por
Sheila Sacks
“Ao visitar
esta sinagoga, prossigo nas pegadas dos meus predecessores. O papa João Paulo
II esteve aqui há trinta anos, em 13 de abril de 1986; papa Bento XVI esteve
entre vocês há seis anos, agora estou aqui.” (Papa Francisco, em discurso no
templo de Roma, em 17 de janeiro de 2016)
Publicado no "Observatório da Imprensa"
Na visita que o
papa Francisco fez à sinagoga de Roma, nesse início de 2016, as agências
internacionais e a mídia europeia elegeram, por unanimidade, destacar nas
chamadas e no lead o trecho do
discurso do sumo pontífice em que ele condena a violência religiosa. “A
violência do homem contra o homem está em absoluta contradição com qualquer
religião, digna desse nome e, em particular, com as três grandes religiões
monoteístas.”
As chamadas são
semelhantes: “Papa visita sinagoga em Roma e condena violência em nome da
religião” (Reuters); “Papa condena a
violência ‘em contradição’ com as três religiões monoteístas” (France-Presse); “Papa visita sinagoga de
Roma e clama contra violência em nome de Deus” (EFE). Na Itália o jornal Corriere
della Sera estampou em sua capa digital: “Il Papa in sinagoga: La violenza
è incompatibile com La fede”. Os diários Il
Tempo e Il Messaggero
acompanharam: “Papa in sinagoga: La violenza contraddice ogni religione”.
Pode parecer uma
obviedade a ênfase dada pela mídia ao fato de o papa não estar a favor da
violência, pois essa seria a atitude pública a esperar de todo grande líder
espiritual. Mas, o destaque ao tema - pinçado em meio a uma oratória de
sensíveis referências sentimentais e teológicas, onde se enaltece de forma
comovente a fraternidade que deve existir entre cristãos e judeus – tornado-o o
leitmotiv da notícia reflete, de
forma inegável, o clima de insegurança traumática que persiste na Europa após
os atentados de Paris, ocorridos em 7 de janeiro e 13 de novembro de 2015, que
causaram 154 mortes e mais de 350 feridos.
O que torna
relevante o recado do papa ao presidente do Irã, Hassan Rouhani, no encontro de
ambos no Vaticano, dez dias após a visita de Francisco à sinagoga. Na ocasião,
o papa reafirmou seu alinhamento contra o terror político-religioso e pediu que
o governo islâmico daquele país trabalhe pela paz no Oriente Médio e contra a
disseminação do terrorismo, de acordo com o comunicado oficial da Santa Sé
(“Papa Fracesco apre a Rouhani: Theran fondamentale per La pace”, no Corriere della Sera, em 26.01.2016).
Mas, à parte o
momento atual de temor e alerta que levou a segurança italiana a mobilizar 800
policiais para blindar as imediações do templo, o papa Francisco, conhecendo a
história da sinagoga de Roma, teve as suas razões para condenar, no interior de
suas dependências, a prática da violência em todos os seus matizes.
Sinagoga centenária
Em 2004, por
ocasião dos festejos do centenário do grande templo de Roma, o papa João Paulo
II (1920-2005) enviou uma carinhosa mensagem à comunidade judaica romana, a
mais antiga da Europa Ocidental, lembrando a presença milenar dos judeus
naquela cidade, que remonta ao século 1 antes da Era Comum. Endereçada ao
rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, o papa destacou “o profundo laço que
une a Igreja com a Sinagoga”, lembrando que ambas as religiões “compartilham,
em grande parte, das Escrituras Sagradas, da liturgia e de antiquíssimas
expressões artísticas.”
No documento,
publicado pelo site católico Zenit, João
Paulo II se dirige aos judeus de Roma como seus “irmãos prediletos” na fé de
Abraão, o patriarca, fazendo referência às figuras bíblicas de Isaac, Jacob,
Sara, Rebeca, Raquel e Lia. “Veja como é bom e agradável irmãos conviverem
juntos – “Hinê ma tov uma naím shévet achim gam iáchad” (Salmo 133), assinala o
pontífice em hebraico. Mais adiante, ele acrescenta que “o majestoso Templo
Maior, na harmonia de suas linhas arquitetônicas, eleva-se há 100 anos sobre as
margens do rio Tiber como testemunho de fé e de louvor ao Onipotente”.
Construída entre
1901 e 1904, a grande Sinagoga de Roma está instalada no antigo gueto judaico,
na Via Catalana, ao lado do pitoresco bairro de Trastevere, e foi concebida
pelos arquitetos Vicenzo Costa e Osvaldo Armanni. Faz parte do seleto grupo das
25 mais belas sinagogas do mundo, segundo a revista americana “Complex”,
especializada em design e estilo.
