/ Sheila Sacks /
O
ano de 1937 já não era uma época boa para viver em Berlim. No escritório de
paredes forradas de madeira, onde tantas vezes acolheu colegas juristas, Joseph
Klein olha a estante coberta de livros e o desenho infantil meio escondido no
alto do móvel. O quadrinho permanecia com a mesma moldura de paspatur azul,
imune ao tempo e aos acontecimentos. Ele sim, um velho encurvado pelo rigor dos
anos, as pernas fragilizadas, a falta de equilíbrio que o obrigava a recorrer a
bengala, os lapsos inconvenientes de esquecimento a abalar seus dias.
O
menino de papel ao lado da casinha de telhado vermelho o deixava intrigado e
confuso. Às vezes parecia que o garoto se deslocava para mais perto das duas
macieiras assentadas em tufos de relva por onde floriam três margaridas
amarelas. O sol laranja e as nuvens azuis flutuando no alto do desenho reviviam
lembranças desencontradas. A filha insistia em afirmar que ele era o autor daquela
infantilidade. A esposa, há tanto tempo falecida, descobrira o desenho em um
caderno esquecido na casa dos sogros, se encantou com a o menino de cabelo
espetado, gravatinha verde, calça roxa e sapatos marrons. Escreveu no rodapé do
papel “eu te amo”, encomendou a moldura e pendurou o quadrinho no quarto das
crianças.
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Mas,
Joseph tinha a certeza de que o desenho era do filho Simon, garoto criativo e
rebelde. Não entendia porque Eva ria e dizia “não, papai, esse desenho foi você
quem fez”.
Simon
já tinha ido embora da Alemanha. Professor universitário, ensinava em uma
faculdade em Londres. Solteiro por opção, pouco falava de sua vida particular. A
filha Eva, pesquisadora e tradutora, trabalhava numa editora e o casamento com
um intelectual alemão, colega de escola, durou apenas três anos.
Naquele
dia, e lá se vão dois anos, pela primeira vez Eva falou em deixar a Alemanha.
Medidas restritivas do governo nazista estavam em andamento, proibindo médicos
judeus de tratarem pacientes não judeus, revogando a licença dos advogados
judeus e promovendo o boicote a estabelecimentos judaicos. “Vou partir, papai, e quero levar você”.
Joseph
não pensou duas vezes, se recusou a acompanhar Eva. Perto de completar 80 anos, ainda gostava de
passear pelo parque nos arredores do apartamento. Sentava no banco, em frente
ao pequeno lago, e acompanhava a tagarelice das jovens mães com seus carrinhos
de bebês. O que ele faria em Londres?
Sofie cuidava tão bem da casa e dele também. Todos os dias, pontualmente às 8
horas, ela adentrava pelo corredor, pendurava seu casaco no cabideiro, o pão
fresquinho na sacola e ia direto pra cozinha preparar o lanche matinal. Há
quanto tempo fazia isso? Perdera a conta.
No fim de semana, quando folgava, parecia que a casa ficava mais triste
e o tempo custava a passar.
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Naquela
segunda-feira, ao entrar no apartamento, Sofie logo foi tomada por uma sensação
diferente. A porta estava destrancada, as luzes apagadas, as cortinas de voal
alvoroçadas pelo vento que zunia pela janela escancarada do corredor. O sopro
úmido do outono esfriava a casa e dava um toque soturno à mobília.
“Levaram
o patrão”, deduziu de imediato ao ouvir a voz da zeladora atrás de si. – Tenho que
fechar o apartamento. Me entrega a chave. Mal humorada como de costume, a
mulher a olhava desconfiada. Sofie pede uns
minutos. Precisa recolher sua roupa de
trabalho. A mulher desce as escadas resmungando. – Não demore.
Atordoada,
Sofie vai ao escritório e num impulso retira de cima da estante o quadrinho do
menino de papel. Esconde-o por debaixo da blusa. Recolhe o avental, algumas
mudas de roupa, os chinelos e a louça que usa no dia a dia. Põe tudo em uma
velha sacola, as mãos trêmulas, sentindo o coração disparar e as lágrimas
embaçando a visão. Desde que a polícia acelerou as deportações, ela temia pelo
destino do patrão. No trajeto diário, a
visão de caminhões atolados de famílias assustadas já não surpreendia os
passantes. Desviar o olhar, apressar o passo e fingir que nada acontecia era
uma boa receita para não enlouquecer.
