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terça-feira, 7 de novembro de 2023

Israel x Hamas: Seção de Leitores é front de antissemitismo

/  Sheila Sacks  /


Passados quatro semanas de guerra, editorial de uma das maiores redes de mídia nacional exalta a convivência pacífica entre judeus e árabes ( Antissemitismo ressurge sob disfarce de ‘antissionismo’, em 05.11.2023 – O Globo).

Entretanto, nesse período e provavelmente nos dias que estão a seguir, dezenas de mensagens antissemitas e perversas, embaladas como cartas de leitores indignados com as ações de defesa de Israel, ajudam a distorcer a situação no Oriente Médio com ataques virulentos, palavras truculentas, respingando sangue e ódio, e até disseminando mentiras direcionadas ao estado sionista, que em essência se traduz no milenar preconceito contra os judeus.

Em contraposição, cartas em prol ao direito de um estado democrático - sabidamente com as fronteiras coalhadas de grupos terroristas apoiados por estados árabes ditatoriais – de reagir a uma invasão bárbara que desembocou numa carnificina dantesca, com a decapitação de bebês, pessoas mortas a tiros, esfaqueadas e queimadas, estupros, sequestros de crianças, jovens e idosos, em uma matança a sangue frio comemorada pelos assassinos em ligações de celulares aos parentes em Gaza; pois bem, nessas ditas cartas em defesa de Israel, observa-se um acanhamento linguístico e  um cerceamento de respostas certeiras, sinais reveladores da afiada triagem e do vil aval de “bom comportamento” necessários para as mensagens serem publicadas.

O que significa para os defensores de Israel operacionalizar pesquisas e narrativas bíblicas, justificativas históricas, bibliografias sobre a solução de dois estados (aliás, nunca compartilhada pelos palestinos que abertamente pregam a eliminação de Israel), referendar a cultura da paz em meio a uma carnificina humana impensável, e até dar um tom didático à polêmica fabricada nos arsenais de propaganda dos divisionistas sobre o diferencial de identidade dos judeus da Diáspora em relação aos judeus israelenses. Todo esse aparato na tentativa desesperada de conquistar algumas linhas no terreno minado posto a serviço escancarado de um dos lados.

É sabido que o partido do atual governo tem um histórico de apoio aos palestinos, ainda que estes advoguem o extermínio de Israel e eduquem suas crianças nas cartilhas do ódio e do preconceito. Mas, não se pode ser tão dissimulado a ponto de fingir que o Hamas e o povo palestino são coisas distintas. O Hamas está no poder desde 2006 quando foi eleito pela população, que o apoia e protege. Um enredo que se quer embaralhado no intuito de confundir, tal qual o citado editorial e o espaço dos leitores. As duas seções convivem sob as diretrizes dos mesmos editores e aludir à liberdade de expressão para justificar opiniões descabidas e antissemitas, é tornar o conceito elástico e sem limites. Quem abre espaço para a publicação de um editorial que ergue a bandeira da tolerância e da paz (‘O Brasil sempre seguiu um caminho de tolerância’), e permite, nas páginas posteriores, indivíduos chamados leitores atearem fogo com inverdades plantadas principalmente em redes sociais, está mantendo um jogo duplo muito similar aos que clamam por uma pátria independente condicionada à destruição do país vizinho.

O texto em questão se inicia fazendo um apanhado, em números e percentagens, do insidioso aumento de incidentes e crimes de ódio ocorridos contra os judeus na França (189 ataques)  Reino Unido (805), Alemanha ( 240% a mais) e EUA (312 casos) desde o massacre de 7 de outubro, comparando-os as poucas situações divulgadas no Brasil. Mas, é preciso observar que nesses países, líderes dos partidos do governo não deram declarações antissemitas afrontosas como fez, por exemplo, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, se utilizando impunemente da palavra genocídio para atacar Israel. Ou a tesoureira do PT e “conselheira de Itaipu”, Gleide Andrade, que após cobrir de injúrias o estado de Israel em postagens estúpidas, desrespeitosas e desavergonhadas, “apagou as publicações e se desculpou”.

Antes, o presidente brasileiro, a quem não se permite ser mal informado, classificou de “insana” a resposta militar de Israel à barbárie do Hamas. Não satisfeito, mais adiante repetiu a ladainha do PT e chamou de “genocídio” as ações israelenses, o que de acordo com o editorial não foi de bom tom: “Usar o termo genocídio nesse caso não é apenas incorreto, mas também ofensivo”, considerou o jornal.

Outros representantes de partidos solidários ao governo, como o PSOL, numa imitação bizarra de protestos de extremistas fundamentalistas, atearam fogo à bandeira de Israel. Membros do PCO, Partido da Causa Operária, esbanjaram dinheiro do trabalhador na publicação de panfletos pedindo “o fim” de Israel.

Por fim, o editorial conclui que a solução está na conivência pacífica de dois estados, “lado a lado”, e que o Brasil deve se concentrar neste tópico nos fóruns internacionais. “Deve pregar a tolerância que vivemos aqui”, aconselha. “É uma lição que apenas o Brasil pode dar às outras nações.”

Porém, o que o editorial não aborda,  mas vale registrar, é  que durante esse outubro sanguinário o Brasil esteve na presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU e tentou emplacar uma resolução de cessar-fogo em que não condenava explicitamente o ataque terrorista do Hamas. Mas esse detalhe, que somou páginas na imprensa, passou ao largo da edição. Assim como o diabólico sequestro de mais de 240 pessoas, arrancadas selvagemente de suas casas, das ruas, de um festival de música.  Também não teve menção a incômoda situação da diplomacia brasileira que até este 7 de novembro prossegue em suas tratativas de retirada de um grupo de palestinos de dupla nacionalidade da Faixa de Gaza. Talvez, o oportuno e amigável texto de boas-vindas à tolerância reservada aos judeus brasileiros possa ajudar nesse sentido.

Então, o abre-alas à tolerância que de modo geral existe no país e o puxão de orelhas aos partidos de esquerda nacional que, segundo o editorial, dão os ombros para o preconceito contra os judeus, soam pouco convincentes considerando que a mesma mídia alimenta um reduto de guerra desleal sob o aparente manto de imparcialidade.  Um ambiente, com o singelo título de “Leitores” e o subtítulo “Mensagens”, em que se permite soltar as feras e aventar suposições infames, como a emitida por uma leitora que se intitula Patrícia, e declara despudoradamente que o massacre de 7 de outubro pode ter tido a facilitação de Israel (em 30/10).

Tal afirmação, que se constitui em calúnia, ao ganhar o sinal verde para publicação, depõe contra a seriedade e imparcialidade dos editores. De resposta a tamanho disparate, apenas uma única mensagem publicada com o cândido argumento de que os judeus não seriam capazes de tal ato, visto que valorizam a vida humana. O que suscitou, no dia seguinte, a réplica esperta e contundente de um missivista militante que mais uma vez repisou o mantra mentiroso e capcioso de diferenciação entre judeus da Diáspora e judeus de Israel, e, por conseguinte, a surrada falácia de dissociação entre antissemitismo e antissionismo.

Enfim, nesse contexto ambíguo e tendencioso, onde os editores se deixam levar pela parcialidade ideológica que promove, sim, o antissemitismo cotidiano percebido em olhares, gestos e atitudes sutis, ou não tão sutis - como foi o caso de um motorista de aplicativo no Rio que diante de um jovem estudante de escola judaica, uniformizado, recusou sua entrada no veículo por ser judeu *- , sábias e atuais permanecem as palavras de Winston Churchill, peça-chave na vitória dos aliados na Segunda Guerra. Para o ministro britânico, “quanto mais longe você puder olhar para trás, mais longe você poderá ver à frente”. Que assim seja !

* Segundo o jornal israelense Jerusalem Post, aumentaram em 760% os incidentes antissemitas no Brasil, nos últimos três anos, a maioria em escolas envolvendo estudantes judeus.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Cartilhas do ódio promovem o antissemitismo no Oriente Médio

Crianças palestinas, no período escolar, são induzidas à intolerância e violência

/   Sheila Sacks  /



Operando 702 escolas que atendem 526 mil alunos palestinos na Faixa de Gaza, Cisjordânia e crianças de famílias que se autodefinem como refugiadas em países como o Líbano, Síria e Jordânia, a agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos – UNRWA (United Nations Relief and Works Agency) tem em seus quadros 19.877 professores de um total de 30 mil funcionários.

