/ Sheila Sacks /
Quando
papai comprou o Plymouth de
quatro portas, a minha vida mudou. Eu tinha sete anos e morávamos em um ponto
esquecido à esquerda da linha férrea que cortava a zona norte do Rio. O carro
seminovo tinha cromados reluzentes, pneus de bandas brancas e assentos de
couro. Papai mostrou a novidade em uma tarde de primavera e mamãe, radiante,
beijou-o no meio da calçada. No domingo,
de vestido florido, batom vermelho e sandálias de solado alto, ela anunciou que
íamos ao Cais do Porto. Felizes, meu irmão e eu colamos os narizes na janela do
veículo que avançava pela rua margeada de casario urbano.
2
No
cais, o navio enorme causava espanto. Sobreviventes da 2ª Guerra, dois primos de
papai chegavam da Europa. Os rapazes desembarcaram do imenso cargueiro
equilibrando-se em uma estreita escada de corda. Usavam casacos pesados e
pareciam assustados. Papai abraçou-os e sussurrou qualquer coisa em iídiche*.
Mamãe traduziu a saudação, estendendo-lhes a mão. “Bem-vindos ao paraíso”,
disse em voz alta, despertando a atenção das pessoas no píer.
Nos dias posteriores uma chuva persistente
entristeceu a semana. Pedi aos céus para o tempo melhorar. Em uma manhã acordei com o sol no quintal. A
claridade me cegava, mas assim mesmo eu teimava em encarar o sol. “Vamos à
praia no domingo”, exclamei confiante, enquanto mamãe bordava. “Agora de carro”,
insisti ao perceber um olhar maroto em minha direção.
Semanas depois, enchendo o baldinho de areia na
praia, escutei os primos de papai anunciarem a novidade: fariam aliá**
em breve. O recém-criado estado de Israel precisava de gente para arar a terra
e jovens para defendê-lo, justificavam. Mamãe traduzia as frases e eu percebia o
entusiasmo com que falavam sobre a gloriosa vida que teriam no novo país.
3
Naquele
verão de final dos anos 1940 papai iniciou um novo ritual aos domingos.
Acordávamos cedo, entrávamos no carro e seguíamos para Copacabana. O prédio
escondido pelos tapumes estava sendo finalizado. Enquanto ele conferia o avanço
nas obras do futuro apartamento, ficávamos no carro. Mamãe, no banco da frente,
abanava-se com o leque japonês não escondendo a impaciência. Após uma espera
que parecia durar horas, papai surgia na calçada. Com um suspiro de alívio,
mamãe saltava fora do carro e lá íamos nós caminhando pela rua arborizada rumo à
praia. “Um sonho antigo, esse de morar em Copacabana”, confidenciou mamãe ao
telefone, em conversa com a vovó.
4
E assim foram se passando os
meus domingos. Como um pequeno milagre,
o domingo de praia se incorporou aos hábitos da família, agora instalada no
novo apartamento e surpreendida pela auspiciosa chegada de um bebê. Problemas e discussões podiam esperar.
Compromissos, visitas e encontros eram adiados. Andar pela areia úmida, estirar
os corpos ao sol e se banhar nas águas geladas redimiam as agruras da semana. Esquecido
na garagem, o carro sem serventia foi ficando com o porteiro. A loja de ferragens no
subúrbio alugada ao comerciante de madeira conhecido de longa data. Para a vida prazerosa que papai imaginava bastavam os
livros da biblioteca municipal do bairro, a praia bela e generosa, a pequena
poupança de trinta anos de trabalho e, principalmente, a presença de mamãe. Dona
de mãos de fada, cozinhava, bordava, pintava quadros e, se isso era pouco, tinha a pele cor de mate e
contava histórias fantásticas.
Muitos anos depois, já
velhinhos, no final da década de 1980, mamãe e papai ainda se sentavam na areia
para ler e namorar o mar. “Bem-vindos ao paraíso”, eu lembrava da frase dita há
tanto tempo na beira do cais. Meus pais sorriam e se entreolhavam imaginando,
talvez, um paraíso celeste bem parecido com aquele em que viviam, com muito
sol, areia e mar, e onde todos os dias seriam domingos de praia.
** aliá - termo que designa a imigração judaica para
Israel (do hebraico ascensão).