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segunda-feira, 22 de maio de 2023

O Mistério do Livro de Rezas – Da série Histórias que Mamãe contava

  /   Sheila Sacks   /



Chana acordou sobressaltada. Pela terceira vez sonhava com túmulos sendo destruídos, gritos, janelas quebradas, labaredas enchendo as ruas de fumaça. A experiência a aconselhava a ficar em silêncio. Única mulher de uma série de três filhos homens, Chana chegou ao mundo chorando muito e sem grande festa.  Seu pai era sapateiro na pequena cidade de Yedinitz, na Bessarábia, e desde cedo teve que ajudar a mãe a criar os irmãos. A mãe, Fruma, sofria dos nervos, tinha pesadelos constantes e dores de cabeça que a faziam urrar pelo quarto. Nesses dias de horror, o pai de Chana chamava a parteira/rezadeira que com suas palavras mágicas e mãos abençoadas acalmava a mulher, dissipando o espanto e o medo no olhar das crianças.

Itzhak, assim se chamava o sapateiro, já havia exposto o problema de Fruma para o responsável religioso que conduzia as preces na pequena edificação que abrigava os judeus nos ofícios do shabat.  Muitas vezes, a doença impedia a mulher de participar do micvê, o  sagrado banho ritual, e de preparar a ceia de erev  shabat, o jantar especial das sextas-feiras para a família. Num desses encontros, vendo a tristeza e o desconsolo do homem, o chefe da congregação tirou da estante um livro de orações de capa marrom, dura e envernizada, com frisos dourados nos cantos e o desenho de dois leões alados no centro.  Fez uma benção e entregou ao sapateiro com a recomendação de que a mulher rezasse as três preces de Shemá Israel (Escuta Israel) após o anoitecer.

Como por milagre, Fruma parou com os pesadelos e as dores de cabeça diminuíram. Quando faleceu de tuberculose no gelado inverno de 1898, Chana teve que assumir a direção da casa aos dezenove anos. O caçula de sete anos, Mendel, era um menino franzino, de saúde delicada que a deixava apreensiva. Os outros dois irmãos, de quatorze e quinze anos, se preparavam para ir estudar na yeshiva, o seminário ortodoxo na cidade de Kichinev, por ação e bondade do chefe da congregação que acompanhou todo o drama da família do sapateiro.

Naquela manhã, Chana abriu a gaveta da mesinha de cabeceira da cama dos pais, e retirou com cuidado o livro de rezas, o sidur, que sua mãe lia respeitosamente nos primeiros minutos do anoitecer. A primavera tinha chegado e já pintava de vermelho as trepadeiras da cerca que separava a casa da rua. Há três meses Fruma tinha falecido e Chana estava angustiada pelo seu sonho repetitivo. A primeira vez que o fenômeno se manifestou tinha oito anos e correu para a mãe esbaforida. Fruma segurou a filha pelo braço e a advertiu. – Ignore essa bobagem, Chana.  Sonhos não significam nada.

 No entanto, ainda que rezasse o Shemá Israel todas as noites, Fruma continuava a ter sonhos incompreensivos que ela gostaria de entender. Uma vez criou coragem e falou com Itzhak. O marido, já sem paciência para esse assunto, exclamou aborrecido.  – Por D’us mulher! Não existem sonhos bons ou sonhos maus. Já te disse mil vezes o que o ancião não se cansa de repetir: os sonhos de profecias e revelações se findaram com os profetas, há mais de dois mil anos.  

Fruma baixou os olhos, deu as costas e nunca mais falou sobre os seus sonhos. Todos os dias quando abria o sidur nas preces de Shemá Israel ( Shemá Yisrael, Adonai Elohênu, Adonai Echad - Ouve, Israel, Adonai é nosso D’us, Adonai é Um), algumas  letras hebraicas como por encanto se desprendiam do livro e ficavam suspensas no ar, com um intenso brilho azulado. As letras, sempre as mesmas, a fascinavam, mas também a intrigavam. Resolveu transcrever as letras mágicas no velho caderno de receitas da mãe que em breve seria de Chana, uma tradição que vinha de sua bisavó. O caderninho continha receitas especiais para o Pessach, a Páscoa Judaica, escritas em iídiche, o dialeto derivado do alemão usado pelos judeus ocidentais.  Mas, na noite seguinte, para a sua surpresa, a visão das letras fulgurantes se dissipou. Integradas no texto, assim permaneceram até o último suspiro de Fruma, sem nenhum sinal de que algum dia foram tridimensionais e resplandecentes.    

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Naquela noite, com o livro de rezas nas mãos, Chana começa a recitar em silêncio o Shemá Israel, como Fruma fazia.  Está emocionada e suas mãos estão trêmulas. Ao findar os versos uma espécie de clarão azulado ofuscou seus olhos e logo percebe que algumas letras hebraicas parecem ondular sobre o livro aberto, em uma fluorescência luminosa. Em poucos segundos Chana é tomada por um sentimento de imensa paz, um bem estar que jamais experimentou em toda a sua vida. Pela primeira vez, ela se vê como um ser humano especial e único, amada pelo Criador.

Por meses Chana vivenciou uma alegria interior que se renovava todas as noites ao ver a ascensão das letras mágicas durante o Shemá Israel. Uma tarde, ao procurar uma receita de Pessach, Chana se deparou com as letras hebraicas na borda da página do livro de receitas de Fruma e reconheceu a caligrafia da mãe.   Imediatamente entendeu que Fruma também experimentou o milagre das letras e guardou para si. Chana, então, resolve registrar as suas letras luminosas no caderninho para jamais esquecê-las.

Na noite seguinte, inesperadamente, as letras não ascenderam iluminando o sidur. Mas Chana já tinha se tornado outra mulher, mais confiante e feliz. Haviam se passado cinco anos desde a morte de Fruma, e dez meses que o pai foi enterrado após um mal estar súbito que o fulminou enquanto trabalhava na confecção de uma botina para o policial da cidade.  Chana encontrou o pai caído no chão da oficina, um filete de sangue escorrendo pelo nariz. O ano era 1903 e seus irmãos, agora auxiliares da sinagoga de Kichinev, viriam em Pessach para buscar o caçula que iria estudar na yeshivá.

Mas, semanas antes, uma notícia terrível abalou Chana quando foi comprar na taberna o vinho para ceia da Páscoa. Tinha chovido de madrugada e apesar do sol da manhã se avizinhar generoso, a lama da estrada tornava mais difícil o trabalho da mula em mover a carroça. Na aldeia, ela logo percebeu a agitação das pessoas. Então soube do pogrom (massacre) em Kichinev que matou dezenas de judeus, destruindo casas e lojas e não poupando mulheres e crianças. Em uma rodinha de mulheres, Chana ouviu estupefata que centenas de mães e filhas foram profanadas, vítimas da selvageria dos agressores.

Retornou a casa com um pressentimento mau que persistiu por dias. Preparou a mesa de Pessach com o coração apertado reservando as duas cadeiras das extremidades para seus irmãos, estudiosos da Torá, a bíblia hebraica que compreende os cinco livros de Moshê. Chana estava noiva há dois meses de Avraham, um viúvo vinte anos mais velho e sem filhos, por meio de um shider, o arranjo matrimonial feito pela casamenteira, esposa do ancião mias respeitado da aldeia. Os dois, acompanhados do caçula Mendel, agora um rapazote calado e introspectivo, aguardaram toda a noite pela presença dos visitantes. Ao amanhecer, Chana teve a certeza que os irmãos estavam entre as vítimas do pogrom.