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Sofie
abraça o desenho e se emociona mais uma vez. Sentada na cama, olha a meia lua
no céu soturno que prenuncia a tempestade. A artrose castiga seus
membros e tem dia que se deixa ficar ao pé do fogão, perdida na paisagem
bucólica que se vê pela porta aberta, sem ânimo para fazer o strudel de maça que aprendeu com dona Bella. Desde
que deixou Berlim, vive com a irmã e o cunhado na casa de roça que foi dos seus
pais, e antes, dos avós. Aquele desenho
lhe traz lembranças felizes de uma vida que começou mal. Vítima de paralisia
infantil, Sofie tinha uma das pernas mais curta e deformada. Desde a infância, a doença tirou a inocência
e a alegria que animam as fantasias da imaginação. Procurava se esconder das pessoas. Na escola,
por mais que desejasse ser invisível, era alvo da chacota da criançada que
imitava seu andar manco e meio cambaleante. Os olhares de piedade dos adultos a
martirizavam. Não havia um dia que não
caísse no choro, encolhida no celeiro sob
o olhar sonolento de uma mula.
Quando
a esposa do jurista Joseph Klein a contratou, Sofie custou a acreditar. O
semblante angelical e a voz doce da jovem senhora, dona Bella, a encantaram.
Nunca sentira tanta bondade e ternura em alguém e naquela noite teve a certeza
que sua vida, enfim, iria mudar.
Durante
todo o tempo que serviu a família Klein, Sofie foi uma mulher feliz. Adorava as
noites de sexta-feira, quando a casa se enchia de convidados. Lustrava os
castiçais, o faqueiro de prata, lavava os copos de cristais, os pratos e
travessas de porcelana decorada. Com a morte da patroa por complicações de um
parto infeliz, Sofie perdeu o chão, mas agarrada ao livro de Salmos, presente
muito caro ao seu coração, ela lembra da promessa que fez. “Enquanto me quiserem, ficarei aqui.”
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Mas,
longe de perder o emprego, a responsabilidade aumentou. As crianças na pré-adolescência
eram difíceis de lidar. Sem a referência da mãe, ficaram rebeldes e
descuidadas. Mas, a mão forte do patrão freou a bagunça e mesmo sendo um homem
de muitos compromissos ele manteve os filhos na linha.
Mas
o passar dos anos se mostrou impiedoso e os parentes mais chegados se foram. O
grupo de juristas, professores e alunos, mais de uma dezena de gente que
frequentava a casa, foi minguando até se reduzir a um único membro, o mestre do
xadrez. Notícias davam conta de fugas mal sucedidas, deportações, prisões e
execuções.
Agora,
passado o pesadelo da guerra, Sopfie está de volta a Berlim onde divide com a
sobrinha um pequeno apartamento no bairro proletário de Britz, ao sul da
capital. Apesar dos bombardeios, a maior
parte do conjunto habitacional restou inteira. Tinha adquirido o imóvel com a
ajuda do patrão e com um teto garantido procurava um novo emprego entre as
pessoas conhecidas.
Soube
que o mestre do xadrez, seu convidado preferido, retornou à cidade. Foi
procurá-lo e se deparou com um homem fustigado pela dor. Perdera mulher,
filhos, irmãos e os pais, ainda saudáveis em seus setenta anos. Os cabelos
precocemente grisalhos, o corpo, antes atlético, agora de uma magreza doentia,
e o rosto marcado por fundos sulcos nas têmporas impactaram Sofie. Deportado
para o campo de concentração de Buchenwald, Rony, era seu nome, estava vivo
graças a arte do xadrez. Um dos subcomandantes o escolheu como parceiro e
professor dos filhos. Ao sorrir, Sofie reencontrou nos olhos azuis de Rony
aquela beleza interior que sempre a fascinou. Ele estava de partida para
o Reino Unido, tinha sido aceito para lecionar direito na Universidade de Edimburgo.
Contou que iria se encontrar com Eva, em Londres. Sofie então revelou,
constrangida, que o quadrinho do menino de papel estava consigo. Nos últimos
tempos sentia uma espécie de culpa por estar com aquela peça tão particular e
que afinal não lhe pertencia.