Criada em 1949 para ser uma agência de ajuda temporária, o órgão oficial da ONU virou uma serviço vitalício sustentado por doações de governos que pouco fiscalizam o real destino dos recursos enviados. Segundo relatório divulgado pela organização UN Watch, com sede em Genebra, a UNRWA mantém 133 educadores e funcionários que promovem o ódio e a violência nas redes sociais, e mais 82 professores e funcionários afiliados a mais de 30 escolas que estão envolvidos na elaboração, supervisão, aprovação e impressão e distribuição de conteúdo antissemita para os estudantes.

Em 30 de março, por ocasião da 52.ª Sessão do Conselho dos Direitos Humanos, que reúne 47 países-membros, representante da UN Watch denunciou mais uma vez a contratação pela UNRWA de professores que incitam abertamente o racismo, o ódio e a violência. O relatório de 100 páginas documenta como os professores e as escolas dessa agência recorrem regularmente ao assassinato de judeus e criam material de ensino que glorifica o terrorismo e encoraja o martírio.

O relatório identifica mais de 200 perpetradores e capta provas recolhidas no interior das salas de aula da UNRWA, incluindo imagens de quadros negros mostrando o ensino de matérias que exaltam terroristas como Dalal al-Mugrabi, da OLP, morta em um ataque em 1978,  depois de sequestrar, junto com mais 10 terroristas, um ônibus em uma rodovia israelense e assassinar 38 civis, sendo 13 crianças.

Outro terrorista, Diaa Hamarsheh, autor de um ataque suicida na cidade de Bnei Brak, em março de 2022, que matou quatro civis israelenses e um policial, também é glorificado por um professor de matemática da UNRWA, na Síria. Foram documentadas 47 postagens desse teor em uma flagrante violação das declaradas políticas de tolerância zero apregoadas pela agência em relação ao racismo, à discriminação e ao antissemitismo.

Nada muda


Apesar das constantes notificações por parte da UN Watch - organização credenciada pela ONU cuja missão é monitorar as ações dessa instituição internacional em relação à promoção dos direitos humanos, atuando igualmente no combate ao antissemitismo e aos que atacam o estado de Israel - ninguém é afastado ou demitido, as agressões sendo minimizadas como triviais infrações nas redes sociais.

Fundada em 1993 pelo advogado e ativista de direitos civis Morris B.Abram, falecido em 2000, a UN Watch tem status consultivo especial no Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC) e está associada ao Departamento de Informação Pública (DPI). Seu diretor executivo, o advogado e ativista de direitos humanos Hillel Neuer, nascido no Canadá, está na lista dos “100 judeus mais influentes do mundo" organizada pelo jornal israelense Ma'ariv.

Em abril, o jornal alemão Bild publicou reportagem investigativa sobre o material didático utilizado nas escolas da UNRWA, onde a maioria dos professores é palestina. Com base em dados da UN Watch e da ONG israelense IMPACT-se (Instituto de Monitoramento da Paz e da Tolerância Cultural na Educação Escolar) foram narradas situações em salas de aula que escancaram o preconceito e a intolerância. Em um exercício para alunos da nona série, em Gaza, por exemplo, um incêndio criminoso em um carro que transportava judeus é referido como “churrasco”, em tom de zombaria.  Em outra escola, alunos da sexta série são instados a promover uma jihad pela pátria, destacando que os mapas usados em diversas escolas da UNRWA não mostram Israel. Em paralelo, os judeus são apresentados como pessoas gananciosas, desonestas e brutais.

Em relação às postagens em redes sociais, um professor de uma escola em Aleppo, na Síria, publicou no Facebook uma foto de Hitler dormindo, com o comentário de que “ele devia acordar, porque ainda existem pessoas para serem queimadas”.  Outro professor de uma escola na Cisjordânia postou que o projeto dos Emirados Árabes foi iniciado por “judeus ricos”. E mais um  suposto educador de uma escola no Líbano glorifica o terrorista Ibrahim al-Nabulsi, morto em agosto de 2022, antigo comandante das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa, o braço armado do Fatah.

A matéria também lembra que a Alemanha contribui para o financiamento dessas escolas, classificadas pelo jornal como “centros de ódio”, através do Ministério Federal Alemão para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (BMZ).  Em 2022, de acordo com a própria UNRWA, a Alemanha pagou 180 milhões de euros a projetos geridos pela agência, incluindo cinco milhões de euros para uma nova escola para meninas em Gaza.

Durante o governo Trump, os EUA suspenderam a ajuda à UNRWA, mas em 2021, com Biden no poder, o presidente americano anunciou para aquele ano um pacote de assistência humanitária e econômica para os palestinos  no valor de US$ 235 milhões (R$ 1,3 bilhão), sendo que US$ 150 milhões destinados  especificamente à agência.

Os Estados Unidos, a União Europeia e a Alemanha estão entre os principais financiadores da UNRWA. Antes de apresentar o relatório no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, a UN Watch e a IMPACT-se estiveram no Congresso americano conversando com vários congressistas e também agendaram uma reunião com o Comissário Geral da UNRWA, Philip Lazzarini, para expressarem suas preocupações sobre os materiais de ódio institucional produzidos pelos departamentos de educação da agência da ONU, disponíveis gratuitamente online. Porém, o comissário recusou o encontro.

Com um orçamento de 1,6 bilhão de dólares, quase 60% destinados à educação, a UNRWA pode ser o empreendimento educacional mais fortemente financiado na história da ajuda internacional. É o que afirma Marcus Scheff, diretor executivo da ONG israelense.

Segundo a UN Watch, os montantes prometidos para 2022 incluíam 344 milhões de dólares dos Estados Unidos, US$ 122 milhões da Alemanha, US$ 107 milhões  da Comissão Europeia, US$ 61 milhões da Suécia, US$ 17 milhões do Reino Unido, US$ 24 milhões da Suíça, US$ 32 milhões da Noruega, US$ 28 milhões da França, US$ 24 milhões do Canadá e US$ 15 milhões da Holanda.

“Em todo o mundo, os professores que instigam o ódio e a violência são afastados. No entanto, a UNRWA, apesar de proclamar “tolerância zero” ao incitamento, emprega sistematicamente pregadores do ódio e do terrorismo antijudaicos”, reforça Neuer. São supostos educadores que glorificam o terrorismo, pregam a violência, demonizam o estado de Israel e propagam o antissemitismo. 

Em discurso no plenário do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2019, a cientista política Einat Wilf, coautora da obra "A Guerra do Retorno "- que aborda o pensamento coletivo dos palestinos de que Israel não deve existir - , também denunciou a UNRWA como um empecilho para a paz. "A  UNRWA alimenta o conflito há décadas com a ideia beligerante de um 'direito de retorno' de milhões de palestinos", afirmou. "Se quisermos a paz, a UNRWA precisa acabar." 

No horrendo ataque terrorista do Hamas a Israel, em 7 de outubro, quando bebês foram degolados, mais de 1.300 judeus assassinados, muitos amarrados e queimados, 3 mil pessoas feridas, centenas delas em estado grave, e  200 israelenses e estrangeiros brutalmente sequestrados,  professores da UNRWA celebravam nas redes sociais a carnificina.  A plataforma digital da UN Watch documentou essas postagens, com as fotos dos professores ao lado do logo de identificação da UNRWA, em uma vergonhosa apologia à barbárie. Entre elas, a da diretora de uma escola, Iman Hassan, que comemora o assassinato dos bebês como uma "retribuição das injustiças". E ainda curte um post da amiga que escreve "queimar, queimar, queimar". 