Avraham se ofereceu para ir a singoga de Kishinev levar Mendel que sonhava em sair da aldeia e estudar na yeshivá. Ele retornou uma semana depois com a notícia que Chana mais temia. Os irmãos foram mortos nos distúrbios ao tentarem salvar mulheres e crianças das turbas violentas.  Desolada, Chana chorou vários dias e na sua consciência foi se formando uma convicção.  Tinha que deixar a Bessarábia e ir para outras terras, a América talvez.

Avraham tinha um irmão, escriba dos rolos da Torá, que vivia na cidade sagrada de Hebron, na Judeia, sob o mandato britânico.  O movimento hassídico (ortodoxo) estava convocando os judeus para povoarem Hebron, primeiro lar do patriarca Abraão.  Chana e Avraham apressaram o casamento em uma cerimônia de poucos convidados, venderam os pertences e partiram para a terra de seus antepassados. Ao entrarem no trem para Odessa, de onde embarcariam no cargueiro até a Palestina, Chana não verteu uma lágrima. Partia da terra natal com o coração endurecido pelo luto forçado. Das poucas coisas que Chana levou, lá estavam o mágico livro de rezas e o caderninho de receitas de Fruma. Acondicionados na bela echarpe de seda, presente da casamenteira, que na plataforma de embarque, emocionada e chorosa, desejou aos viajantes uma vida longa e venturosa. 

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 Rachel com vinte e três anos já tinha quatro filhos. Casou muito jovem, aos 17 anos, como a maioria das mulheres da comunidade hassídica de Hebron. Morava no apartamento de cima da casa de Chana e Avraham em uma construção de pedra como tantas na cidade. Seu marido Moshé era professor da yeshivá local e sua rotina de mãe e dona de casa vinha sendo perturbada por sonhos repetitivos já algum tempo.  A guerra na Europa havia terminado há dez anos, mas todas as manhãs ela acordava transpirando e arfando com a sensação de que aviões jogavam bombas enquanto corria por um longo corredor. 

Em uma manhã, caminhando em direção ao mercado, Rachel contou para a mãe os sonhos que a atormentavam. Chana sentiu um sobressalto. Rachel era a única filha, muito amada, centro de seu mundo. Quando os netos foram chegando, um a um, todos lindos e com saúde, Chana bendisse o dia que partiu de Yedinitz para a terra dos profetas. A convivência com os vizinhos muçulmanos era pacífica e a comunidade judaica era unida e fervorosa.

A revelação de que a filha também tinha sonhos estranhos que se repetiam ao longo das noites a deixou preocupada. As crianças pequenas demandavam muita atenção e Raquel não devia ficar dispersiva ou atormentada por sonhos. Sem relutar, deu o livro de rezas para Rachel com a recomendação de recitar o Shemá Israel depois do anoitecer, sempre que possível. Rachel assim o fez e para seu assombro, algumas letras hebraicas começaram a luzir como estrelas diante de seus olhos. Falou com Chana sobre a visão. A mãe sorriu e escreveu as letras ditadas pela filha no livrinho de receitas.

Com o findar do verão do ano secular de 1929, e com a proximidade da festa do Rosh Hashaná, o ano novo judaico, Chana observou no mercado um comportamento estranho por parte de alguns vendedores e comerciantes muçulmanos. Uma vizinha a alertou sobre o clima de desconfiança que existia em Jerusalém. Boatos corriam de que os judeus planejavam destruir a mesquita do Monte do Templo. Então, uma manhã, quando Moshé se preparava para ir a yeshivá, as ruas do bairro judeu começaram a ser invadidas por turbas de arruaceiros armados de facas e barras de ferro. Rachel chamou os pais, reuniu os filhos, trancou portas e janelas e foram todos para o porão, nos fundos do prédio. Moshé já havia saído em direção à Yeshivá, sem ouvir os apelos de Rachel.

Depois de dois dias de sofrimento e muito medo, Rachel viu que alguns vizinhos saíram das casas. Pensou logo em Moshé e ficou aguardando sua chegada. Mas, a cada minuto de espera, Rachel ficava mais aflita.  Decidiu ir até a yeshivá.  Nos arredores da escola, o ambiente era de destruição e sangue. Alunos e professores tinham sido assassinados, a escola destruída e havia dezenas de feridos por toda a cidade. Grupos de judeus reunidos na calçada reclamavam da guarda britânica que não conteve o massacre.  Entre os mortos estava Moshê, o marido de Rachel, que lutou para salvar seus alunos.

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Morando em Jerusalém, Rachel jamais esqueceu os terríveis momentos que viveu em Hebron. Chana e Avraham lamentavam dia após dia a morte do genro considerado por ambos um filho muito querido. Os dois ficaram hipertensos e com problemas de coração. Em 1940, Chana e Avraham já tinham falecido e Rachel cogitava reiniciar a vida na América. Conflitos diários estouravam em Jerusalém  entre milícias judaicas, forças britânicas e árabes. Na Europa, a ascensão do regime nazista e a perseguição aos judeus reacenderam o pavor e o sofrimento que ela vivenciou em Hebron.  

Casualmente Rachel descobriu seu talento para a pintura. Por conta própria começou a pintar paisagens de Jerusalém em telas a óleo.  Algumas foram expostas em uma galeria em Tel Aviv e vistas por um colecionador americano que se propôs a apresentar seus trabalhos no exterior. Ele era marchand e tinha galerias em Nova York. O convite para a exposição incluía uma estadia patrocinada. Rachel não pensou duas vezes e aceitou de imediato. Seus filhos a apoiaram, com exceção do mais velho, Reuven.  Ele se preparava para entrar na Haganá, a força judaica paramilitar da Palestina que estava formando um grupo para ajudar os judeus de Varsóvia sitiados pelos nazistas. Rachel ainda tentou dissuadir o filho dessa loucura. Mas, em vão. Ela então embarcou para Nova York com o coração partido, mas a visão da estátua da liberdade lhe deu um ânimo inesperado. Meses depois casou com o marchand, foi morar em frente ao Central Park e se deu conta de que tinha tirado a sorte grande. O solteirão sessentão era um marchand conhecido e respeitado pelos artistas e suas galerias o tornaram um homem rico e generoso em suas doações às sinagogas.

Diante da reviravolta em sua vida, formou-se na cabeça de Rachel a certeza de que o antigo livro de rezas seria o talismã mágico capaz de transformar o pó em ouro. Encomendou uma caixa de madeira de lei, com tampa e fechadura dourada, inteiramente recoberta de veludo sobre a qual foi bordada com fios de seda e prata uma reprodução do sonho de Yaacov. Uma longa escada até o Céu, onde anjos subiam e desciam. Com a promessa do Altíssimo pintada em letras hebraicas: "Irei protegê-lo pelo seu caminho.” Nessa caixa especial e única, Rachel guardou o sidur como uma joia rara e, embaixo do livro sagrado, o caderninho de receitas de Fruma e Chana.