Atentado
terrorista
A relação entre
João Paulo II e a sinagoga de Roma pontuou de forma singular e dramática a
história do século 20. Em 1986, o sumo pontífice tomou a iniciativa de
atravessar os portões do templo tornando-se o primeiro papa em quase dois mil
anos a visitar uma sinagoga e chamar os judeus de “nossos amados irmãos mais
velhos”. Pondo de lado o protocolo, João Paulo II deu um abraço
emocionado no rabino-chefe Elio Toaff (falecido em 2015, aos 100 anos), falando
aos presentes, por várias vezes, em hebraico.
A emblemática
visita do papa funcionou como uma espécie de contraponto à tragédia que se
abateu sobre a comunidade judaica de Roma, quatro anos antes, a mais chocante
desde a “shoah” (a palavra hebraica para o holocausto, significando
calamidade), quando 1.259 judeus romanos foram deportados em trens pelas forças
nazistas (em 16 de outubro de 1943) para as câmaras de morte de Auschwitz. A
essa ferida jamais cicatrizada veio se juntar mais uma, desta vez representada
pelo horrendo atentado terrorista que atingiu a sinagoga, em 9 de outubro de
1982, matando um menino de dois anos, Stefano Gay Taché, e deixando mais de
três dezenas de feridos, muitos deles em estado grave.
Na ocasião, a
imprensa relatou o banho de sangue que marcou aquela manhã de sábado, quando se
realizavam as rezas matinais e se comemorava o término de “sucot” (a
festa das cabanas que lembra as tendas usadas pelos hebreus nos 40 anos que
vagaram pelo deserto de Sinai, depois do êxodo do Egito). Na manchete do jornal
La Stampa, os números da tragédia:
“Um morto e 34 feridos no feroz atentado antissemita”. O Diário ABC, da Espanha, publicou na primeira página: “O templo
estava repleto de crianças e adolescentes para uma benção especial naquele
sábado. Pouco antes do meio-dia, dois homens se acercaram de uma das entradas
da sinagoga e renderam o segurança. Eles entraram na sinagoga portando cinco
granadas, conseguindo explodir duas. As pessoas começavam a sair naquele
momento. Os terroristas sacaram de suas mochilas metralhadoras e iniciaram o
tiroteio. Outros dois terroristas se uniram aos primeiros para completar a
carnificina. Terminada a operação, abandonaram o lugar em dois
automóveis”.
Sem punições
Em 2012, ao se
completarem 30 anos da tragédia, o antigo líder da comunidade judaica de Roma,
Riccardo Pacifici, manifestou o seu desapontamento ao então presidente Giorgio
Napolitano, visto que o atentado, transcorrido tanto tempo, não tinha sido
esclarecido e nem os culpados punidos. “Por que naquele dia, e somente naquele
dia, não havia presença policial em frente à sinagoga?”, perguntou Pacifici em
sua missiva ao presidente.
Semanas antes do
atentado, o rabino Toaff tinha protocolado uma solicitação ao Ministério do
Interior para que reforçasse a segurança em torno da sinagoga durante os
feriados judaicos de “rosh hashaná” (ano novo), “yom kipur” (dia do perdão) e “sucot”,
que acontecem em sequência, nos meses de setembro e outubro. Mas, o pedido não
foi considerado, apesar do clima de antissemitismo reinante no país, estimulado
principalmente pela imprensa e políticos que criticavam o governo de Israel
pelo conflito com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), no sul do
Líbano.
A presença e o
acolhimento em Roma do líder da OLP, Yasser Arafat (1929-2004), também animou
os simpatizantes da causa palestina a se sentirem mais à vontade para atacar
alvos judaicos, o que já havia ocorrido em junho daquele ano, com sindicalistas
arremessando um caixão na frente da sinagoga. Recebido como chefe de
estado pelo então presidente Sandro Pertini (1896-1990), na residência oficial
de Quirinal, Arafat teve igualmente um encontro no Vaticano com o papa João
Paulo II em 15 de setembro, três dias antes das comemorações do ano novo
judaico.