Sob o título ”Funcionários da ONU celebram massacre do Hamas”, a matéria traz o retrato real de uma sociedade fanatizada pelas mentiras e calúnias, que a partir da escola e de seus professores doutrinam as crianças para a violência, o ódio e o antissemitismo, enaltecendo a jihad e o fundamentalismo religioso como ideologias bélicas.


quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Os discursos na ONU e o mundo do apocalipse

 /  Sheila Sacks  /


Anualmente, setembro em Nova Iorque é o mês em que a cidade recebe um ajuntamento de chefes de Estado, embaixadores e líderes mundiais para a abertura dos trabalhos da ONU. Um palanque mundial de excelente visibilidade midiática para discursos politicamente corretos sobre temas atuais ou universais. É de bom tom falar de proteção ao meio ambiente, preservação climática, desenvolvimento sustentável, saneamento básico, justiça igualitária, combate à fome, subemprego e desigualdade social ,entre outras pautas orientadas pela realidade, bom senso, humanismo e civilidade.

A oportunidade também é usada de fato como palco para lideranças diversas defenderem e justificarem pontos de vista e ações que, apesar de resultarem em atos moralmente condenáveis, contam com o disfarçado beneplácito de um punhado de nações  que se escudam em conceitos consagrados de não intervenção para se absterem de críticas e iniciativas mais contundentes. Um comportamento propositadamente acanhado, que de certa forma abre caminho para a violência.

O papel da mídia convencional nesse contexto é relevante, apesar da força e influência, cada vez mais potente, das redes sociais. A disseminação da desinformação não é mais produzida por amadores e o mercado das fake news opera em paralelo com a produção da informação divulgada pela imprensa.  O ardil das fake news não é se constituir em uma mentira escandalosa e sim irradiar as torpes meias verdades,  contar apenas um lado da história, deturpar os fatos e criar um jogo de imagens através da linguística no sentido de  caluniar, desestruturar, desestabilizar e ilegitimar o alvo das agressões.

O estado de Israel, desde a sua fundação em 1948, tem enfrentado ações políticas por parte de alguns governos que questionam suas ações de defesa  e iniciativas de segurança para proteger e preservar  a população civil do país. São nações que compõem a ONU e cujos líderes  trabalham oficialmente e nos bastidores para criar situações de conflitos, constrangimentos e de impasses no intuito de solapar uma saudável convivência diplomática. Bem ao contrário do que deveria ser,  perseveram para tornar cada vez mais espinhosa o trato cotidiano de Israel nessa Organização e em seus Conselhos,  assim como em outras entidades de amplitude internacional, como a Unesco.

Disso resulta um aumento no antissemitismo global, não importando que argumentem que as hostilidades são direcionadas para o estado sionista e que não abrangeriam os judeus da Diáspora. Uma falácia, de uma série de outras inverdades, visto que até em salas de aula do Oriente Médio são propagadas as mesmas surradas mentiras acompanhadas de preconceituosas caricaturas sobre os judeus, replicando os obscuros séculos medievais dominados pela ignorância e fanatismo.  Invencionices já desmentidas e desmascaradas ene vezes sobre pretensas conspirações e mirabolantes planos de domínio mundial que persistem agora nos labirintos digitais das redes sociais com o precípuo intuito de acirrar a desconfiança e o ódio que atingem em cheio às comunidades judaicas no mundo.

Atos de vandalismo se sucedem  não somente em países totalitários, mas em nações democráticas onde a diversidade de ideias e a aceitação do outro em sua identidade de raça, cor e religião são louvadas e protegidas em artigos, parágrafos  e incisos de suas Cartas Constitucionais. Isso, porém, não impede pichação de túmulos em cemitérios e em muros de sinagogas, agressões físicas em ruas, campus ou nas proximidades de colégios e centros sociais judaicos, formando um sentimento de ambiente hostil que requer constante e rigorosa vigilância, principalmente nos grandes eventos que reúnem um número considerável  de pessoas.  A presença de crianças e idosos não são empecilhos para atentados brutais.  A história ao longo do tempo é uma demonstração inequívoca desse status quo abominável, com a sucessão de tragédias infligidas pelo homem a outros seres humanos.

De Roma, nos primórdios da Era Comum, à Inquisição e ao Holocausto, o Mal em sua essência mais cruel e aterradora atingiu picos inimagináveis em sua trajetória de aniquilar milhões de pessoas se utilizando de métodos carniceiros impiedosos.  Mas, desde 1948, a preservação das comunidades judaicas tem no estado de Israel a sua ponta de lança e essa certeza deve servir de bússola  aos judeus da Diáspora no que tange à união e apoio aos seus governos.

Como uma nação democrática, Israel apresenta partidos políticos, correntes religiosas, cidadãos de origens e pensamentos diversos e governos eleitos por uma maioria. Pontos de vista diferentes não devem se alçar como motivo maior para que, ingenuamente, militantes judeus de variadas causas se juntem ao coro daqueles que tem um propósito definido contra a existência do estado de Israel. Vivemos em um ambiente de guerra não declarada e a mídia, se utilizando de noticiais tendenciosas, e as redes sociais, munidas de fake news, manipulam  armamentos que impulsionam o ódio e a beligerância.

O monitoramento constante de organizações judaicas não tem tido o efeito de extirpar esse terrível cancro de nossas sociedades. Instituições como a HonestReporting ,instalada oficialmente em Toronto, no Canadá, em 2003, trabalham diligentemente em sua missão de garantir a verdade, a integridade e a justiça, combatendo o preconceito ideológico no jornalismo e na mídia em geral. O jornal Jerusalem Post, face o aumento das fake news nas plataformas sociais e a visão nem sempre fiel e imparcial por parte da imprensa convencional,  retornou com a coluna semanal De Olho na Mídia, editada por David Bar-Illan, ex- diretor de Comunicações de Benjamin Netanyahu  e editor-chefe do jornal, de 1992 a 1996.

Outra iniciativa recente foi a publicação de uma carta aberta assinada por mais de uma centena de lideranças judaicas, a maioria de rabinos americanos, para Elon Musk, dono do antigo Twitter - rebatizado de X em julho deste ano -, denunciando um relevante aumento  de discursos antissemitas nesta mídia social que tem 155 milhões de seguidores. A campanha X Out Hate pede providências e mudanças na rede como forma de evitar a radicalização crescente que impulsiona a violência. Ressalta ainda a presença de declarados neonazistas  nesse espaço digital, disseminando suas teorias de preconceito e ódio. Um desafio para as nações democráticas que dispõem em suas Constituições a assertiva que garante a seus cidadãos exercerem a livre manifestação do pensamento, a tão aclamada liberdade de expressão.

Sem governos, sem nações, sem internet

Em um exercício de imaginação onde o mundo é despojado de governos e nações, sucumbido por um fungo da espécie Cordyceps, que transforma literalmente o homem que conhecemos em um monstro devorador de sangue humano, a série americana The Last of Us (O Último de Nós), de 2023 (baseado em um game de 2013) apresenta um planeta apocalíptico onde preocupações éticas e morais se revelam perturbadoras e ineficazes para a sobrevivência.

As sociedades organizadas e coletividades se extinguiram assim como as leis que inibem a desordem e os crimes. Conceitos que norteiam o espírito do coletivo desapareceram e ações individualistas e grupos paramilitares, ambos sem freios, atuam na terra devastada. De coletividade, o roteiro apresenta uma, dominada pelo medo e controlada por um embusteiro que usa a religião para exercer o seu domínio.


Com as cidades bombardeadas e destruídas no afã de eliminar as pessoas contaminadas pelo fungo, que se aloja no cérebro e transforma o comportamento humano, o mundo se despe de todas as necessidades apregoadas e julgadas imprescindíveis antes da epidemia mortal.  Bancos, shoppings, supermercado, celular, internet, governos, mídia, redes sociais, enfim, as sociedades evoluídas tecnologicamente não mais existem.  O escopo agora é evitar a contaminação e tentar sobreviver à desordem e ao caos impostos pela pandemia em um planeta sob escombros.

Nesse cenário de catástrofe, a recente epidemia da Covid 19 – que já infectou 770 milhões e causou 6,9 milhões de mortes, desde dezembro de 2019 quando o coronavírus SARS-CoV-2 foi identificado na China - parece um ameno trailer face aos estragos que um fungo metamorfoseado pelo aquecimento terrestre é capaz de produzir.      