No
dia seguinte, Sofie devolveu o desenho. Chorou ao abraçar Rony e mais uma vez
agradeceu ao mestre de xadrez o livro de Salmos que ele tão carinhosamente
havia dado para ela em uma noite fria de inverno, semanas após os terríveis
tumultos e saques da Kristallnacht (Noite dos Cristais). Era véspera do Natal
de 1938 e Rony se despediu do patrão com um forte aperto de mão. - Espero que
não seja tarde demais, dr. Klein. Soube do decreto que obriga
os judeus homens a acrescentar o nome Israel em seus passaportes. E as mulheres
o nome de Sara.
Foram
as últimas palavras que Sofie ouviu antes de vê-lo vestir o sobretudo, apanhar o chapéu e bater a porta apressado. Desde então, Sofie se apegou aos Salmos e diariamente
lia e relia seus versos, clamando para que o Senhor jamais abandonasse Rony.
1
Percebo que mais uma vez vou mudar,
foram anos felizes em meio aos risos das crianças, correrias, brincadeiras,
tanta coisa boa que à noite eu desfalecia muitas vezes sem fôlego para namorar a
lua recortada pela janela do quarto, como era bom! Preciso contar, estou em
frente a uma janela adorável emoldurado por um paspatur azul ainda que
imprensado por um vidro transparente gosto muito de estar aqui onde o nascer e
o pôr do sol são presentes diários, a chuva forte tempestuosa, os leves
chuviscos, as noites quentes, a brisa amiga, o vento tagarela, e lá longe mas
ainda visível as copas opulentas das árvores do parque municipal, momentos que
encantam a minha vida, no entanto devo admitir que já não existem mais crianças
correndo pela casa, os móveis do quarto foram trocados, novas cortinas adornam
a janela, gravuras de carros enchem as
paredes, confesso que me sinto deslocado, pouco à vontade, mas eis que mãos
decididas interrompem meus pensamentos e me arrancam da parede passando por um corredor comprido e entrando
na saleta com ares de escritório onde eu notei que é preciso falar baixo, bater
na porta, pedir licença, conheço esse jeito sem cerimônia que me coloca na estante
espremido entre as fileiras de livros, mãos de minha incansável inimiga, a
tirana do pé manco e espanador de prontidão, sempre a procura de algum cisco,
uma poeirinha que seja, me esfregando com pano molhado, me impondo a flanela de
bolso de seu avental. Tremo em pensar em possíveis estragos a minha pessoa, um
dia cheguei a escorregar, acreditem, e pela sorte do destino saí ileso, calculo
que a tirana malvada queria acabar comigo, enfim, cá estou desta vez de costas
para a janela, minha referência e prazer, e de frente para a porta fria e
indiferente, essa tirana é um caso perdido!
2
Sozinho na noite, mais uma vez me sinto
entediado, sem muita disposição de sonhar, fazer planos, construir quimeras, já
não me incomoda o correr do tempo, se salta, atropela, monta barreiras ou
matreiro aguarda minha passagem pelo desfiladeiro, que jeito, somos todos
humanos, os cabelos embranquecem, as juntas incomodam, ficamos à mercê das
dores, de um corpo que não responde às ínfimas vontades, noto isso no homem
curvado, de passos lentos, afundado na poltrona sob a luz do abajur na mesa
outrora repleta de agendas, papéis, telefones, trecos variados, uma loucura,
que tempos! O livro aberto no colo quase cai, o velho cochila, balbucia
qualquer coisa ao tentar se levantar ao som das batidas do relógio centenário,
relíquia de seu bisavô contava aos amigos doutores em incisos, alíneas,
parágrafos, e eu orgulhoso lá no alto da minha estante, acho que posso chamá-la assim com a intimidade de antigo
morador respeitado até por aquela insana tirana, mestre em me tirar do sério
com seus infames paninhos, livrai-me Senhor!