Ambiente hostil
No livro
“Attentato alla sinagoga”, lançado em 2013, os autores Arturo Marzano,
pesquisador do Departamento de História e Civilização do Instituto
Universitário Europeu de Florença, e Guri Schwarz, professor assistente do
Departamento de História da Universidade da Califórnia (UCLA), buscam os
antecedentes políticos, sociais e históricos que estariam na raiz do ataque
terrorista ao templo de Roma, concluindo que o conflito israelense-palestino
foi o pivô da tragédia. Para os autores, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, que
resultou na fuga de milhares de palestinos para a Jordânia, Líbano, Síria e
outros países fronteiriços, repercutiu negativamente de forma evolutiva contra
Israel ao longo de duas décadas, atingindo as comunidades judaicas da diáspora.
Marzano e Schwarz
também destacam o papel da imprensa italiana de esquerda que, em 1982,
censurava sistematicamente as ações das forças de defesa de Israel instaladas
no Líbano para impedirem os ataques contínuos dos grupos da OLP contra o
território israelense. O episódio nos campos de refugiados de Sabra e Shatila,
em setembro daquele ano, quando cristãos maronitas libaneses mataram centenas
de palestinos em represália ao assassinato do presidente eleito do país, Bashir
Gemayel, morto em um atentado com carro-bomba que vitimou 26 pessoas,
radicalizou ainda mais os discursos contra Israel que ocupava militarmente a
área.
“Ecos dessas
tensões contaminaram a sociedade civil”, avaliam os pesquisadores. “O maestro
Daniel Oren (nascido em Israel e diretor do Teatro Municipal Guiseppe Verdi, em
Salerno) foi insultado enquanto regia um concerto no Teatro San Carlo, em
Nápoles; em Turim, um jovem foi surrado porque usava um colar com a estrela de
David; e em 1º de outubro de 1982 uma bomba explodiu no escritório de um centro
judaico de Milão”. Em paralelo, um grupo de intelectuais judeus, tendo à frente
o escritor e sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi (1919-1987) – laureado em
1979 com o mais prestigioso prêmio literário da Itália (Premio Strega)
pelo livro “A Chave Estrela” - assina um manifesto a favor da retirada de
Israel do Líbano, gerando um profundo mal estar entre a comunidade judaica
composta de 35 mil membros, a metade residente em Roma.
Comentando a obra
de Marzano e Schwarz para o diário Il
Foglio, o escritor e
jornalista Guilio Meotti classificou o trabalho como uma “viagem sobre a
desumanização de Israel” empreendida por jornalistas e intelectuais no período
que antecedeu o atentado. No artigo intitulado “Pogrom Italiano” (25.05.2013),
Meotti, que é o autor de “A New Shoah” (Um Novo Holocausto), um livro que conta
as histórias pessoais de israelenses vítimas do terrorismo na Terra Santa, cita
as palavras do psicanalista Antonio Semi, membro da “Societá Psicoanalitica Italiana (SPI)”,
colocadas em destaque na primeira página do jornal Il Gazzettino, de Veneza, no dia seguinte ao ataque à sinagoga: “Se
eu fosse judeu nos dias de hoje, na nossa Europa civilizada, eu teria medo.”
Reações iniciais
Também o renomado
arquiteto Bruno Zevi (1918-2000), autor do projeto do pavilhão da Itália na
exposição de Montreal em 1967 (Expo 67) - a maior feira mundial do século 20 -,
foi a Câmara Municipal de Roma para tornar pública a revolta e a indignação que
tomaram de assalto a comunidade judaica. Corajosamente, ele desautorizou a
mídia na sua tentativa de se solidarizar com os judeus, usando o subterfúgio de
dissociar o judaísmo do antissionismo. “Não vamos aceitar uma distinção
maniqueísta entre judeus e israelenses. Nós pertencemos ao povo de Israel que
inclui as comunidades espalhadas em todas as partes do mundo, começando com a
mais antiga, a de Roma, e aquelas que retornaram à terra de seus antepassados.”
Professor
universitário e autor de vários livros sobre arquitetura, Zevi foi um político
atuante, eleito deputado para o parlamento de Roma (1987-1992). Precedendo seu
discurso, publicado na íntegra pelo diário conservador Il Tempo, a juventude judaica lançou um
duro manifesto acusando frontalmente a imprensa (inclusive citando o Corriere della Sera, o jornal de maior circulação do país), o presidente
da Itália, Sandro Pertini (1896-1990), e até João Paulo II, que abriu as portas
do Vaticano para receber o líder de um movimento que agrupava terroristas (ao
todo o papa se encontrou 12 vezes com Arafat).