Em entrevista à plataforma CNN Brasil, o cientista da Fiocruz, Evangelista Oliveira, afirma que a evolução dos fungos realmente representa uma preocupação.  No caso específico do Cordyceps, o fungo é conhecido pela sua capacidade de infectar insetos, como as formigas, e controlar o comportamento do hospedeiro que se torna um tipo “zumbi”.

Diferente da série, o fungo ainda não é capaz de infectar humanos devido à alta temperatura corporal. No entanto, o fungo tenta se adaptar ao ambiente em que ele se encontra e já provocou uma infecção grave no cérebro e meninges (meningoencefalite) de uma paciente no Rio, ocasionando a sua morte.  O caso foi reportado, em 2022, para a revista científica International Journal of Infectious Diseases (ISID).

“A narrativa ficcional cria um contexto em que essa espécie consegue evoluir ao longo do tempo devido às mudanças climáticas e ao aquecimento global, adquirindo uma capacidade de parasitar humanos e de controlá-los”, destaca a reportagem da CNN (The Last of Us: cientistas revelam quais são os fungos mais perigosos do mundo, em 22/01/2023).  

O criador do game e roteirista da série, o israelense Neil Druckmann, 44 anos, e o seu parceiro Craig Mazi, desenham um planeta cruel e ameaçador , com traços de um companheirismo egoísta e rude. Residindo nos Estados Unidos desde os dez anos, Druckmann chegou a encostar rapidamente no tema do preconceito, ao sugerir que uma jovem negra, amiga da protagonista, foi destacada para o trabalho de limpeza de fossas pelo grupo paramilitar, talvez em razão da cor da pele.

Em entrevista à revista americana GQ, ele conta que resolveu mergulhar no mundo dos quadrinhos e dos jogos eletrônicos ainda garoto para se distanciar do mundo real. Nascido em Beit Aryeh, perto da fronteira norte com a Cisjordânia, ele lembra que vivia rodeado de situações e notícias sobre conflitos. Já nos Estados Unidos, aconteceu de assistir um vídeo de linchamento que o marcou sobremaneira. Então, justifica, passou a refletir sobre esses fatos,“ a universalização do tribalismo, a alteridade das minorias, as justificativas das atrocidades”, e explorar nas histórias  “temas de retribuição, vingança e justiça.” Em dez anos, o game já vendeu 37 milhões de cópias.

Mas, como ninguém escapa da dita vida real, aquela a qual estamos inseridos fisicamente, Druckmann também foi alvo de ataques antissemitas quando do lançamento da segunda parte do game The Last of Us, em 2020. Ele compartilhou no Twitter as mensagens e caricaturas recebidas que registrou como “vis, odiosas e violentas”.

Neste contexto de intimidações sistemáticas em um mundo desigual e pouco justo, cabe afirmar que o monitoramento e combate ao antissemitismo precisa seguir adiante, entendido como um compromisso coletivo permanente de salvaguarda da dignidade e respeito que cada ser humano é merecedor.

 

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A menina que dançava com o vento - da série Histórias que a Mamãe Contava

 

/  Sheila Sacks  /



Alguns cadernos de seus primeiros anos de escola ainda estavam guardados na casa da mãe. Uma ampla reforma há muito anunciada fez com que aqueles velhos papéis voltassem às suas mãos. Seu antigo quarto, com novas poltronas e os armários removidos, agora era uma extensão da sala que se enchia de netos nas Grandes Festas. Como professor de literatura comparada na Universidade de Jerusalém, Aaron sempre tinha o passado de forma presente em suas aulas. Reservado e discreto, o estudo em escolas ortodoxas o moldou de um jeito onde o popular e o folclórico não tinham lugar relevante. 

Filho de uma brasileira de rara beleza que emigrou para Israel aos 17 anos, na década de 1950, Aron se sentia mais apegado às suas raízes europeias vindas do pai nascido na Antuérpia, descendente de austríacos. Negociantes de diamantes, seus avós chegaram à então Palestina em 1938, após os nazistas invadirem a Áustria. Uma parte da família ainda morava naquele país e o temor de que a Bélgica tivesse o mesmo destino forçou a mudança apressada para o protetorado britânico. Um influente comissário inglês a serviço na Palestina tinha laços comerciais com o avô e garantiu a entrada da família no porto de Haifa.  Quando Aaron nasceu, seus pais, avós e tios já moravam na eclética cidade de Savyon, perto de Tel Aviv, em amplas e belas casas rodeadas de jardins.

Lembrava sem muito entusiasmo a estadia no Rio, ainda moleque, para conhecer os avós maternos, que não falavam o hebraico. Então, o que restou daquela visita de poucos dias foram as tardes nubladas de julho e as longas e indecifráveis conversas entre a mãe e a avó, em português, que depois veio a saber se referiam a uma possível mudança dos avós para Israel. O que jamais aconteceu. Eles faleceram e foram enterrados no Rio, primeiro o avô e alguns anos depois a avó. Os tios, que moravam em São Paulo, Aaron só os conheceu no casamento de uma de suas irmãs, em um hotel em Jerusalém. Ambos estavam sozinhos, sem as famílias. Porém, daquela viagem ao Brasil, a mãe trouxe uma pintura enrolada, que ganhou moldura e espaço na antessala da casa.

Assim, o longínquo Brasil sobrou fora da vida de Aaron, lembrado esporadicamente quando o assunto girava em torno de futebol, esporte aliás que não desfrutava de  sua preferência. Entretanto -  e nem mesmo ele entendia o porquê - a partir de um determinado momento de sua vida, talvez aos quatorze ou quinze anos, ele começou a reparar com mais acuidade um quadro pendurado na saleta de entrada da casa, pintura feita pela avó nos idos de 1930. Pintado a óleo, a paisagem tinha cores fortes e mostrava uma praia com coqueiros ondulando ao vento; uma primitiva embarcação de madeira com a vela gasta pelas intempéries do tempo; e o pequeno pescador, de dorso nu, enrolando a rede de pesca. O barco estava a poucos metros do mar, cujas ondas desciam em espumas que avançavam pela areia.

Quando deixou a casa dos pais para morar sozinho em Jerusalém, Aaron surpreendeu a mãe e a si mesmo ao pedir para levar o quadro consigo para a nova moradia. Desde que havia se mudado para o apartamento perto da faculdade, ele se sentia incomodado e saudoso do aconchego da casa dos pais. E refletindo por mais de uma semana sobre esse sentimento de abandono chegou a espantosa conclusão de que o quadro da saleta poderia ajudá-lo nessa transição. No shabat, quando jantava com os pais, a visão do quadro ao adentrar na casa o fazia sorrir e tranquilizava seu coração inquieto. Tinha 29 anos e era o caçula e único filho homem. Suas duas irmãs estavam casadas e os cinco sobrinhos eram motivo de prazer e dispersão de seus afazeres. A mãe percebendo que a presença da criançada atrapalhava a rotina do filho, não pensou duas vezes. Comprou um apartamento para Aaron. O pai de Aaron nunca dizia não a mulher. Agradá-la era tudo o que queria. Sonia foi paixão à primeira vista, um amor sem limites que o tornava o homem mais feliz da terra.

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Através das estepes geladas da Romênia, o trem avançada rumo a longa viagem até o porto de Hamburgo, naquele rigoroso inverno de 1923. Maya tremia de frio ainda que usasse o casaco de pele de ovelha comprado na véspera, cachecol, luvas e meias forradas de lã. Viajava em um dos vagões com assentos duplos estofados, abraçada à Eva, sua irmã favorita.  A mãe, Batya, olhava pela janela embaçada os contornos da paisagem nevada, parecendo absorta em seus pensamentos. Paulino, o caçula de cinco anos, dormia com a cabeça em seu colo. Ao lado da mãe, com o anel de noivado luzindo no dedo, Bela estava de olhos cerrados, talvez sonhando com o noivo na terra distante.



O pai, Samuel, tinha partido há mais de um ano para a cidade de Recife, lá do outro lado do mundo, lugar de gente hospitaleira e onde o sol brilha o ano inteiro, escrevia em suas cartas.  Depois das repetidas ameaças dos Camisas Verdes, um grupo fascista romeno que  constrangia os comerciantes judeus como Samuel, dono de uma frequentada loja de tecidos na principal via de comércio de Chernivtsi,  encontrar uma terra de paz para a família era tudo que o pai almejava.