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 A conexão para Madri iria atrasar. A informação foi dada a Natan quando ele se aproximou do balcão para fazer o check-in. Naquele julho de 2012, o aeroporto de Burgas, na Bulgária, estava movimentado com as férias de verão. Após dois anos, Natan retornava ao Rio com o mestrado em Direito Internacional. Tinha concluído seus estudos na universidade local, através de uma bolsa que o favoreceu por ser neto de um judeu partisan búlgaro que lutou contra os nazistas na Segunda Guerra.

Lembrou de comprar um chaveirinho para Cléa, a empregada de mais de 20 anos de casa. De repente um estrondo vindo da parte externa do aeroporto estremeceu o salão de espera. As pessoas começaram a correr e rolos de fumaça escureceram a manhã. Natan foi para fora do aeroporto e viu o ônibus de turismo no estacionamento atingido pela explosão. Soube que o ônibus estava repleto de israelenses que vinham passar as férias nos balneários do país.

Com o aeroporto cercado de policiais, Natan só pode embarcar no dia seguinte. Havia dezenas de feridos e mortos. Se apressou em avisar seus pais e contou do cenário de horror e desespero.  Ester e Jaime suspiraram aliviados. Ester logo ligou para Sara, sua mãe, para avisar que o neto chegaria um dia depois do previsto. O noticiário na TV já mostrava o atentado em tempo real e Sara se emocionou ao entender do perigo que Natan escapou. O rapaz era filho único de Ester e temporão. Depois de vários tratamentos, a filha deu a luz perto dos quarenta anos.

Sara foi até o quarto, elevou ao coração o sidur que deu fim a sua depressão e agradeceu a D’us. Desde a sofrida morte da filha caçula, na década de 1950, Sara lutava contra a doença malvada e sorrateira que destruía sua vontade de viver. A garotinha nasceu com um problema de sangue e aos seis anos, apesar do tratamento intensivo, faleceu de leucemia. Desde então, a depressão tomou conta da vida de Sara de forma avassaladora. Deixou de ajudar o marido na joalheria, não conseguia se dedicar às duas filhas mais velhas, Ana e Ester, que se ressentiam de ter uma mãe ausente, às voltas com seus fantasmas. Rebelde e independente, aos quinze anos Ana foi estudar no Canadá e por lá ficou.

Sara até tentou uma internação terapêutica com base na natureza em uma fazenda no interior do Rio, mas a tristeza não a abandonava. Quando sua mãe Rachel faleceu em Nova York, Sara embarcou com a filha Ester para o enterro e as rezas que se seguiriam. Um dos irmãos de Sara, durante o período de Shivá, os sete dias iniciais de luto, veio até ela e lhe ofertou a caixa de veludo bordada com o livro de rezas e o caderninho de receitas. Rachel queria que Sara, sua única filha, ficasse com a relíquia, que antes foi de sua mãe Chana e da avó Fruma.

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Quando decidiu casar com um jovem refugiado da guerra que conheceu na sinagoga sefardita do Central Park, perto de casa, Sara se distanciou da mãe e só a viu pessoalmente mais duas vezes. Em uma viagem de turismo a Nova York e no casamento de Ester, quando Raquel fez sua primeira e única viagem ao Rio.  A família foi contra de imediato ao namoro. Boris era um rapaz alegre, otimista, sem papas na língua e cheio de ideias mirabolantes. Integrou uma milícia na Bulgária que lutou contra os nazistas e era destemido em suas ambições. Mas, a decisão de partir para um lugar como a selva amazônica não teve o aval da família de Sara. Ela brigou com a mãe e os irmãos e foi embora com Boris com a roupa do corpo.

Ficaram pouco tempo em Manaus. Um primo vivia no Rio e decidiram partir mais uma vez. Montaram uma pequena loja de conserto de relógios na praça Onze, perto do centro, e com o tempo abriram uma joalheria. Dois anos depois, já tinham uma filial em Copacabana e o negócio deu certo. Porém, a morte da filha caçula mudou o cenário de felicidade da família.  Sara entrou em depressão e não conseguia superar a doença. Tinha altos e baixos e no cômputo geral andava de mãos dadas com o sofrimento.

Mas, o livro de rezas de Rachel que Sara ganhou tardiamente foi sua salvação. Uma manhã acordou com a cabeça pesada, prenúncio da chegada da maldita, assim Sara se referia à depressão. A caixa com o livro de rezas permanecia na gaveta  do armário de roupas desde que a trouxera ao Rio, intocável, ao lado do álbum de fotos de seu exótico casamento em Manaus. Num impulso pegou o sidur e cuidadosamente procurou as preces de Shemá Israel. De tanto serem manuseadas, as páginas davam mostras de que não resistiriam por muito tempo.   

A reza acalmou o coração de Sara.  Tornou-se a avó mais dedicada de todas para o neto Natan. Assim se considerava, com muito orgulho.  Todo o amor que parecia ter se esvaído com a morte da filha, renasceu glorioso para o menino que cresceu nas asas da avó e que o adotou como filho, se isso é possível, exclamava em tom de brincadeira.  Levava Natan diariamente para o colégio judaico Barilan, às aulas de natação no Clube Israelita de Copacabana, o CIB, ao movimento sionista Bnei Akiva, aos aniversários dos coleguinhas, à praia, ao shopping, ao cinema e teatrinho. Ester era médica pediatra e sua agenda de trabalho muitas vezes a impedia de participar das atividades do filho.  A reviravolta na saúde mental da mãe, uma guinada de 360 graus, tornou a vida de Ester mais leve, mudou a visão que tinha sobre a ciência e a fez acreditar fortemente na prece e no amor como fatores de cura.

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 Yankel Verner comemorou o seu bar-mitsvá, a cerimônia de maioridade religiosa de treze anos, na mesma data de nascimento da mãe de Fruma, nos primórdios do século XIX.  Sexto filho de um pobre carroceiro de Odessa, Yankel foi aceito pelo rabino para morar em sua casa e ajudar nos serviços da sinagoga. Ele tinha dificuldade de aprendizado e era gago. A prole do rabino, composta de nove filhos, adotou Yankel como um irmão. Ao completar dezessete anos, Yankel preferiu viver no quartinho dos fundos da sinagoga, que considerava a sua verdadeira casa, e porque assim ficava mais fácil para ajudar nos rituais de shabat, nas cerimônias festivas e no Yom Kipur, o Dia do Perdão.

Yankel tinha uma mania. De andar sempre com seu livro de rezas escondido embaixo da camisa. Presente do rabino, Yankel decorou algumas palavras do Shemá Israel e as repetia mentalmente, várias vezes ao dia. Quando esquecia, recorria ao sidur. Uma noite, no percurso entre a casa do rabino e a sinagoga, Yankel foi atacado e morto a pauladas por baderneiros. Foi encontrado na manhã seguinte, estirado na rua e desfigurado. O livro de rezas, intacto, sob seu corpo. Começavam os primeiros pogrons contra os judeus no império russo.

Anos depois, um dos ajudantes da sinagoga foi transferido para Kishinev e levou consigo o sidur de Yankel. Quando soube que o centro judaico da pequena aldeia de Yedinitz carecia de livros religiosos, lembrou do sidur de Yankel e o enviou junto com outros livros.

