/ Sheila Sacks /
Anualmente,
setembro em Nova Iorque é o mês em que a cidade recebe um ajuntamento de chefes
de Estado, embaixadores e líderes mundiais para a abertura dos trabalhos da
ONU. Um palanque mundial de excelente visibilidade midiática para discursos
politicamente corretos sobre temas atuais ou universais. É de bom tom falar de proteção
ao meio ambiente, preservação climática, desenvolvimento sustentável,
saneamento básico, justiça igualitária, combate à fome, subemprego e desigualdade social ,entre outras pautas orientadas pela realidade, bom senso,
humanismo e civilidade.
A
oportunidade também é usada de fato como palco para lideranças diversas
defenderem e justificarem pontos de vista e ações que, apesar de resultarem em
atos moralmente condenáveis, contam com o disfarçado beneplácito de um punhado
de nações que se escudam em conceitos
consagrados de não intervenção para se absterem de críticas e iniciativas mais
contundentes. Um comportamento propositadamente acanhado, que de certa forma abre
caminho para a violência.
O
papel da mídia convencional nesse contexto é relevante, apesar da força e
influência, cada vez mais potente, das redes sociais. A disseminação da
desinformação não é mais produzida por amadores e o mercado das fake news opera
em paralelo com a produção da informação divulgada pela imprensa. O ardil das fake news não é se constituir em
uma mentira escandalosa e sim irradiar as torpes meias verdades, contar apenas um lado da história, deturpar
os fatos e criar um jogo de imagens através da linguística no sentido de caluniar, desestruturar, desestabilizar e ilegitimar
o alvo das agressões.
O
estado de Israel, desde a sua fundação em 1948, tem enfrentado ações políticas
por parte de alguns governos que questionam suas ações de defesa e iniciativas de segurança para proteger e
preservar a população civil do país. São
nações que compõem a ONU e cujos líderes
trabalham oficialmente e nos bastidores para criar situações de
conflitos, constrangimentos e de impasses no intuito de solapar uma saudável
convivência diplomática. Bem ao contrário do que deveria ser, perseveram para tornar cada vez mais
espinhosa o trato cotidiano de Israel nessa Organização e em seus
Conselhos, assim como em outras
entidades de amplitude internacional, como a Unesco.
Disso
resulta um aumento no antissemitismo global, não importando que argumentem que
as hostilidades são direcionadas para o estado sionista e que não abrangeriam
os judeus da Diáspora. Uma falácia, de uma série de outras inverdades, visto
que até em salas de aula do Oriente Médio são propagadas as mesmas surradas mentiras
acompanhadas de preconceituosas caricaturas sobre os judeus, replicando os obscuros séculos
medievais dominados pela ignorância e fanatismo. Invencionices já desmentidas e
desmascaradas ene vezes sobre pretensas conspirações e mirabolantes planos de
domínio mundial que persistem agora nos labirintos digitais das redes sociais com o precípuo
intuito de acirrar a desconfiança e o ódio que atingem em cheio às comunidades
judaicas no mundo.
Atos
de vandalismo se sucedem não somente em
países totalitários, mas em nações democráticas onde a diversidade de ideias e
a aceitação do outro em sua identidade de raça, cor e religião são louvadas e
protegidas em artigos, parágrafos e
incisos de suas Cartas Constitucionais. Isso, porém, não impede pichação de
túmulos em cemitérios e em muros de sinagogas, agressões físicas em ruas,
campus ou nas proximidades de colégios e centros sociais judaicos, formando um
sentimento de ambiente hostil que requer
constante e rigorosa vigilância, principalmente nos grandes eventos que reúnem
um número considerável de pessoas. A presença de crianças e idosos não são empecilhos
para atentados brutais. A história ao
longo do tempo é uma demonstração inequívoca desse status quo abominável, com a
sucessão de tragédias infligidas pelo homem a outros seres humanos.
De
Roma, nos primórdios da Era Comum, à Inquisição e ao Holocausto, o Mal em sua
essência mais cruel e aterradora atingiu picos inimagináveis em sua trajetória de
aniquilar milhões de pessoas se utilizando de métodos carniceiros impiedosos. Mas, desde 1948, a preservação das comunidades
judaicas tem no estado de Israel a sua ponta de lança e essa certeza deve servir
de bússola aos judeus da Diáspora no que
tange à união e apoio aos seus governos.
Como
uma nação democrática, Israel apresenta partidos políticos, correntes
religiosas, cidadãos de origens e pensamentos diversos e governos eleitos por
uma maioria. Pontos de vista diferentes não devem se alçar como motivo maior para
que, ingenuamente, militantes judeus de variadas causas se juntem ao coro
daqueles que tem um propósito definido contra a existência do estado de Israel.
Vivemos em um ambiente de guerra não declarada e a mídia, se utilizando de
noticiais tendenciosas, e as redes sociais, munidas de fake news, manipulam armamentos que impulsionam o ódio e a beligerância.
O
monitoramento constante de organizações judaicas não tem tido o efeito de
extirpar esse terrível cancro de nossas sociedades. Instituições como a HonestReporting ,instalada oficialmente
em Toronto, no Canadá, em 2003, trabalham diligentemente em sua missão de
garantir a verdade, a integridade e a justiça, combatendo o preconceito
ideológico no jornalismo e na mídia em geral. O jornal Jerusalem Post, face o
aumento das fake news nas plataformas sociais e a visão nem sempre fiel e
imparcial por parte da imprensa convencional, retornou com a coluna semanal De Olho na Mídia, editada por David
Bar-Illan, ex- diretor de Comunicações de Benjamin Netanyahu e editor-chefe do jornal, de 1992 a 1996.