Ele foi embora, acompanhado do filho mais velho e do noivo de Bela para tentar a vida em uma América de língua portuguesa que seus primos, há quase uma década ali estabelecidos, contavam uma história de sucesso. Residiam em casas bonitas, tinham lojas bem situadas e dinheiro para viver muito bem.

Na última carta, o pai deu a boa nova. Tinha comprado uma casa e o negócio estava prosperando com a clientela acima do esperado. Era chegada a hora de deixar a região de Bucovina para sempre. Batya se destacava como uma exímia costureira que moldava vestidos festivos e disputados de seda, musseline, cetim e linho que os fornecedores do marido traziam da China e da Índia, em peças de dezenas de metros. Com uma boa quantidade de tecidos estocado em casa, Batya conseguiu sustentar os filhos e juntar o dinheiro necessário para deixar a sua Romênia natal.

E assim foi. Depois de penosos dias no interior do trem, que por duas vezes teve o percurso interrompido pelo acúmulo de neve nos trilhos, e acompanhando as águias das estepes de plumagem castanha em seu voo migratório para o norte da África em busca de sol e calor, a família embarcou em Hamburgo no barulhento vapor com a grande chaminé expelindo fumaça negra. Foram mais de duas semanas de viagem na segunda classe o que fez com que Maya conhecesse outras crianças na mesma situação. Poucas pessoas, porém, tinham como destino o porto de Recife, Maya escutou a mãe conversar com Bela. Como eles, eram cinco poloneses, três irmãos músicos da cidade de Lodz e um jovem casal, ela grávida, de Varsóvia. Um grupo de judeus berlinenses ficaria nos arredores de Londres, a primeira parada do vapor, e o restante dos passageiros atravessaria o Atlântico em direção à América do Norte. Do porto de Nova Iorque a embarcação ainda faria uma parada no Panamá, antes de seguir, enfim, rumo a Recife.

2

Quando Maya finalizou o quadro da praia de Tambaú ela tinha 22 anos e morava com os pais em uma casa no bairro do Méier, no Rio de Janeiro. Havia concluído o curso de desenho e pintura na Escola Nacional de Belas Artes e dava aulas para iniciantes no ateliê nos fundos da residência. Era uma jovem alta e esguia, de cabelos escuros esmeradamente trançados e presos em um coque elegante.

Maya tinha pernas longas e bem torneadas e profundos olhos azuis e quem quer que fosse não passava incólume diante daquela visão. Aprendera a costurar com a mãe e fazia seus próprios vestidos. Mas os sapatos exclusivos e os chapéus que gostava de exibir eram a sua paixão. Ao passear pela movimentada Rua Gonçalves Dias, no centro da cidade,  Maya se deliciava contemplando as vitrines. Uma vez por semana, acompanhada de Eva, bacharel em Direito que trabalhava em um cartório na Rua do Ouvidor, adentravam na Confeitaria Colombo para um chá com torradas Zwieback, atraindo os olhares masculinos.

Mas, naquele específico ano de 1934, Maya estava ocupada em produzir uma série de pinturas para a exposição anual do Salão de Belas Artes na qual foi convidada. Imaginava como pintaria as quatro estações do ano, cada uma em um quadro, e logo pensou no rigoroso inverno de sua terra natal, com as ruas cobertas de neve. O verão remontaria ao sol quente da praia dos pescadores, e quanto à primavera e outono, conjeturava, iria recorrer à beleza dos campos floridos dos arredores de Bucovina, e as folhas alaranjadas que se desprendiam das frondosas faias nos parques silenciosos. Paisagens vivas em sua memória.

Durante três meses trabalhou incessantemente, sem deixar de dar aulas porque também precisava comprar as molduras. No dia da exposição, a ansiedade tomou conta de Maya ao ver a quantidade de pessoas presentes. Doze ex-alunos faziam parte da mostra, cada um representando um estilo artístico. Ao lado da mãe e das irmãs, Maya deslumbrava a todos em seu vestido azul marinho de bolinhas brancas, sapatos de salto forrado do mesmo tecido, faixa vermelha amarrada à cintura, casaquinho branco e um pequeno chapéu com uma pena vermelha na presilha dourada. De seus olhos azuis emanavam uma luminosidade e beleza que nenhuma pintura poderia alcançar.

Assim pensou Tobias ao ver Maya pela primeira vez. Tinha sido convidado por Eva para a exposição e veio acompanhado do primo, seu sócio no escritório de contabilidade. Com 35 anos, ele era um homem independente, como aliás sempre almejou, a partir do dia que desembarcou no porto do Rio de Janeiro, há duas décadas, rapazote franzino, sozinho e inseguro. Órfão desde os sete anos, foi acolhido pelos tios depois que a irmã mais velha foi para a Palestina como madrichá (orientadora) no movimento sionista Hashomer Hatzair.

Alto, magro, culto, discreto e de poucas palavras, Tobias foi apresentado à Maya e sentiu no meio sorriso da jovem qualquer coisa de receptividade, ou, talvez, estivesse completamente enganado. Não era de hoje que se imaginava um solteirão convicto, um cara esquisito e sem paciência para vida em família. O trabalho o absorvia por completo e o tempo que sobrava era dedicado à literatura. Tinha paixão por livros de filosofia, biografias e romances. Frequentava as sessões de teatro e cinema, era espectador de concertos e óperas, apreciava e visitava as exposições de arte. Cada restaurante que abria no Rio, na semana seguinte lá estava ele conferindo o menu. De que jeito poderia conciliar essa vida que tanto amava, livre e sem amarras, com esposa e filhos?

Mas, olhando o porte, a beleza e a desenvoltura de Maya, suas convicções que pareciam tão firmes foram por água abaixo. Marcaram um jantar para o fim de semana, com a aprovação de Batya que se encantou com Tobias. Um homem de classe, definiu a mãe de Maya, surpreendentemente feliz ao contar a nova ao marido. - Baruch Hashem (Louvado seja D’us), murmurou Isaac, desejando do fundo do coração que alguma coisa boa resultasse do encontro. Ele não tinha muito a festejar. Bela vivia às turras com o marido e o noivo de Eva desistiu do casamento um mês antes do enlace. Talvez com Maya, a filha linda e rebelde, que não aceitava conselhos, o destino fosse mais camarada. 

3

Maya acordou com o vento entrando pela janela e sacudindo as cortinas de voal. Saltou da cama animada e ainda descalça atravessou a porta lateral que se abria para a praia. O sol começava a se erguer no horizonte, parecendo flutuar na imensidão do mar. Os pescadores empurravam os toscos barcos de madeira pela areia e alguns carregavam as redes nos ombros. Com o vento se encorpando pela manhã, os homens voltavam mais cedo da pescaria. Os ventos alísios habitavam aquelas paragens já no início de julho e só se despediam em setembro, quando começavam os preparativos para Rosh Hashaná ( ano novo judaico).



Maya viu Pedro sentado na areia e correu ao seu encontro. O menino com o corpo molhado abriu o sorriso e apontou a penca de peixes sendo retirada de um dos barcos. - Hoje tem tainha, disse. Do jeito que dona Batya gosta. Maya escutava o vento e mal ouvia o que Pedro dizia. Com os longos cabelos livres das tranças, o rosto alvoroçado de prazer, lança a vista em direção aos altos coqueiros com suas copas verdejantes farfalhando sob um céu coalhado de nuvens. Dominada pela mágica da natureza, abre lentamente os delicados braços e já com eles abertos começa a rodopiar, primeiro devagar e depois mais rápido, virando o corpo de um lado para o outro, emendando com pequenos saltos ornamentais, olhos cerrados, em uma dança singular e graciosa.  A figura esguia, quase etérea, deslizava pela areia revolvida pelo forte sopro do vento que fazia ondular a fina camisola bordada nas beiradas.  Maya sorri inebriada e já perto dos altos coqueiros imita fascinada o vento que brinca com as imensas folhagens. Dança em frente às árvores, imitando seus movimentos, os passos ligeiros em consonância com o ritmo intermitente dos sopros e lufadas, às vezes mais apressados, outras vezes parecendo longos suspiros.  