E assim, o sidur acabou nas mãos de Fruma, a atormentada mãe de Chana, pela generosidade do idoso líder judaico da pequena aldeia da Bessarábia. De forma extraordinária, um século depois, sua neta Rachel, vivendo na cosmopolita Nova York, estava prestes a desvendar o segredo das letras luminosas transcritas no velho caderninho de receitas de Pessach. Participante de alguns seminários sobre a cabalá, a visão mística da Torá, Rachel aguardou por dois meses a audiência com o recolhido mestre em uma sinagoga no Brooklyn. O cabalista generosamente aceitou recebê-la em uma audiência particular, após o serviço religioso da manhã. Rachel estava disposta a abrir seu coração e revelar as incríveis visões que Fruma, Chana e ela própria presenciaram.

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 Muito antes de Reuven ser considerado oficialmente desaparecido, Rachel já tinha feito viagens para a Polônia e Israel a procura de indícios do filho. Mostrava as fotos de Reuven na esperança de alguém o reconhecer, não importando onde e quando.  Soube por um sobrevivente que Reuven esteve no gueto de Varsóvia nos dias finais de sua destruição. Conversou com um integrante de uma milícia polonesa que disse se lembrar vagamente de um rapaz com a aparência de Reuven, mas não tinha ideia do seu destino. Enfim, Rachel nunca deu por encerrada a sofrida busca, ainda que um agressivo câncer de pulmão estremecesse, por vezes, o ânimo de sua jornada. Dopada pelos remédios, em suas alucinações via Reuven nas areias brancas de uma praia do Havaí, feliz ao lado de amigos, acenando sorridente.

Em suas andanças solitárias atrás do paradeiro do filho, Rachel descobriu a cabalá por meio de uma amiga pianista que teve que abandonar a carreira por conta de uma artrose precoce. Ambas viajaram para a cidade de Safed, em Israel, berço da cabalá, para um curso intensivo sob a orientação de um recomendado estudioso.  Ao final, ele falou do mestre da sinagoga do Brooklin, a quem devia a maior parte de seus conhecimentos. Não foi fácil Rachel marcar um encontro com o mestre. Esperou por semanas. Quando o dia chegou, de maneira decidida e resumida, deixou de lado a possibilidade de ser tachada de louca, assim como a vergonha de expor uma história que poderia ser julgada como mentirosa e falou abertamente sobre as visões da avó, da mãe e dela também ao recitarem a oração do Shemá Israel.

O mestre ouviu tudo calado, franzindo o cenho algumas vezes, sem encarar a mulher que soltava o verbo descrevendo alucinações e visões mirabolantes. Marcou para a semana seguinte um novo encontro e aceitou que Rachel deixasse com ele o sidur e o caderninho de receitas, evitando decepcioná-la de pronto.

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Ao sair do hospital, a cada internação mais debilitada, Rachel pediu ao filho mais velho, Benjamim, que providenciasse o envio do sidur e do caderninho de receitas para Sara, a filha fujona. Dias depois, Rachel faleceu. Conversando com Sara, Benjamim relatou o contato da mãe com o mestre que atribuiu às visões das letras a uma exacerbação da imaginação que a força da prece e o processo de purificação da alma podem provocar na mente humana. – Os tempos dos sonhos de predição ficaram lá atrás, com nossos profetas, explicou.  Seria uma arrogância crer em uma indução profana do sagrado alfabeto hebraico. Benjamim contou ainda da compaixão do mestre em relação à mãe, confortando-a em sua angústia, acalmando-a em sua aflição. - Ele abençoou o sidur e ressaltou que a prece é o que acessa e atrai esta grande e intensa luz Divina. Assim, depois de alguns encontros, mamãe ficou serena, mais fervorosa em sua crença e, principalmente, mais tolerante com tudo e com todos, afirmou.

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 Com o corpo encharcado de suor, o mestre da cabalá se ergueu da cama com a certeza de que era meia-noite. Olhou o relógio da cabeceira antes de ir ao banheiro se enxugar. No escritório de prateleiras abarrotadas de livros, ele se sentou na poltrona em frente à janela de onde via as folhagens inquietas pelo vento parecendo figuras fantasmagóricas sob as luzes mortiças das lanternas dos postes de ferro.

A partir da noite em que assistiu petrificado o espancamento e morte de Yankel Verner em uma ruela do gueto, o mestre passou a dormir mal, acordando à meia-noite inquieto e assustado. Ele viu como estivesse presente Yankel proteger com o corpo o sidur, o que irritou ainda mais seus algozes armados de paus e pedaços de corda. Noite após noite, ele despertava de súbito com a visão de Yankerl inerte no chão de pedra, com a cabeça numa poça de sangue.   

Não era a primeira vez que o mestre da cabalá tinha visões de épocas passadas. Na verdade, o mestre não sabia que o rapaz que morreu espancado era Yankel Verner. As letras que assomaram diante dele, em tom azulado e fulgurante, ao ler Shemá Israel no sidur de Rachel, correspondiam ao ano de 1821, segundo a numerologia judaica. Cada letra com seu correspondente numérico.

 Estava exausto após passar o dia analisando e conjeturando sobre os três grupos de letras, todas iniciadas com a letra Alef, a primeira do alfabeto hebraico. Após várias simulações, chegou a conclusão de que cada conjunto de letras apontava para um determinado ano. E lembrando a história da família da Rachel fez a ligação entre os fatos. Fruma anteviu o ano de 1903, quando morreram seus filhos no pogrom de Kishinev. Chana anteviu o ano de 1929, onde morreu seu genro, marido de Rachel, que por sua vez anteviu o ano da queda do Gueto de Varsóvia, em 1943, ano do desaparecimento de seu filho Reuven.

Desvendando o segredo do livro de orações, assim suponha, o mestre da cabalá achou por bem manter o segredo resguardado. De alguma forma, o sidur funcionou como um oráculo não decifrado, apontando através das letras sagradas do alfabeto Alef-Bet as datas fatídicas.  Em sua avaliação, a revelação do mistério não ensejaria felicidade ou qualquer bem. Ao contrário, criaria mais confusão e tristeza. Fez uma benção antes de devolver o sidur para Rachel e achou importante redigir uma incisiva recomendação para que o livro de orações fosse enterrado, como dita a milenar tradição judaica, quando chegasse a hora.

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Duas semanas antes da celebração de mais um ano judaico, Natan se ofereceu em levar o rabino até o longínquo e velho cemitério no outro lado da cidade para enterrar o livro de rezas. Tinha descoberto que o velho sidur estava com várias páginas deterioradas, rasgando-se ao serem tocadas. Chegara a hora de enterrar o velho livro. Sua amada vovó Sara tinha falecido de complicações depois de uma queda, e no seu enterro não pode evitar de chorar copiosamente.  A mãe Ester conservava a caixa com o sidur e o caderninho de receitas como uma relíquia antiga de decoração.

Natan vivia com os pais. Depois da ocorrência dramática do atentado no aeroporto de Burgas, ele desistiu da carreira de direito internacional e se lançou a estudar sobre segurança patrimonial. Com o apoio do pai Raul, médico como Ester e muito chegado ao filho, Natan fez cursos no exterior e montou uma empresa de segurança. Logo se associou a uma seguradora e se tornou consultor de segurança para prédios em situação de risco, como sinagogas e escolas judaicas.  Apesar de algumas namoradas, Natan tinha a impressão de que ficaria solteiro. Sentia-se feliz e protegido na casa dos pais. Eles supriam toda a sua necessidade de amor e companheirismo. Às sextas-feiras ao pôr do sol, lá iam os três até a antiga sinagoga de Copacabana, onde Ester e Raul se casaram, para as abençoadas rezas do cabalat shabat.   