O empresário Dario
Coen era estudante na época e encabeçou o movimento. O folheto se iniciava
ironicamente com a palavra “Grazie” (obrigado), em alusão à sistemática
campanha dos principais jornais do país contra o estado de Israel, e a anuência
de políticos e personalidades públicas a esse cenário de hostilidade. O
manifesto destacava que Pertini e o ex-primeiro ministro Guilio Andreotti
(1919-2013) receberam Arafat nas residenciais oficiais com honras de chefe de
estado, uma afronta para os judeus italianos. E concluía, de forma peremptória:
“Não precisamos de palavras de compaixão.”
Fuga e Impunidade
Mas, a indignação
com o ataque que matou e feriu crianças e adolescentes sensibilizou toda a
Itália e o então representante da OLP no país, Nemer Hammad (atualmente
conselheiro político de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional
Palestina - ANP) se apressou em negar qualquer ligação com a ação terrorista.
Porém, as investigações policiais apontaram para a organização terrorista
“Junho Negro” comandada pelo palestino Abu Nidal (1937-2002), acusado de matar
ou ferir mais de 900 pessoas em 20 países. Os retratos falados dos terroristas
permitiram assegurar que pelo menos um dos atiradores, o também palestino Abdel
Osama al-Zomar, era conhecido pelas polícias dos países europeus como
integrante do movimento Fatah-Conselho Revolucionário (Fatah-CR), fundado por
Nidal, da ala mais radical da OLP. Também o depoimento da namorada italiana de
al-Zomar reforçou esse envolvimento.
Preso no norte da
Grécia, ainda em 1982, quando dirigia um carro repleto de explosivos em direção
à Turquia, al-Zomar passou 40 meses na prisão cumprindo pena por esse delito e
também por esconder uma arma em sua cela. Em 1988, o governo grego autorizou a
deportação do terrorista para a Líbia do ditador Muamar Kadafi (1942-2011),
apesar de o governo italiano ter pedido a extradição do terrorista, três anos
antes. Condenado à prisão perpétua na Itália, a Grécia quebrou o acordo de
entregá-lo à polícia italiana e expulsou al-Zomar para “um país de sua
escolha”, segundo as notícias da época. O terrorista, então com 27 anos,
desapareceu na Líbia e até hoje o seu paradeiro é desconhecido.
Em entrevista
ao Corriere della Sera, em
outubro de 2011, Gadiel Taché, o irmão do pequeno Stefano, morto no atentado à
sinagoga, lamentava o pouco empenho demonstrado todos esses anos pelo governo
italiano no sentido de exigir de Kadafi a extradição do terrorista e de outros
membros do grupo. Ele, que ficou gravemente ferido no ataque, dizia esperar que
com a morte do ditador líbio ocorrida naquele mês, as autoridades italianas
intensificassem a petição junto ao novo governo de Trípoli e reconhecessem
oficialmente o irmão como uma vítima do terrorismo e “parte da consciência
histórica da Itália” (em 9 de maio de 2012, o presidente Giorgio Napolitano
incluiu Stefano nessa categoria).
Revelações
Anos antes, em
2008, as declarações de um ex-presidente já tinham provocado perplexidade na
comunidade judaica porque o político denunciou a existência de um compromisso
extra-oficial entre o governo italiano e a OLP, nas décadas de 1970 e 1980, no
sentido de preservar o país de ataques terroristas. Em troca, a Itália não
interferiria em assuntos palestinos, fechando os olhos para as atividades da
organização no país. Na entrevista, publicada pelo diário israelense Yedioth Ahronoth, em 03 de outubro de
2008, Francesco Cossiga (1928-2010), que presidiu a Itália de 1985 a 1992,
falou ao correspondente Menachem Gantz sobre esse pacto conhecido como “Acordo
Moro”, em alusão ao político Aldo Moro (líder do partido democrata cristão,
cinco vezes primeiro-ministro e assassinado em 1978), figura central
responsável pelo trato.
O “Acordo Moro”
também foi reconhecido por Bassam Abu Sharif, um dos assessores de Arafat e porta-voz
de imprensa da OLP, em reportagem do Corriere
della Sera, em agosto de 2008. Apelidado de “o rosto do terror” pela
revista americana Time, Sharif era
membro da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e foi
responsável por uma série de sequestros de aviões de passageiros em aeroportos
europeus, nos anos 1970. Ele contou que as organizações palestinas operavam
livremente em território italiano e por sua vez não atacavam alvos nacionais na
Itália e fora do país, desde que não cooperassem com o estado de Israel.
