propriedades confiscadas, foram presos e condenados
por esses tribunais a morrerem nas fogueiras dos autos de fé (execução coletiva dos sentenciados). A
primeira dessas execuções teve lugar na cidade do México em 28 de fevereiro de
1574, mas foi em 11 de abril de 1649 que aconteceu o chamado “grande auto”,
envolvendo 109 acusados de heresia, sendo que 20 deles foram queimados vivos em
praça pública. Em Cartagena, o primeiro auto de fé se deu em fevereiro
de 1614, com 30 condenados, e em Lima, uma execução ocorrida em 1639 arrolou 80
réus, dez dos quais foram imolados na fogueira acusados de prática de judaísmo.
Entre eles, o médico Francisco Maldonado da Silva, nascido na província de San
Miguel de Tucumán, na Argentina.
Chave de
casa
Acerca desse personagem, um cristão-novo que
reassume o judaísmo e é condenado à morte na fogueira pela Inquisição,
documentos registram que Francisco Maldonado era filho de um cirurgião
português converso, Diego Nuñez da Silva, de origem lisboeta, e de mãe
católica, Aldonza Maldonado. Nascido em 1592, exatamente um século após a
expulsão dos judeus da Espanha, ele é o protagonista do romance do escritor e
médico argentino Marcos Aguinis.
Exibindo um retrato sem disfarces de um período
colonial cruel e corrupto que se impôs nos territórios da América do Sul sob o
domínio da coroa espanhola e da Inquisição, “A saga do marrano” (1991) também
inclui em sua narrativa a tradição sefardita de preservar a chave da casa
original, sempre sonhando com um possível retorno. Em um dos capítulos, Diego
Nuñez revela a um Maldonado criança o segredo da chave escondida: “Meu pai
entregou-a para mim, em Lisboa. E ele recebeu de seu próprio pai. Provém da
Espanha, de uma formosa casa na Espanha. Nossos antepassados acreditavam
retornar a essa casa. Por isso, guardamos a chave.”
Maldonado foi queimado vivo em um domingo, 23 de
janeiro de 1639 (aos 47 anos). Com base em documentos do arquivo da Inquisição,
o escritor Ricardo Palma (1833-1919), um dos intelectuais peruanos mais
respeitados, descreveu o momento da execução em seu livro “Anais da Inquisição
de Lima”, publicado em 1863. “Às 3 da tarde, no instante em que iam se lançados
às chamas os dez condenados, armou-se um furioso furacão, fenômeno pela
primeira vez visto em Lima. A violência do vento rompeu o toldo que recobria o
palanque, levando o cirurgião Maldonado a exclamar: - Assim dispõe o D’us de
Israel para ver-me cara a cara lá do Céu onde está!
Mais de 30 mil marranos foram condenados à morte e
queimados vivos pela Inquisição. Outras dezenas de milhares foram submetidos à
tortura física. Qualificação injuriosa, marrano significa em espanhol, segundo
Aguinis, “porco jovem recém-desmamado”, referência irônica à proibição dos
judeus de comer carne suína. A palavra se disseminou entre as populações
espanhola e lusitana que a usavam como um insulto aos judeus convertidos ao
cristianismo que mantinham em segredo laços com a sua antiga fé.
Brasil Colônia
Em Portugal, a Inquisição estabeleceu-se em 1536 e
somente foi abolida 285 anos depois, em 1821. Contava com quatro tribunais instalados
em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa, a então colônia portuguesa na Índia. No Brasil
Colônia, os culpados de crimes contra a fé católica eram levados para Lisboa
para serem punidos. Cerca de 1.200 cristãos-novos foram presos nas capitanias
brasileiras acusados de prática de judaísmo. O historiador português do século
19, José de Lourenço de Mendonça, informa em seu livro “A Inquisição em
Portugal” que ocorreram 760 autos de fé,
com 31.349 sentenciados e 1.813 execuções, resultantes de mais de 40 mil
processos.
Um dos processos mais conhecidos foi o que condenou o teatrólogo e poeta
Antônio José da Silva, descendente de cristãos-novos. Nascido no Rio de Janeiro em 1705, ele foi executados
pela Inquisição, em Lisboa, depois de ser preso algumas vezes. Historicamente
conhecido como “o judeu”, Antonio da Silva estudou direito na Universidade de
Coimbra e escreveu poemas, sátiras, comédias e libretos para óperas. Acusado de
“judaizante”, foi amarrado a um poste, degolado e depois jogado à fogueira no auto de fé de 18 de outubro de 1739. Tinha
34 anos.
Para os inquisidores, a família do poeta, pelo lado materno, ainda
preservava algumas tradições judaicas como limpar a casa às sextas-feiras (para
o descanso de sábado) e cumprir o “grande jejum de setembro” (referência ao Yom Kipur, o dia do perdão,
quando os judeus permanecem até 25 horas sem comer e beber). A mãe e a esposa de
Antonio da Silva também foram perseguidas e presas pela Inquisição.
Rabino marrano
Em 1957, um pouco mais de um século após a tragédia da Inquisição ser
definitivamente extirpada na Península Ibérica, nascia em Palma, na ilha
espanhola de Maiorca, aquele que seria o primeiro rabino marrano da história.
Proveniente de uma família católica praticante que ia semanalmente à igreja, Nicolau
Aguilo iniciou sua revolução espiritual ainda na pré-adolescência. A revelação
da mãe de que eram descendentes de “chuetas” (termo pejorativo catalão que
significa ‘porco’, equivalente ao termo marrano) abalou o menino, mas também o
fez decidir a abraçar a sua herança judaica. Viajou para Israel, estudou
profundamente o judaísmo, converteu-se formalmente e assumiu o nome hebraico de
Nissam Ben-Avraham.
Em 1991, ele tornou-se rabino e 20 anos depois foi enviado à Espanha
como emissário religioso da organização “Shavei Israel” (Retorno ao povo
Israel). Desde 2010, o rabino Nissam, de 58 anos, atende as comunidades
marranas de Barcelona, Alicante, Sevilha e Palma de Maiorca, ministrando aulas
de religião e de conhecimento da cultura e tradições judaicas a todos que o
procuram. Mas, a sua principal missão é ajudar aqueles que pretendem assumir
oficialmente a “perdida” identidade judaica.
O diretor da “Shavei Israel”, Michel Freund, em entrevista ao jornal
israelense “Jerusalem Post” (2.8.2010), falou da importância do trabalho da
instituição, sediada em Jerusalém, que mantém atualmente emissários na Espanha,
Portugal, Polônia, Rússia, Itália, Colômbia e El Salvador. Disse ele: “Quando
as pessoas descobrem que têm raízes judaicas, elas desenvolvem uma afinidade em
relação a Israel e ao judaísmo, mesmo permanecendo católicas.”
A reportagem destaca a probabilidade de a Espanha e Portugal abrigarem
mais de 100 mil descendentes de marranos, e o Brasil, mais de três milhões.
Segundo a matéria do jornalista Mark Rebacz (“First ex-marrano israeli rabbi
returns to Spain as emissary”), pesquisadores do tema avaliam que nosso país reúne
a maior comunidade de B’nei
anussim do
planeta.
Hoje, o Brasil tem 107 mil judeus. A Espanha, 12 mil e Portugal, em torno de 1.500.
Hoje, o Brasil tem 107 mil judeus. A Espanha, 12 mil e Portugal, em torno de 1.500.