Em uma visita a um museu judaico na Holanda, Natan teve a ideia de doar o centenário caderninho de receitas em iídiche. O diretor da instituição aceitou de bom grado. Ester já tinha aprovada a sugestão do filho. Natan era a luz de seus olhos e agradecia todos os dias de tê-lo ao seu lado. O passado de sofrimento de Sara, que remontava à avô Rachel, a bisavó, Chana e a trisavó, Fruma,  continuava a pesar nos ombros de Ester, assim como o forte sentimento de pertencimento em relação a sua saga familiar. A medicina a salvou da depressão e da ansiedade genéticas, e a leitura do Shemá Israel a amparava espiritualmente. Mas, jamais se utilizou do lendário sidur, recitando suas preces no livro de orações de brochura vermelha adquirido na Terra Santa, presente de seu amado Natan.

 Quanto ao velho sidur, enterrado como foram Fruma, Chana, Rachel e Sara, este permaneceu presente na vida do mestre da cabalá, centenário em seu conhecimento e sabedoria. A visão da morte de Yankel Verner, um justo oculto de sua geração, o tirava da cama à meia-noite com o coração parecendo saltar do peito. Noite após noite, o mestre chamava a si as 22 letras do sagrado alfabeto hebraico, recitando-as como uma prece. Aos poucos a calma ia se aninhando e ele dormitava sentado na poltrona. O mestre sabia que sua pena só iria se extinguir quando o livro fosse enterrado, o que foi feito três décadas depois de sua morte, quando a primavera no Hemisfério Sul se avizinhava e tímidas margaridas assomavam no vaso de plantas de Ester. No aparador, ao lado da janela, a antiga caixa de madeira revestida de veludo de Rachel agora guardava um novo livro de rezas, um sidur de capa vermelha de couro com o selo de Jerusalém. Todas as manhãs Ester levava o livro de orações ao coração, recitava em silêncio a primeira frase do Shemá Israel, respirava fundo e um sopro de ânimo e felicidade a conduzia para mais um dia de trabalho. Mas, nas vezes que a insônia batia forte e uma espécie ansiedade e aflição ensaiavam desestruturar o seu cotidiano, Ester ia para a varanda olhar a lua e meditar acerca do velho livro de rezas das mulheres de sua família, com seus mistérios, letras luminosas, milagres e revelações entrelaçando vidas e almas através de gerações.

domingo, 16 de abril de 2023

O Novo Mundo e a Terra Prometida

 

 /  Sheila Sacks  /


A melhor testemunha é o documento escrito (
Carl Sandburg,  historiador e poeta americano/1878-1967)


O feriado de Columbus Day é comemorado anualmente nos Estados Unidos na segunda segunda-feira de outubro. No Brasil e em outros países do continente, a descoberta da América tem data certa, festejada em 12 de outubro, dia em que Cristóvão Colombo, no longínquo ano de 1492, se deparou com o horizonte de uma terra desconhecida.

 

Luis Torres, membro da expedição de Colombo, assim escreveu no diário de bordo acerca do histórico dia: “Sexta-feira, duas horas depois do meio-dia, Hoshana Rabá no calendário judaico (sétimo dia de Sucot – a Festa das Cabanas, dia de libertação e milagres, 51º dia após a ascensão de Moisés ao Monte Sinai), vigésimo primeiro dia do mês de Tishrei, no ano de 5253 depois da Criação.” Vale lembrar que os sete dias de celebrações de Sucot recordam as “Nuvens de Glória que rodearam o povo hebreu durante suas peregrinações pelo deserto, por 40 anos, a caminho da Terra Prometida”.

 


Torres era um judeu recém converso (provavelmente de nome Yosef ben Halevi HaIvri) e profundo conhecedor do hebraico, aramaico, árabe, espanhol, português, francês e latim. Seu pai foi um escriba dos rolos da Torá. Foi escolhido por Colombo para ser seu intérprete oficial. Torres assim relata a madrugada da descoberta: “Eu escutava toda a noite Rodrigo de Triana recitar os Tehilim (Livro dos Salmos)... Nós ficamos acordados toda a noite e com a primeira luz trêmula da manhã, um de nós avistou a terra. Rodrigo correu para avisar Colombo.”  Para a maioria dos pesquisadores foi Rodrigo de Triana quem gritou “Tierra!Tierra!” ao perceber uma silhueta diferente no horizonte. No calendário cristão era sexta-feira, 12 de outubro. A terra avistada era uma ilha nas Antilhas chamada pelos residentes de Guanahani, a qual Colombo deu o nome de São Salvador.

 

Coube a Luis Torres ser o primeiro europeu a pisar o novo mundo. Ele foi um dos 39 tripulantes que não voltaram à Espanha com Colombo, permanecendo no assentamento de Natividade, na Ilha de Santo Domingo (São Domingos) onde hoje estão a República Dominicana e o Haiti. Torres deixou as Antilhas em fevereiro de 1494, retornando à Espanha com doze navios de uma frota de dezessete que Colombo trouxera em sua segunda viagem ao novo continente, em dezembro de 1493. Meses depois, em abril de 1494, Colombo teria deixado São Domingos com três caravelas, uma delas a Niña, em direção a Cuba e Jamaica.

 

Ainda acerca de Luis Torres, um documento escrito por ele, datado de 1523, afirma que sete judeus participaram da expedição e cita Rodrigo de Triana, quem primeiro avistou a terra, Rodrigo Sanchez, imediato da frota e dois médicos de nomes Birena e Marco.  

 

Sucot e o sonho da liberdade

 


Essas informações estão no livro Columbus then and Now – A Life Reexamined ( 'Colombo então e agora – Uma vida revista’, em tradução livre, publicado em 1997 ), de Miles H. Davidson, pesquisador independente que viveu na República Dominicana e estabeleceu um vasto acervo sobre o descobrimento. Ele contesta várias versões disseminadas sobre a viagem de Colombo, inclusive sobre a morte de Luis Torres que teria ocorrida em 1493, em Natividade. Davidson se utiliza de manuscritos dos séculos 16 e 17, de diários, cartas (El Libro Copiador de Cristóbal Colón) e registros navais da época para analisar cronologicamente os fatos que marcaram a vida do navegador e o papel desempenhado pelos judeus na primeira viagem de Colombo à América.

 

A obra e o autor são citados no artigo Sukkot guide for the Perplexed 2016 (‘Guia de Sucot 2016 para os perplexos’, em tradução livre), assinado por Yoram Ettinger, ex- consul de Israel em Houston, no Texas, e chefe do escritório de Imprensa do governo israelense em 1988 e 1989. Publicado na edição online do semanário americano The Jewish Press, o trecho foi extraído do livro de Ettinger, Jewish Holidays Guide for the Perplexed (‘Feriados Judaicos- Guia para os perplexos’, em tradução livre), editado em 2014.