Da janela, Eva percebe que Maya mais uma vez dançava com o vento. Interrompidos em seus afazeres, os pescadores olhavam curiosos na direção da menina e dos coqueirais. Há três anos a família vivia em João Pessoa, na Paraíba, onde o pai Samuel instalou uma loja de tecidos de seda e tafetá. Batya trabalhava ao lado do marido e tinha uma boa clientela para seus vestidos de festas.

Bela estava casada e morava com a família. Uma vez por ano alugavam uma casa na praia de Tambaú para um breve descanso. Maya aguardava ansiosa a temporada de praia. Gostava de ver os pescadores sentados embaixo das caiçaras revestidas de palha, indo e voltando do mar, com suas redes e peixes. Navegar na jangada de Pedro era a diversão preferida, assim como escutar suas histórias assustadoras sobre criaturas gigantes, meio homem, meio peixe, que nas noites de lua cheia rastejavam pela areia e raptavam as moças mais bonitas do lugar.

Maya gostava de desenhar e pintar. Através de uma cliente, Batya conseguiu uma vaga em uma escola onde havia professoras talentosas nessa arte. Era um colégio administrado por freiras francesas e ficou combinado que a filha teria aulas de pintura e bordado. Em pouco tempo, Maya já pintava aquarelas que recebiam elogios das professoras. – A menina tem talento, diziam. Precisa continuar o aprendizado em uma escola de Belas Artes. Talvez no Rio, talvez em Paris. Na ocasião, Samuel tinha ido a Recife a negócios e Batya já sonhava em se mudar para uma cidade maior pensando no futuro de Eva e Maya.

4

Tinham terminado o jantar quando Maya chamou a filha para conversar. Foram para o Jardim de Inverno, uma varanda envidraçada onde Maya tinha vasos de gerânios vermelhos e samambaias. Sonia percebeu pelo semblante da mãe que a conversa não seria agradável. Sentaram-se em silêncio em volta da mesa redonda de madeira branca. Sonia tinha terminado o científico e se preparava para o concurso de ingresso na faculdade de arquitetura.

- Você vai ficar um tempo em Israel, disse Maya em voz baixa, os olhos fixos na filha. Já falei com a irmã de seu pai. Ela vai receber você de braços abertos, completou. Ao escutar a sentença, Sonia se ergueu da cadeira, deu às costas e seguiu para o quarto. Quando seus irmãos menores quebraram a promessa e contaram de seu namoro com João, ela sabia que vinha castigo pela frente.

Sônia era a cópia da mãe. Alta, magra, longos cabelos castanhos, feições harmoniosas e belos olhos azuis que causavam impacto à primeira vista. João era filho da professora de Geografia, morá Cíntia, do Hebreu Brasileiro, a escola judaica onde Sonia estudava desde a infância. O rapaz, que já cursava a faculdade de Direito, não  era judeu e estavam namorando às escondidas há dois anos.

Na primeira conversa séria com a filha, depois da revelação do namoro secreto, Maya foi explícita. – Não saímos da Europa, eu e teu pai, para vermos uma filha nossa envolvida com um goy (não judeu). Isso jamais aceitaremos, afirmou.



Sonia chegou a Israel com a cabeça cheia de planos para dar um jeito de retornar logo ao Brasil. Mas, quis o destino que ela encontrasse em sua primeira visita à faculdade de Tel Aviv, um jovem insinuante, de corpo atlético, sorriso largo, nascido em berço de ouro e pronto para satisfazer suas vontades. Eli estava no último ano do curso de administração e trabalhava com o pai no ramo de diamantes. Em menos de um ano casaram e Sonia adiou seus planos de cursar arquitetura. Vieram os filhos, Ilana, Ava e finalmente Aaron, o menino tal almejado por Eli.

5

Naquela tarde cinzenta, Maya retornou do cemitério com os filhos. Um enfarte fulminante matou Tobias enquanto almoçava com amigos no centro. Rony e Rubem ficariam mais dois dias com a mãe antes de voltarem para São Paulo. Sonia planejou a estadia de uma semana. Iria encontrar algumas amigas dos tempos do ginásio no Hebreu Brasileiro. Maya pensou que gostaria de estar sozinha com sua dor, mas esse desejo poderia magoar os filhos. O sofrimento a tornava arredia, calada e solitária. Apesar dos 81 anos, o marido ainda gostava de encontrar os amigos e clientes de longa data, do tempo do escritório de contabilidade. Arrumava-se com esmero, de paletó, gravata e sapato social, chamava o táxi e partia para o centro para o almoço festivo. Quando voltava, lembrava Maya, vinha tão satisfeito, falante, cheio de histórias.

Os primeiros anos de casamento não foram fáceis para Maya. Tobias era calado, tinha seus hábitos e na maioria das vezes parecia distante dos problemas cotidianos. Maya compreendeu que tinha que resolver sozinha os problemas domésticos e familiares. Tobias tinha dois primos solteirões e uma vez ao ano os três realizavam um cruzeiro de dez dias para aproveitarem o período de descanso do trabalho.  Nas férias escolares, Tobias pagava para Maya e as crianças se hospedarem em um hotel fazenda no interior do estado, às vezes em uma pousada de praia, ou alugava uma casa por temporada na região serrana. Ele permanecia no Rio, cuidando do escritório.

Aos poucos Maya foi se esquecendo de si mesma, de seus sonhos e de tudo que um dia planejou. Ficou mais calada e contida. Com os filhos adolescentes, Maya teve um pouco mais de tempo e voltou a pintar. As lembranças de Tambaú se avivaram e as paisagens praianas e urbanas, de prédios coloniais e estradas de pedras, foram surgindo em sua memória para as telas a óleo.  Alugou um espaço em uma galeria no centro e depois de três meses recolheu os quadros. Os transeuntes passavam, olhavam ligeiramente e seguiam adiante. Desapontada, cobriu os quadros com lençóis e os esqueceu no quarto dos fundos da ampla casa da Tijuca. 

6

O encontro de Sonia com as colegas de colégio em um restaurante de Ipanema foi repleto de surpresas. Observou que o tempo havia maltratado as mais bonitas e feito menos estrago nas meninas não tão populares. Cada uma com uma história de vida, todas casadas, aparentemente felizes, com filhos, bons empregos, diplomas universitários e residindo na zona sul.

Entre um copo e outro de vinho, sua melhor amiga no colegial, Bertinha, contou em tom se segredo que foi convidada para um cargo importante em Brasília. Ela trabalhava na promotoria do Rio, e apesar da lisonja do convite teria que recusar porque não dava para ficar a semana toda longe dos filhos e do marido. - Ele é ministro do Superior Tribunal da Justiça, revela. O João, lembra?

Sonia, então, soube que João estava tendo uma carreira brilhante. – Quando você partiu, o João ficou mal. Chegou a chorar, confidenciou. Fiquei com muita pena. Somos amigos desde então. Aliás, a esposa dele é um doce, advogada também. Quer ouvir mais? indagava a amiga.

Já em casa, Sonia caminha até a varanda, acende a cigarrilha e pensa em tudo que ouviu. A amiga falava rápido, misturando tempo e datas. João só casou aos 38 anos, com uma jovem aluna de Direito, filha de magistrado, muito linda, “parece você, Maya, no colegial”.

Bertinha tinha ficado mais bonita com a idade. Envergando um terninho de linho, pouco lembrava a adolescente acima do peso, de rosto redondo e cabelos cacheados. – Me recordo que todos os garotos eram caidinhos por você, continuava. - E as meninas tinham uma inveja danada.

Balançando a cabeça, rememorava o passado. - Quando descobriram que você estava de namoro com o João, bem, foi como tivessem jogado uma bomba no colégio. Foi um disse me disse geral. Imagina ! O único garoto goy da escola, o filho da professora Cíntia ! Nossa ! Foi um escândalo !

Já no quarto estava no quarto copo de vinho, diante da sobremesa, Bertinha tinha o rosto afogueado pela bebida e pelas revelações. – Não resisti e contei pro João que você está no Rio, fiz mal? Diante do gesto de indiferença de Maya, prossegue: -  Ele primeiro ficou em silêncio e depois respondeu assim, vou reproduzir as palavras do João: “Superei, sobrevive e me sinto muito bem agora.  Afundei nos estudos e alcancei meus objetivos. Hoje sou um homem sem mágoas.”