Outra
iniciativa recente foi a publicação de uma carta aberta assinada por mais de
uma centena de lideranças judaicas, a maioria de rabinos americanos, para Elon
Musk, dono do antigo Twitter - rebatizado de X em julho deste ano -, denunciando
um relevante aumento de discursos
antissemitas nesta mídia social que tem 155 milhões de seguidores. A campanha X Out Hate pede providências e mudanças
na rede como forma de evitar a radicalização crescente que impulsiona a
violência. Ressalta ainda a presença de declarados neonazistas nesse espaço digital, disseminando suas
teorias de preconceito e ódio. Um desafio para as nações democráticas que
dispõem em suas Constituições a assertiva que garante a seus cidadãos exercerem
a livre manifestação do pensamento, a tão aclamada liberdade de expressão.
Sem governos, sem
nações, sem internet
Em um exercício de imaginação onde o mundo é despojado de governos e nações, sucumbido por um fungo da espécie Cordyceps, que transforma literalmente o homem que conhecemos em um monstro devorador de sangue humano, a série americana The Last of Us (O Último de Nós), de 2023 (baseado em um game de 2013) apresenta um planeta apocalíptico onde preocupações éticas e morais se revelam perturbadoras e ineficazes para a sobrevivência.
As
sociedades organizadas e coletividades se extinguiram assim como as leis que
inibem a desordem e os crimes. Conceitos que norteiam o espírito do coletivo
desapareceram e ações individualistas e grupos paramilitares, ambos sem freios,
atuam na terra devastada. De coletividade, o roteiro apresenta uma, dominada pelo medo e
controlada por um embusteiro que usa a religião para exercer o seu domínio.
Com
as cidades bombardeadas e destruídas no afã de eliminar as pessoas contaminadas
pelo fungo, que se aloja no cérebro e transforma o comportamento humano, o mundo
se despe de todas as necessidades apregoadas e julgadas imprescindíveis antes da
epidemia mortal. Bancos, shoppings,
supermercado, celular, internet, governos, mídia, redes sociais, enfim, as sociedades
evoluídas tecnologicamente não mais existem. O escopo agora é evitar a contaminação e
tentar sobreviver à desordem e ao caos impostos pela pandemia em um planeta sob
escombros.
Nesse
cenário de catástrofe, a recente epidemia da Covid 19 – que já infectou 770
milhões e causou 6,9 milhões de mortes, desde dezembro de 2019 quando o coronavírus
SARS-CoV-2 foi identificado na China - parece um ameno trailer face aos
estragos que um fungo metamorfoseado pelo aquecimento terrestre é capaz de
produzir.
Em
entrevista à plataforma CNN Brasil, o cientista da Fiocruz, Evangelista
Oliveira, afirma que a evolução dos fungos realmente representa uma
preocupação. No caso específico do Cordyceps, o fungo é conhecido pela sua
capacidade de infectar insetos, como as formigas, e controlar o comportamento
do hospedeiro que se torna um tipo “zumbi”.
Diferente da série, o fungo ainda não é capaz de infectar humanos devido à alta
temperatura corporal. No entanto, o fungo tenta se adaptar ao ambiente em que
ele se encontra e já provocou uma infecção grave no cérebro e meninges (meningoencefalite)
de uma paciente no Rio, ocasionando a sua morte. O caso foi reportado, em 2022, para a revista
científica International Journal of Infectious Diseases (ISID).
“A
narrativa ficcional cria um contexto em que essa espécie consegue evoluir ao
longo do tempo devido às mudanças climáticas e ao aquecimento global,
adquirindo uma capacidade de parasitar humanos e de controlá-los”, destaca a
reportagem da CNN (The Last of Us: cientistas revelam quais são os fungos mais
perigosos do mundo, em 22/01/2023).
O
criador do game e roteirista da série, o israelense Neil Druckmann, 44 anos,
e o seu parceiro Craig Mazi, desenham um planeta cruel e ameaçador , com
traços de um companheirismo egoísta e rude. Residindo nos Estados Unidos desde os
dez anos, Druckmann chegou a encostar rapidamente no tema do preconceito, ao
sugerir que uma jovem negra, amiga da protagonista, foi destacada para o
trabalho de limpeza de fossas pelo grupo paramilitar, talvez em razão da cor da pele.
Em
entrevista à revista americana GQ, ele conta que resolveu mergulhar no mundo dos
quadrinhos e dos jogos eletrônicos ainda garoto para se distanciar do mundo
real. Nascido em Beit Aryeh, perto da fronteira norte com a Cisjordânia, ele lembra que vivia rodeado
de situações e notícias sobre conflitos. Já nos Estados Unidos, aconteceu de assistir
um vídeo de linchamento que o marcou sobremaneira. Então, justifica, passou a
refletir sobre esses fatos,“ a universalização do tribalismo, a alteridade das
minorias, as justificativas das atrocidades”, e explorar nas histórias “temas de retribuição, vingança e justiça.”
Em dez anos, o game já vendeu 37 milhões de cópias.
Mas, como ninguém escapa da dita vida real, aquela a qual estamos inseridos
fisicamente, Druckmann também foi alvo de ataques antissemitas quando do
lançamento da segunda parte do game The Last of Us, em 2020. Ele compartilhou
no Twitter as mensagens e caricaturas recebidas que registrou como “vis,
odiosas e violentas”.
Neste
contexto de intimidações sistemáticas em um mundo desigual e pouco justo, cabe
afirmar que o monitoramento e combate ao antissemitismo precisa seguir adiante,
entendido como um compromisso coletivo permanente de salvaguarda da dignidade e
respeito que cada ser humano é merecedor.