 


Para Ettinger, a Festa dos Tabernáculos ou das Cabanas  “comemora a transição do povo judeu de escravo, no Egito, para a soberania na terra de Israel, da vida nômade no deserto onde viveu em cabanas por 40 anos,  à permanência na terra prometida”. Engloba igualmente o sentido universal da libertação, uma aspiração comum a toda humanidade. Assim, ele enxerga uma “aliança espiritual” entre a descoberta da América e Sucot, pela convergência das datas. A visão de um novo mundo justamente no sétimo dia de Sucot, em Hoshana Rabá -  considerado por nossos sábios como o último dia de “julgamento” divino no qual o destino do ano novo é determinado – se afigura como o prenúncio de um novo tempo de libertação e milagres.

 

Sobre a chegada ao novo mundo, Davidson conta que Luis Torres escreveu no fim de seu diário de bordo: “Nós desembarcamos na praia de San Salvador ( Guanahani, para os nativos) e tomamos posse do novo mundo para a Espanha. Cristóvão Colombo sempre acreditou que essa ilha e outras que ele avistou depois na viagem de descobrimento eram as Índias, perto do Japão ou China.” O pesquisador contesta versões de autores norte-americanos sobre a possível intenção de Colombo de chegar a novos continentes e também o real horário do avistamento, que para alguns biógrafos ocorreu duas horas depois da meia-noite de 12 de outubro.

 

Judeus financiaram Colombo

 


Quanto aos recursos para a expedição de Colombo, Davidson cita os judeus Abraham Senior, rabino-mor e chefe da coleta de impostos dos reis espanhóis Fernando de Aragão e Isabel de Castela, e Isaac Abravanel, que administrava as receitas da casa real, ambos sob o foco do édito real de expulsão dos judeus da Espanha, expedido em 31 de março de 1492. Segundo o autor, Fernando e Isabel trabalharam para persuadi-los a se converterem e permanecerem na Espanha, como o fizeram Alonso de Cabrera, Luis de Santagel ( escriba da casa real) e Gabriel Sanchez, judeus conversos envolvidos com o financiamento da expedição. Porém, apenas Senior, natural de Segóvia, aceitou a conversão, falecendo no ano seguinte. Abravanel, nascido em Lisboa, partiu para o exílio e ainda viveu mais dezesseis anos em cidades como Nápoles, Messina e Veneza, prestando serviços na área financeira e diplomática à nobreza.

 

Após a viagem, as duas primeiras cartas enviadas por Colombo narrando o feito do descobrimento e agradecendo o apoio à sua expedição foram dirigidas justamente a Santagel e Sanchez que adiantaram recursos pessoais de alto valor para financiar aquela que foi uma das maiores aventuras do homem em todos os tempos: a descoberta de um novo mundo. Coincidentemente ocorrida no sétimo dia de Sucot, no mês de Tishrei, o sétimo dos doze meses do calendário judaico (chamado yerach ha’etanim, ‘o mês dos fortes’ ou ‘o mês dos antigos), sete meses após o decreto de Alhambra. O documento em questão legalizou o confisco de bens e a expulsão de todos os judeus das terras espanholas (Sefarad) que lá viviam há mais de quatrocentos anos.

 


Biógrafos de Colombo detalham que a data marcada para a saída da frota era 2 de agosto de 1492, que naquele ano coincidia com o dia de Tishá B'Av, o mais triste do calendário judaico, no qual o judeu deve jejuar por 24 horas. A data lembra a destruição dos dois Templos Sagrados de Jerusalém. O primeiro em 422 antes da era comum, e o segundo ( reconstruído após a volta dos judeus de um exílio de 70 anos na Babilônia) 490 anos depois da queda do Templo de Salomão. Então, esse fato é apontado por muitos estudiosos como  o motivo do adiamento da partida para o amanhecer de 3 de agosto, no Porto de Palos. Pela tradição judaica, Tishá B'Av é um dia de má sorte. Coincidentemente, também em 2 de agosto expirava o prazo para a expulsão do judeus espanhóis que recusaram a conversão. Cronistas da época relatam que os cais da Espanha estavam apinhados de judeus que buscavam a fuga.    

 

Sinagoga Luis Torres

 


Para lembrar e homenagear a origem religiosa do homem que acompanhou Colombo e reportou a viagem se utilizando do calendário judaico, o então pequeno grupo de judeus de Freeport, cidade do arquipélago caribenho das Bahamas, fundou em 1972 uma sinagoga que recebeu o nome de Luis Torres. Segundo a enciclopédia online Jewish Virtual Library, Torres era um marrano (judeu secreto que praticava oficialmente o catolicismo).

 

 A sinagoga, cujo prédio pertencia a um banco, funcionou até 2021 quando foi fechada em razão da pandemia e também porque muitos de seus membros que não eram caribenhos saíram do país. Existe em Nassau, capital das Baahamas, uma congregação judaica com sinagoga e uma filial do Beit Chabad para atender em torno de 300 judeus. O arquipélago, cuja língua oficial é o inglês, integra a Commonwealth of Nations, com sede em Londres, e é formado por 24 ilhas habitadas e 600 desabitadas. Sua proximidade com a Flórida faz com que o país receba, anualmente, centenas de turistas americanos judeus, principalmente por ocasião das férias escolares.

 


 

 

quinta-feira, 30 de março de 2023

Memórias do Menino de Papel - Da série Histórias que Mamãe Contava

/   Sheila Sacks  /


O ano de 1937 já não era uma época boa para viver em Berlim. No escritório de paredes forradas de madeira, onde tantas vezes acolheu colegas juristas, Joseph Klein olha a estante coberta de livros e o desenho infantil meio escondido no alto do móvel. O quadrinho permanecia com a mesma moldura de paspatur azul, imune ao tempo e aos acontecimentos. Ele sim, um velho encurvado pelo rigor dos anos, as pernas fragilizadas, a falta de equilíbrio que o obrigava a recorrer a bengala, os lapsos inconvenientes de esquecimento a abalar seus dias.

O menino de papel ao lado da casinha de telhado vermelho o deixava intrigado e confuso. Às vezes parecia que o garoto se deslocava para mais perto das duas macieiras assentadas em tufos de relva por onde floriam três margaridas amarelas. O sol laranja e as nuvens azuis flutuando no alto do desenho reviviam lembranças desencontradas. A filha insistia em afirmar que ele era o autor daquela infantilidade. A esposa, há tanto tempo falecida, descobrira o desenho em um caderno esquecido na casa dos sogros, se encantou com a o menino de cabelo espetado, gravatinha verde, calça roxa e sapatos marrons. Escreveu no rodapé do papel “eu te amo”, encomendou a moldura e pendurou o quadrinho no quarto das crianças.

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Mas, Joseph tinha a certeza de que o desenho era do filho Simon, garoto criativo e rebelde. Não entendia porque Eva ria e dizia “não, papai, esse desenho foi você quem fez”.

Simon já tinha ido embora da Alemanha. Professor universitário, ensinava em uma faculdade em Londres. Solteiro por opção, pouco falava de sua vida particular. A filha Eva, pesquisadora e tradutora, trabalhava numa editora e o casamento com um intelectual alemão, colega de escola, durou apenas três anos.

Naquele dia, e lá se vão dois anos, pela primeira vez Eva falou em deixar a Alemanha. Medidas restritivas do governo nazista estavam em andamento, proibindo médicos judeus de tratarem pacientes não judeus, revogando a licença dos advogados judeus e promovendo o boicote a estabelecimentos judaicos.  “Vou partir, papai, e quero levar você”.