Maya há muito tinha varrido da memória esse capítulo de sua vida. João foi o amor adolescente que não podia dar certo. Era sofrimento, paixão, insegurança, culpa, segredos.  Seus pais tinham razão: Israel foi a salvação. Abalada pelas palavras da amiga que trouxe para o presente um momento dolorido do passado, telefonou para o marido, falou com as filhas e Aaron, e se acalmou.  Eles eram a sua base emotiva, os alicerces de sua existência.  Em poucos dias estaria de volta ao carinho do lar, na amada terra santa que a abrigou e a encheu de felicidade desde o primeiro minuto de sua chegada.  Somente lá se sentia segura, altiva e dona de seus sentimentos. Só tinha a agradecer o seu ditoso destino.

Maya vê a filha na saleta, ao lado do telefone, e chega até ela. Sonia abraça a mãe e não consegue conter as lágrimas. – Agradeço muito a você, mamãe, e ao papai também, por terem me tirado daqui. Encontrei a felicidade em Israel. Na época, confesso, me pareceu um castigo, mas o tempo deu razão a vocês. E levando a mão ao coração, reforçou: - Hashem (D’us) olhou por mim, me protegeu e abençoou. Foi a melhor decisão e hoje entendo isso muito bem. Baruch Hashem !

7

Pedro ficou triste quando Maya partiu para a cidade do Rio de Janeiro. Gostava de ver a amiga dançar quando os ventos alísios se aproximavam da costa.  Muitas vezes, encantado, aplaudia  a menina  em seus saltos ornamentais. Quando a maré permitia, Pedro avançava pelo mar levando Maya para a pescaria. Mas, o que Pedro mais gostava era conversar com Maya e ouvir seus conselhos . Três anos mais velha que Pedro, a menina tinha umas ideias que faziam o menino matutar.  – Você precisa aprender a ler e escrever, Pedro.  Ser um homem de negócios, igual a meu pai. Ficar só pescando não vai te dar uma casa bonita e nem dinheiro para viver bem, insistia Maya nas conversas ao pôr do sol.

O menino cresceu, estudou, instalou primeiro um bar perto da praia e depois ampliou para um restaurante. O local virou atração turística pelos pratos de peixe da região. Com o tempo investiu em imóveis e ficou rico.  Um dos prédios que construiu, à beira da praia, ganhou o nome de Maya. Cultivava a esperança  de um dia encontrar a amiga de infância onde quer que fosse, ainda que velhinha, iria reconhecê-la, sonhava  



Uma vez, soube que uma mulher de fora, com sotaque, muito elegante e bem vestida , perguntou ao porteiro sobre a origem do nome do prédio. Pedro, com o coração aos saltos, passou o dia percorrendo a cidade contando com a sorte para encontrá-la. Poderia ser a Maya, pensou, ainda que considerasse a hipótese fantasiosa.  

Contratou um detetive para encontrar a tal mulher misteriosa. Primeiro em João Pessoa e depois no Rio. Com o fracasso da busca, uma obsessão estranha veio à tona e João percebeu, pela primeira vez, que Maya sempre esteve presente em seu inconsciente.  Ele se alfabetizou, trabalhou e alcançou a riqueza tentando mostrar a si mesmo que poderia estar à altura da menina de olhos azuis, tão linda quanto simples e encantadora.

Os anos se passaram e Pedro faleceu antes de completar 60 anos, em um desastre na principal rodovia da cidade.  Nunca deixou de pensar em Maya, um amor que o tempo foi revelando de uma forma inequívoca. Às vezes a esposa e os filhos viam Pedro silencioso, de olhar perdido, meio sorriso à beira da  imensa piscina da casa em estilo colonial, e não imaginavam no que ele estaria pensando.  Maya, a menina que dançava com o vento, aos poucos foi ocupando os hiatos de tempo e os sonhos de Pedro de uma forma doentia. Pagou um novo detetive  para descobrir seu paradeiro no Rio. Em vão. Tentou uma terapia de grupo e de alguma forma se sentiu melhor. Jamais contou à família sobre aquele amor obsessivo e impossível. Começou a beber um pouco a mais do que o desejável e no interior do carro que dirigia na noite chuvosa em que faleceu, foram encontradas algumas latas de cerveja vazias.  

8

O vento soprava forte naquela manhã de setembro. Era a época dos ventos no balneário de Cabo Frio, na região do Lagos. Maya sentada na cadeira de praia louvava a natureza que era um presente diário em sua vida.

Seis meses depois da morte de Tobias resolveu sair da casa na Tijuca. – Finalmente, comemorou Sonia pelo telefone. Sempre invejei minhas amigas que se mudavam para a Zona Sul.  Você não tem ideia, mamãe, como eu sonhava viver ao lado da praia, confessou.

Maya então revelou. – Lembra, filha, daquele balneário que a gente passou as férias? Você tinha uns dez anos.  Resolvi que vou pra lá.

Sonia engoliu em seco. – Mas é muito longe, mamãe! É um lugarejo de férias. Se você quer morar perto da praia, Copacabana é tudo de bom, argumentou.

Maya então contou que Bertoldo, o advogado que administrava os imóveis, já tinha alugado a casa da Tijuca para uma clínica médica e que na semana seguinte ela iria se instalar na casinha à beira mar. - É só atravessar a rua e se está na praia. Um sonho de lugar. Não se preocupe, filha, lá tem tudo que preciso. Agência de banco, supermercado, e até um cinema.

Sonia ouvia calada a mãe falar animada sobre o lugar que ela mal se lembrava. Só sabia que era uma praia de pescadores e ficava muito longe do Rio.  – Não é tão longe assim, replicava Maya, talvez umas quatro horas de ônibus. E é tudo tão lindo, descrevia. Uma cidade de interior com praia, mar e vento. Muito vento, aliás, enfatizava. -  Acho que estou quase feliz, filha, se isso é possível.

Maya viveu seus últimos anos inteiramente livre e em estado de graça como ela bem definia seu sentimento em relação a si e ao mundo ao redor. A natureza era a sua companheira de cama e mesa e as nuances de sua beleza e humores a encantavam. Chegou a pintar alguns quadros que exibia na varanda da casa e vendia principalmente para os veranistas que passavam por aquelas paragens. Andar na areia, comprar peixe e conversar com os pescadores que costuravam suas redes e arrumavam seus barcos na enseada da praia do Forte era rotina diária. Às vezes imaginava Pedro já homem feito, pele curtida pelo sol, mãos calejadas, retornando do mar em seu pequeno barco repleto de peixes.

Em suas andanças pela longa praia, fez amizade com a gente simples do lugar cujo sustento vinha do trabalho na areia, principalmente nos meses do verão.

Quando faleceu, de uma gripe que evoluiu em poucas semanas para uma pneumonia aguda, os filhos já estavam ao seu redor, avisados por Bertoldo, a quem Maya tinha um carinho especial pelos anos que trabalhou com Tobias. Transportada para um hospital no Rio, ainda resistiu alguns dias, mas sem recobrar a consciência.

9

Maya foi enterrada no cemitério israelita, conforme a tradição, e Sonia e os irmãos, pela primeira vez em muitos anos, se abraçaram, dominados por uma sensação de perda, tristeza e desconsolo que jamais imaginaram ter tamanha amplitude.

Avisados por Bertinha, os colegas da turma do Hebreu compareceram e Sonia percebeu que os amigos de seus irmãos também estavam presentes. – Somos yehudim (judeus) e precisamos ficar juntos não somente nas festas, mas principalmente em ocasiões difíceis, disse um dos colegas consolando o irmão.

Maya foi uma mãe presente, cuidadosa, preocupada e rígida quando a ocasião exigia. Mas, ao mesmo tempo, sem muitos arroubos de carinho e abraços. A beleza e a elegância que a tornavam alvo de olhares e elogios, perduraram por um longo tempo. A iniciativa de se isolar e morar sozinha numa pequena cidade do interior, distante de tudo e de todos, frequentemente era questionada pelos filhos. Contudo, diante da morte, da inexorabilidade à qual todos devem enfrentar, as memórias felizes da infância e da adolescência inundaram de amor e saudade os corações de Sonia e de seus irmãos.

