linha cinza

linha cinza

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Bem-vindos ao paraíso - Da série Recordando Mamãe

 / Sheila Sacks /

 


Quando papai comprou o Plymouth de quatro portas, a minha vida mudou. Eu tinha sete anos e morávamos em um ponto esquecido à esquerda da linha férrea que cortava a zona norte do Rio. O carro seminovo tinha cromados reluzentes, pneus de bandas brancas e assentos de couro. Papai mostrou a novidade em uma tarde de primavera e mamãe, radiante, beijou-o no meio da calçada.  No domingo, de vestido florido, batom vermelho e sandálias de solado alto, ela anunciou que íamos ao Cais do Porto. Felizes, meu irmão e eu colamos os narizes na janela do veículo que avançava pela rua margeada de casario urbano.

 

2

 

No cais, o navio enorme causava espanto.  Sobreviventes da 2ª Guerra, dois primos de papai chegavam da Europa. Os rapazes desembarcaram do imenso cargueiro equilibrando-se em uma estreita escada de corda. Usavam casacos pesados e pareciam assustados. Papai abraçou-os e sussurrou qualquer coisa em iídiche*. Mamãe traduziu a saudação, estendendo-lhes a mão. “Bem-vindos ao paraíso”, disse em voz alta, despertando a atenção das pessoas no píer.

 

Nos dias posteriores uma chuva persistente entristeceu a semana. Pedi aos céus para o tempo melhorar.  Em uma manhã acordei com o sol no quintal. A claridade me cegava, mas assim mesmo eu teimava em encarar o sol. “Vamos à praia no domingo”, exclamei confiante, enquanto mamãe bordava. “Agora de carro”, insisti ao perceber um olhar maroto em minha direção.

 

Semanas depois, enchendo o baldinho de areia na praia, escutei os primos de papai anunciarem a novidade: fariam aliá** em breve. O recém-criado estado de Israel precisava de gente para arar a terra e jovens para defendê-lo, justificavam.   Mamãe traduzia as frases e eu percebia o entusiasmo com que falavam sobre a gloriosa vida que teriam no novo país. Sem me conter, imitei minha mãe abrindo os braços para o mar que espumava sobre a areia. – Mas o paraíso é aqui ! disparei. Mas os jovens pareciam não entender, abrigados sob o guarda-sol de gomos coloridos. Ao meu lado, esbelta em seu maiô preto e chapelão de ráfia, mamãe sorria balançando a cabeça de modo afirmativo.  

 

3


 

Naquele verão de final dos anos 1940 papai iniciou um novo ritual aos domingos. Acordávamos cedo, entrávamos no carro e seguíamos para Copacabana. O prédio escondido pelos tapumes estava sendo finalizado. Enquanto ele conferia o avanço nas obras do futuro apartamento, ficávamos no carro. Mamãe, no banco da frente, abanava-se com o leque japonês não escondendo a impaciência. Após uma espera que parecia durar horas, papai surgia na calçada. Com um suspiro de alívio, mamãe saltava fora do carro e lá íamos nós caminhando pela rua arborizada rumo à praia. “Um sonho antigo, esse de morar em Copacabana”, confidenciou mamãe ao telefone, em conversa com a vovó.

 

4

 

E assim foram se passando os meus domingos.  Como um pequeno milagre, o domingo de praia se incorporou aos hábitos da família, agora instalada no novo apartamento e surpreendida pela auspiciosa chegada de um bebê.  Problemas e discussões podiam esperar. Compromissos, visitas e encontros eram adiados. Andar pela areia úmida, estirar os corpos ao sol e se banhar nas águas geladas redimiam as agruras da semana. Esquecido na garagem, o carro sem serventia foi ficando com o porteiro. A loja de ferragens no subúrbio alugada ao comerciante de madeira conhecido de longa data.  Para a  vida prazerosa que papai imaginava bastavam os livros da biblioteca municipal do bairro, a praia bela e generosa, a pequena poupança de trinta anos de trabalho e, principalmente, a presença de mamãe. Dona de mãos de fada, cozinhava, bordava, pintava quadros  e, se isso era pouco, tinha a pele cor de mate e contava histórias fantásticas.

 

Muitos anos depois, já velhinhos, no final da década de 1980, mamãe e papai ainda se sentavam na areia para ler e namorar o mar. “Bem-vindos ao paraíso”, eu lembrava da frase dita há tanto tempo na beira do cais. Meus pais sorriam e se entreolhavam imaginando, talvez, um paraíso celeste bem parecido com aquele em que viviam, com muito sol, areia e mar, e onde todos os dias seriam domingos de praia.


 * iídiche - adaptação do idioma germânico, falado pelos judeus europeus e escrito em caracteres hebraicos.

** aliá - termo que designa a imigração judaica para Israel (do hebraico ascensão).