Joseph não pensou duas vezes, se recusou a acompanhar Eva.  Perto de completar 80 anos, ainda gostava de passear pelo parque nos arredores do apartamento. Sentava no banco, em frente ao pequeno lago, e acompanhava a tagarelice das jovens mães com seus carrinhos de bebês.  O que ele faria em Londres? Sofie cuidava tão bem da casa e dele também. Todos os dias, pontualmente às 8 horas, ela adentrava pelo corredor, pendurava seu casaco no cabideiro, o pão fresquinho na sacola e ia direto pra cozinha preparar o lanche matinal. Há quanto tempo fazia isso? Perdera a conta.  No fim de semana, quando folgava, parecia que a casa ficava mais triste e o tempo custava a passar.

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Naquela segunda-feira, ao entrar no apartamento, Sofie logo foi tomada por uma sensação diferente. A porta estava destrancada, as luzes apagadas, as cortinas de voal alvoroçadas pelo vento que zunia pela janela escancarada do corredor. O sopro úmido do outono esfriava a casa e dava um toque soturno à mobília.

“Levaram o patrão”, deduziu de imediato ao ouvir a voz da zeladora atrás de si. – Tenho que fechar o apartamento. Me entrega a chave. Mal humorada como de costume, a mulher a olhava desconfiada.  Sofie pede uns minutos.  Precisa recolher sua roupa de trabalho. A mulher desce as escadas resmungando. – Não demore.

Atordoada, Sofie vai ao escritório e num impulso retira de cima da estante o quadrinho do menino de papel. Esconde-o por debaixo da blusa. Recolhe o avental, algumas mudas de roupa, os chinelos e a louça que usa no dia a dia. Põe tudo em uma velha sacola, as mãos trêmulas, sentindo o coração disparar e as lágrimas embaçando a visão. Desde que a polícia acelerou as deportações, ela temia pelo destino do patrão.  No trajeto diário, a visão de caminhões atolados de famílias assustadas já não surpreendia os passantes. Desviar o olhar, apressar o passo e fingir que nada acontecia era uma boa receita para não enlouquecer.

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Sofie abraça o desenho e se emociona mais uma vez. Sentada na cama, olha a meia lua no céu soturno que prenuncia a tempestade. A artrose castiga seus membros e tem dia que se deixa ficar ao pé do fogão, perdida na paisagem bucólica que se vê pela porta aberta, sem ânimo para fazer o strudel de maça que aprendeu com dona Bella.  Desde que deixou Berlim, vive com a irmã e o cunhado na casa de roça que foi dos seus pais, e antes, dos avós.  Aquele desenho lhe traz lembranças felizes de uma vida que começou mal. Vítima de paralisia infantil, Sofie tinha uma das pernas mais curta e deformada.  Desde a infância, a doença tirou a inocência e a alegria que animam as fantasias da imaginação.  Procurava se esconder das pessoas. Na escola, por mais que desejasse ser invisível, era alvo da chacota da criançada que imitava seu andar manco e meio cambaleante. Os olhares de piedade dos adultos a martirizavam.  Não havia um dia que não caísse no choro, encolhida no  celeiro sob o olhar sonolento de uma mula.

Quando a esposa do jurista Joseph Klein a contratou, Sofie custou a acreditar. O semblante angelical e a voz doce da jovem senhora, dona Bella, a encantaram. Nunca sentira tanta bondade e ternura em alguém e naquela noite teve a certeza que sua vida, enfim, iria mudar.

Durante todo o tempo que serviu a família Klein, Sofie foi uma mulher feliz. Adorava as noites de sexta-feira, quando a casa se enchia de convidados. Lustrava os castiçais, o faqueiro de prata, lavava os copos de cristais, os pratos e travessas de porcelana decorada. Com a morte da patroa por complicações de um parto infeliz, Sofie perdeu o chão, mas agarrada ao livro de Salmos, presente muito caro ao seu coração, ela lembra da promessa que fez. “Enquanto me quiserem, ficarei aqui.”

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Mas, longe de perder o emprego, a responsabilidade aumentou. As crianças na pré-adolescência eram difíceis de lidar. Sem a referência da mãe, ficaram rebeldes e descuidadas. Mas, a mão forte do patrão freou a bagunça e mesmo sendo um homem de muitos compromissos ele manteve os filhos na linha.

Mas o passar dos anos se mostrou impiedoso e os parentes mais chegados se foram. O grupo de juristas, professores e alunos, mais de uma dezena de gente que frequentava a casa, foi minguando até se reduzir a um único membro, o mestre do xadrez. Notícias davam conta de fugas mal sucedidas, deportações, prisões e execuções.

Agora, passado o pesadelo da guerra, Sopfie está de volta a Berlim onde divide com a sobrinha um pequeno apartamento no bairro proletário de Britz, ao sul da capital.  Apesar dos bombardeios, a maior parte do conjunto habitacional restou inteira. Tinha adquirido o imóvel com a ajuda do patrão e com um teto garantido procurava um novo emprego entre as pessoas conhecidas.

Soube que o mestre do xadrez, seu convidado preferido, retornou à cidade. Foi procurá-lo e se deparou com um homem fustigado pela dor. Perdera mulher, filhos, irmãos e os pais, ainda saudáveis em seus setenta anos. Os cabelos precocemente grisalhos, o corpo, antes atlético, agora de uma magreza doentia, e o rosto marcado por fundos sulcos nas têmporas  impactaram Sofie. Deportado para o campo de concentração de Buchenwald, Rony, era seu nome, estava vivo graças a arte do xadrez. Um dos subcomandantes o escolheu como parceiro e professor dos filhos. Ao sorrir, Sofie reencontrou nos olhos azuis de Rony aquela beleza interior que sempre a fascinou. Ele estava de partida para o Reino Unido, tinha sido aceito para lecionar direito na Universidade de Edimburgo. Contou que iria se encontrar com Eva, em Londres. Sofie então revelou, constrangida, que o quadrinho do menino de papel estava consigo. Nos últimos tempos sentia uma espécie de culpa por estar com aquela peça tão particular e que afinal não lhe pertencia.

No dia seguinte, Sofie devolveu o desenho.  Chorou ao abraçar Rony e mais uma vez agradeceu ao mestre de xadrez o livro de Salmos que ele tão carinhosamente havia dado para ela em uma noite fria de inverno, semanas após os terríveis tumultos e saques da Kristallnacht (Noite dos Cristais). Era véspera do Natal de 1938 e Rony se despediu do patrão com um forte aperto de mão. - Espero que não seja tarde demais, dr. Klein. Soube do decreto que obriga os judeus homens a acrescentar o nome Israel em seus passaportes. E as mulheres o nome de Sara.

Foram as últimas palavras que Sofie ouviu antes de vê-lo vestir o sobretudo, apanhar o chapéu e bater a porta apressado. Desde então, Sofie se apegou aos Salmos e diariamente lia e relia seus versos, clamando para que o Senhor jamais abandonasse Rony.