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E cá estou a milhares de quilômetros
além da minha imaginação na cidade de pedra em uma rua estreita de cheiros e
vozes que não conheço e que ondulam ao longo do dia já por longo tempo
companheiro da mulher que me inspira tão diversa da menina implicante de
outrora agora tradutora dos livros perfilados na antiga estante de madeira que
ao lado do relógio carrilhão revivem lembranças de uma infância de risos e
alegria. Na mesa, um velho calendário marca a data de 1968 o que acho surreal
porque as páginas dos meses foram arrancadas. Desconfio que o tempo andou a
passos largos e nos deixou para trás. Percebo ainda que a idade madura a fez
solitária e recolhida, mas não me importo porque o meu prazer é ouvir histórias
e minha contadora de histórias nos inumeráveis volteios pelo quarto da aurora
ao entardecer me mantém aconchegado em seus braços enquanto fala de um mundo
passado onde as pessoas queridas permanecem presentes na mágica das palavras
que me envolvem não importando a chuva ou o sol que se avista da janela
gradeada - lá se vai saber o porquê - ou os estranhos que sem cerimônia
insistem em nos importunar às vezes por minutos às vezes por horas afastando-a
de mim dependendo das tarefas insanas que não faço ideia quais sejam pois nunca
saí porta afora para acompanhar essa gente que cantarola boker tov todas as
manhãs e oferece pastilhas variadas a minha amiga que engole com um dedo de água e agradece. Ainda
que nossos colóquios sejam descontinuados reconheço que tenho muita sorte de
ter uma parceira tão gentil nesses meus derradeiros dias aquecendo a minha
imaginação com as narrativas extraordinárias de personagens de tempos outros, paisagens
deslumbrantes e enredos surpreendentes nos quais me apraz permanecer em encantamento
cúmplice e aliado de um mundo mágico de incontáveis e fantásticas aventuras.
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Verdade é que não foi fácil chegar até
aqui. Lembro da sacola esgarçada onde fui jogado no melhor estilo mafioso o que
exauriu minhas forças e abalou o meu ego, sem imaginar para onde me levariam,
suponho para o calabouço fétido onde vicejam ratazanas, morcegos, bichos ávidos
que não toleram intrusos. Quando senti a força daquelas mãos tiranas, juro temi
por minha integridade. Me arrancando da
estante de supetão despertando o estupor que me paralisa, aquelas mãos
decididas e temidas que me metem nesse saco velho empreitando uma fuga que não
estava no script, confesso meu estado de choque
que prossegue no sacolejo da estrada sem fim, tenho medo do que me
aguarda, um tempo de infortúnio, será? Imaginar o pior nem sempre é saudável
ainda que o espectro de uma medonha lata
de lixo me atormente sobremaneira, ouço o ruído da chave que gira na fechadura,
o barulho da janela que se abre, o clarão de luz que me alcança livre do saco
da tirana, que já arrasta o banco para
perto de mim, de onde vejo o passarinho cantor que trina agitado, a folhagem da
bétula se derramando no vaso, o galo madrugador imponente dono do quintal,
também o sol, o céu, a lua, o vento, a brisa, a chuva, a montanha, os insetos
da madrugada, ao pé do fogão a escutar histórias com o sol se pondo e o céu pintado de marinho, o
natural perfume da roça em harmonia com
o forte aroma das panelas, ouvir encantado sobre o amor do patrão pela dona
Bella, da doença maldita que a levou antes do tempo, mulher boa,
uma santa! Das crianças que se debandaram para o estrangeiro, da manhã em que
um pôster de avião por obra e graça do filho rebelde me desbancou da parede e
pela ação imediata da tirana, assim ela conta,
fiquei a salvo escondido na
estante, a tristeza doída de ver o patrão doente, homem letrado, doutor nas leis, sozinho
coitado, também nem tão sozinho porque lá estava a tirana do espanador, apesar do pé manco, coluna chumbada e a
penosa artrite diz ela não deu para trás, aguentando até uma ajudante por pouco
tempo, mulher metida sempre se achando
melhor, ora bolas, nunca falhei em minhas tarefas, sustenta, me encarando com o
semblante carrancudo, mas teve um dia, lembro bem do susto, tropecei e por
pouco não quebro a sua moldura, meu menino de papel, valha-me Deus, tantas
histórias a encher as noites de sons, lembranças, memórias, um caleidoscópio de
sentimentos a me arrebatar, não estou infeliz, reconheço, ao lado dessa loquaz
tirana mas a saudade me torna impertinente e ansioso, longe de mim assustá-la
arrebatada tirana, suas madrugadas insones de dúvidas tormentosas falam por si e para meu alívio na suave aurora de uma manhã
que se anuncia radiosa sou levado para as mãos mágicas do mestre do xadrez,
parceiro inconteste de jogos memoráveis, surpresa maior duvido, suspiro
agradecido, obrigada louca tirana estou a caminho de casa vejo isso nos olhos
do sábio dos sábios erguendo os braços ao me ver, olá rapazinho valente diz ele
sorrindo, em uma calorosa e infinita acolhida de boas-vindas!