No avião, retornando a Israel, Sonia percebeu que de agora em diante teria de conviver com um sentimento de vazio que a deixava à mercê da solidão e de uma incômoda melancolia. Engoliu o remédio de enjoo, fechou os olhos e rememorou o encontro com João, depois de tanto tempo. Ele estava ao lado de Bertinha, na cerimônia do enterro, um homem de cabelos e barba grisalhos, fisionomia serena e olhos tranquilos, elegante no terno azul marinho.

Depois de abraçá-la, João sorriu e segurou suas mãos. Sônia, emocionada, sentiu como uma névoa se dissipasse em seu horizonte. – Como está a morá Cíntia, perguntou. João contou que sua mãe tinha falecido há três anos, de câncer, e a grande maioria de seus alunos do Hebreu foram ao enterro e que ele era muito grato pelas homenagens e demonstrações de  respeito de todos. – Foi tocante e só tenho a agradecer a oportunidade que tive em estudar e conviver com vocês no Hebreu.

Sonia, finalmente, sentia-se em paz com seu passado. A generosidade de João de ir até ela, sem cobranças ou amargura, a emocionou. Lembrou como foram difíceis os primeiros dias em Israel, oprimida por sentimentos de impotência e dor. Uma semana depois de sua chegada ao país, recebeu a primeira carta de João. Seu coração disparou e sentiu um sopro de alento. – Não abra a carta, recomendou a tia de Maya ao entregar o envelope. Meses depois, olhando a pilha de cartas fechadas dentro do armário, escreveu para Bertinha comunicando seu noivado com Eli. As cartas cessaram e antes de jogá-las no lixo não conteve a curiosidade e abriu uma delas. O que estava escrito a perturbou: “Por favor, responde. Estou enlouquecendo de paixão. Sempre seu, João.”  Com a alma contrita, foi rasgando uma a uma as cartas, clamando aos céus para apagar de vez esse doloroso período de sua vida.

10

Na ligação de despedida, Bertinha anunciou a Maya que tinha combinado com a turma que anualmente, em novembro, depois das Grandes Festas (Rosh Hashaná e Yom Kipur) se encontrariam para um jantar de gala. – Clarinha, que está nos Estados Unidos, e Sofia, na Itália, já confirmaram, exultou. Espero que você venha também.

No aeroporto de Roma, enquanto esperava o voo final até Israel, Maya voltou a ocupar os pensamentos de Sonia. Em conversa com a vizinha de Cabo Frio soube que Maya ficou doente depois de uma tempestade de chuva e vento que assolou a cidade. Ela estava na praia e ao invés de logo voltar para a casa, ficou dançando na areia por um bom tempo. Os pescadores me contaram, disse a vizinha consternada. – A propósito, um dia dona Maya me revelou que quando menina dançava com o vento, lá em Tambaú, onde disse, viveu os melhores anos de sua vida.

Sonia olhava a praia que se descortinava pela janela. A beleza do lugar era inquestionável. Ao fundo, a fortificação centenária caiada de branco ladeada pelo mar de um azul intenso. Acenou com a cabeça dando a entender que sabia da infância da mãe, o que não era verdade. Chegava a triste conclusão que não conheceu a mãe. – Acho que sob esse pedacinho de céu ela também foi muito feliz, pensou em voz alta, procurando segurar o choro que, malgrado seus esforços, teimava em irromper a qualquer instante.

Bertoldo a esperava no carro e Sonia pôs os óculos escuros ao sair da casa à beira mar. – Vou sentar no banco de trás, avisou.  Não se incomode comigo, Bertoldo.  Só preciso de um canto para chorar, suspirou, enquanto o homem fazia a curva e dirigia rumo ao aeroporto. Na bagagem, Sonia levava a última tela pintada por Maya, com pescadores, barcos e redes. A menina ao fundo, meio escondida entre os coqueirais, surpreendeu Sonia. Sua camisola de um tecido fino e drapeado  ondulava como as folhagens nas copas das árvores. Na areia, pés descalços, com uma bata de algodão cobrindo o corpo, Maya olhava serena o horizonte furta-cor da manhã, onde um sol esplendoroso emergia de dentro do mar anunciando mais uma jornada terrena singular, surpreendente e ininteligível.

domingo, 20 de agosto de 2023

Chabad Copacabana anuncia campanha para construção de nova sede

  - Prédio sustentável será um marco na arquitetura brasileira - 

Sheila Sacks / 


Bairro ícone do país e um dos mais visitados por turistas internacionais, Copacabana vai ganhar um centro judaico inovador, com sustentabilidade e tecnologia. O Maayan Jewish Center terá a cara do Rio, estado que congrega a segunda comunidade judaica do Brasil, com 20 mil membros. O prédio será erguido onde atualmente funciona a casa do Chabad e se constituirá na primeira construção de madeira de mais de dois andares da cidade e o primeiro prédio cultural em madeira engenheirada (madeira que passa por processos de engenharia e são pré-fabricadas) do país.


Situado ao lado de um parque florestal, perto do metrô e da praia, a pouca distância do hotel mais emblemático do Brasil, o Copacabana Palace, o novo espaço vai atender o bairro onde se concentra o maior número de judeus.

Além de uma sinagoga com 300 lugares, o prédio terá capacidade para acolher com mais conforto e segurança toda a comunidade que participa das atividades religiosas e culturais que o Chabad oferece, como miniamim diários, Shabat, Chaguim, Beit Midrash, Colel diário (manhã e à tarde), aulas, palestras e seminários.


Inaugurado em janeiro de 2008, o Maayan - Lubavitch Copacabana funciona em uma casa de dois pavimentos e é dirigido pelo rabino Ilan Stiefelmann e sua esposa Deby. Sete mil judeus participam anualmente de suas atividades. O novo prédio, com três pavimentos e cobertura, vai beneficiar a comunidade em matéria de espaço, já que dezenas de eventos, por falta de instalações adequadas, tiveram que ser realizados em locais diversos, como por exemplo, em hotéis da cidade.


Segundo o Chabad, anualmente cerca de 50 mil turistas judeus visitam a cidade e ter um espaço que reúna sinagoga, salão multiuso para eventos, terraço, cafeteria, restaurante,  cozinha industrial, Mikve (feminino e masculino), salas de estudo, biblioteca, quadra poliesportiva, Kosher Gym (fitness) e áreas de lazer, inclusive infantil, vai ser um diferencial no sentido de proporcionar aos visitantes um ambiente único e pleno de convivência  judaica.


A campanha de doação será promovida entre 9 e 13 de setembro e o sucesso depende da participação de cada um. Guarde esta data!

 

Mais sinagogas

 

Benjamin Netanyahu na sinagoga de Copacabana, em 2018


Copacabana tem mais três casas de rezas que funcionam diariamente: 

- A  tradicional sinagoga Kehilat Yakov, mais conhecida como a Sinagoga de Copacabana, fundada em 1956 e que tem à frente o rabino Shai Tauber, filho do rabino Eliezer Stauber, que por mais de 35 anos dirigiu o templo. 


O prédio fica ao lado da pracinha do Bairro Peixoto, um oásis dentro de Copacabana com suas casas das décadas de 1940/1950 tombadas pelo patrimônio municipal.  

- A sinagoga Beth-El (Confarad), conhecida como a sinagoga do CIB, porque foi construída no terreno do Clube Israelita Brasileiro. 


Ainda nas instalações do CIB funcionam um mercadinho e um restaurante Casher.

-  E a sinagoga ortodoxa do Colégio TTH Barilan, a Kehilat Moriah. A escola tem cozinha industrial e restaurante Casher. Também funciona no colégio (que vai do maternal ao Segundo Grau),  o movimento Bnei Akiva. 

As três sinagogas estão localizadas no "coração de Copacabana", entre os postos quatro e cinco, na região mais movimentada e turística.  


Informação posterior: a arrecadação se encerrou às 19h do dia 13/9, com o valor de R$ 5.031.242, bem acima da meta inicial de R$ 3 milhões.