1



Percebo que mais uma vez vou mudar, foram anos felizes em meio aos risos das crianças, correrias, brincadeiras, tanta coisa boa que à noite eu desfalecia muitas vezes sem fôlego para namorar a lua recortada pela janela do quarto, como era bom! Preciso contar, estou em frente a uma janela adorável emoldurado por um paspatur azul ainda que imprensado por um vidro transparente gosto muito de estar aqui onde o nascer e o pôr do sol são presentes diários, a chuva forte tempestuosa, os leves chuviscos, as noites quentes, a brisa amiga, o vento tagarela, e lá longe mas ainda visível as copas opulentas das árvores do parque municipal, momentos que encantam a minha vida, no entanto devo admitir que já não existem mais crianças correndo pela casa, os móveis do quarto foram trocados, novas cortinas adornam a janela,  gravuras de carros enchem as paredes, confesso que me sinto deslocado, pouco à vontade, mas eis que mãos decididas interrompem meus pensamentos e me arrancam da parede  passando por um corredor comprido e entrando na saleta com ares de escritório onde eu notei que é preciso falar baixo, bater na porta, pedir licença, conheço esse jeito sem cerimônia que me coloca na estante espremido entre as fileiras de livros, mãos de minha incansável inimiga, a tirana do pé manco e espanador de prontidão, sempre a procura de algum cisco, uma poeirinha que seja, me esfregando com pano molhado, me impondo a flanela de bolso de seu avental. Tremo em pensar em possíveis estragos a minha pessoa, um dia cheguei a escorregar, acreditem, e pela sorte do destino saí ileso, calculo que a tirana malvada queria acabar comigo, enfim, cá estou desta vez de costas para a janela, minha referência e prazer, e de frente para a porta fria e indiferente, essa tirana é um caso perdido!

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Sozinho na noite, mais uma vez me sinto entediado, sem muita disposição de sonhar, fazer planos, construir quimeras, já não me incomoda o correr do tempo, se salta, atropela, monta barreiras ou matreiro aguarda minha passagem pelo desfiladeiro, que jeito, somos todos humanos, os cabelos embranquecem, as juntas incomodam, ficamos à mercê das dores, de um corpo que não responde às ínfimas vontades, noto isso no homem curvado, de passos lentos, afundado na poltrona sob a luz do abajur na mesa outrora repleta de agendas, papéis, telefones, trecos variados, uma loucura, que tempos! O livro aberto no colo quase cai, o velho cochila, balbucia qualquer coisa ao tentar se levantar ao som das batidas do relógio centenário, relíquia de seu bisavô contava aos amigos doutores em incisos, alíneas, parágrafos, e eu orgulhoso lá no alto da minha estante, acho que posso  chamá-la assim com a intimidade de antigo morador respeitado até por aquela insana tirana, mestre em me tirar do sério com seus infames paninhos, livrai-me Senhor!

3



E cá estou a milhares de quilômetros além da minha imaginação na cidade de pedra em uma rua estreita de cheiros e vozes que não conheço e que ondulam ao longo do dia já por longo tempo companheiro da mulher que me inspira tão diversa da menina implicante de outrora agora tradutora dos livros perfilados na antiga estante de madeira que ao lado do relógio carrilhão revivem lembranças de uma infância de risos e alegria. Na mesa, um velho calendário marca a data de 1968 o que acho surreal porque as páginas dos meses foram arrancadas. Desconfio que o tempo andou a passos largos e nos deixou para trás. Percebo ainda que a idade madura a fez solitária e recolhida, mas não me importo porque o meu prazer é ouvir histórias e minha contadora de histórias nos inumeráveis volteios pelo quarto da aurora ao entardecer me mantém aconchegado em seus braços enquanto fala de um mundo passado onde as pessoas queridas permanecem presentes na mágica das palavras que me envolvem não importando a chuva ou o sol que se avista da janela gradeada - lá se vai saber o porquê - ou os estranhos que sem cerimônia insistem em nos importunar às vezes por minutos às vezes por horas afastando-a de mim dependendo das tarefas insanas que não faço ideia quais sejam pois nunca saí porta afora para acompanhar essa gente que cantarola boker tov todas as manhãs e oferece pastilhas variadas a minha  amiga que engole com um dedo de água e agradece. Ainda que nossos colóquios sejam descontinuados reconheço que tenho muita sorte de ter uma parceira tão gentil nesses meus derradeiros dias aquecendo a minha imaginação com as narrativas extraordinárias de personagens de tempos outros, paisagens deslumbrantes e enredos surpreendentes nos quais me apraz permanecer em encantamento cúmplice e aliado de um mundo mágico de incontáveis e fantásticas aventuras.

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Verdade é que não foi fácil chegar até aqui. Lembro da sacola esgarçada onde fui jogado no melhor estilo mafioso o que exauriu minhas forças e abalou o meu ego, sem imaginar para onde me levariam, suponho para o calabouço fétido onde vicejam ratazanas, morcegos, bichos ávidos que não toleram intrusos. Quando senti a força daquelas mãos tiranas, juro temi por minha integridade.  Me arrancando da estante de supetão despertando o estupor que me paralisa, aquelas mãos decididas e temidas que me metem nesse saco velho empreitando uma fuga que não estava no script, confesso meu estado de choque  que prossegue no sacolejo da estrada sem fim, tenho medo do que me aguarda, um tempo de infortúnio, será? Imaginar o pior nem sempre é saudável ainda que o espectro de uma medonha  lata de lixo me atormente sobremaneira, ouço o ruído da chave que gira na fechadura, o barulho da janela que se abre, o clarão de luz que me alcança livre do saco da tirana, que já arrasta  o banco para perto de mim, de onde vejo o passarinho cantor que trina agitado, a folhagem da bétula se derramando no vaso, o galo madrugador imponente dono do quintal, também o sol, o céu, a lua, o vento, a brisa, a chuva, a montanha, os insetos da madrugada, ao pé do fogão a escutar histórias com  o sol se pondo e o céu pintado de marinho, o natural  perfume da roça em harmonia com o forte aroma das panelas, ouvir encantado sobre o amor do patrão pela dona Bella, da doença maldita que a levou antes do tempo, mulher boa, uma santa! Das crianças que se debandaram para o estrangeiro, da manhã em que um pôster de avião por obra e graça do filho rebelde me desbancou da parede e pela ação imediata da tirana, assim ela conta,  fiquei a salvo  escondido na estante, a tristeza doída de ver o patrão doente,  homem letrado, doutor nas leis, sozinho coitado, também nem tão sozinho porque lá estava a tirana do espanador,  apesar do pé manco, coluna chumbada e a penosa artrite diz ela não deu para trás, aguentando até uma ajudante por pouco tempo,  mulher metida sempre se achando melhor,  ora bolas,  nunca falhei em  minhas tarefas, sustenta, me encarando com o semblante carrancudo, mas teve um dia, lembro bem do susto, tropecei e por pouco não quebro a sua moldura, meu menino de papel, valha-me Deus, tantas histórias a encher as noites de sons, lembranças, memórias, um caleidoscópio de sentimentos a me arrebatar, não estou infeliz, reconheço, ao lado dessa loquaz tirana mas a saudade me torna impertinente e ansioso, longe de mim assustá-la arrebatada tirana, suas madrugadas insones de dúvidas tormentosas falam por si  e para meu alívio na suave aurora de uma manhã que se anuncia radiosa sou levado para as mãos mágicas do mestre do xadrez, parceiro inconteste de jogos memoráveis, surpresa maior duvido, suspiro agradecido, obrigada louca tirana estou a caminho de casa vejo isso nos olhos do sábio dos sábios erguendo os braços ao me ver, olá rapazinho valente diz ele sorrindo, em uma calorosa e infinita acolhida de boas-vindas!