O “acordo”, porém,
não abrangia os judeus italianos e nem os alvos judaicos na Itália. Francesco
Cossiga, que faleceu dois anos após a entrevista, acreditava que a política de
preservar a Itália de ataques terroristas ainda continuava valendo. “A Itália
tem um acordo com o Hezbollah”, afirmou o ex-presidente ao jornal, “e a UNIFIL
(sigla em inglês para as ‘Forças Interinas das Nações Unidas no Líbano’ que
atuam na região desde 1978) fecha os olhos ao processo de rearmamento do grupo,
desde que não sejam realizados ataques contra os seus contingentes”. O
Hezbollah é uma organização islâmica xiita fundamentalista que age no Líbano,
catalogada como terrorista pelos Estados Unidos e países europeus. Mantém
estreita ligação com o Irã e a Síria e prega a eliminação do estado de Israel.
Ecumenismo e memória
Voltando ao papa
João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, com a comunidade judaica ainda
traumatizada pela tragédia na sinagoga, ocorrida três meses antes, João Paulo
II promulga um novo Código Canônico que entre os seus itens mais importantes
destaca o esforço que a Igreja deve consagrar ao ecumenismo. Documento especial
enviado a Diocese de Roma orientava para que os sermões não contivessem
“qualquer forma ou vestígio de antissemitismo”, recomendando também “uma
redescoberta das nossas raízes judaicas”.
Anteriormente,
João Paulo II já havia se reunido com delegados das conferências episcopais
para normatizar as aulas de catolicismo, chamando a atenção para o
comportamento a ser adotado. “Seria necessário conseguir que este ensino nos
diferentes níveis de formação religiosa, na catequese dada às crianças e
adolescentes, apresentasse os judeus e o judaísmo, não somente de maneira
honesta e objetiva, sem nenhum preconceito e sem ofender ninguém, mas também, e
mais ainda, com uma viva consciência da herança comum a judeus e cristãos”
(Roma, 6 de março de 1982).
Quinze anos
depois, com 78 anos, o papa faz uma espécie de mea-culpa, em nome da Igreja,
publicando o documento intitulado “Nos Lembramos: Uma reflexão sobre a Shoah”
(1998). Ele admite que a perseguição do nazismo contra os judeus pode ter sido
facilitada por preconceitos antijudaicos presentes nas mentes e nos corações
dos cristãos. João Paulo escreve: “No termo deste milênio, a Igreja católica
deseja exprimir a sua profunda tristeza pela faltas dos seus filhos e das suas
filhas em todas as épocas.” E prossegue: “A inumanidade com que os judeus foram
perseguidos e massacrados neste século supera a capacidade de expressão das
palavras. E tudo isto lhes foi feito só porque eram judeus.” Também reconhece o
preconceito arraigado que se estende pelos séculos. “Em tempos de crise como
carestias, guerras e pestes ou de tensões sociais, a minoria judaica foi muitas
vezes tomada como bode expiatório, tornando-se assim vítima de violências,
saques e até mesmo massacres.”
O documenta
ressalta o “dever da memória” e conclama para um “futuro comum” entre judeus e
cristãos. “Pedimos que a nossa tristeza pelas tragédias que o povo judaico
sofreu no nosso século leve a novas relações com esse povo. Desejamos
transformar a consciência dos pecados do passado em firme empenho por um novo
futuro, no qual já não haja sentimento antijudaico entre os cristãos, nem
sentimento anticristão entre os judeus, mas sim um respeito recíproco
compartilhado, como convém àqueles que adoram o único Criador e Senhor e têm um
comum pai na fé, Abraão.”
Vale lembrar que
João Paulo II também foi vítima de um atentado terrorista na Praça de São
Pedro, no Vaticano, em 13 de maio de 1981. O turco Mehmed Ali Agca atirou três
vezes contra o sumo pontífice em meio à multidão que estava no local para
saudar o primeiro papa polonês da história (teses conspiratórias surgiram ao
longo do tempo envolvendo países do bloco soviético descontentes com a posição
do papa favorável aos sindicalistas do movimento polonês “Solidariedade”, do
líder Lech Walesa).
Sensação de medo
Desde 1984, e após
16 séculos, a Itália se tornou um estado de pluralismo religioso com o acordo
entre a Santa Sé e a república italiana que aboliu o privilégio de o
catolicismo ser uma “religião de Estado”. Com a instituição da liberdade
religiosa, presente na Constituição, italianos e imigrantes de todos os credos
ganharam mais segurança para praticarem a sua fé (atualmente a Itália abriga 1,5
milhão de muçulmanos). Entretanto, no caso específico da pequena comunidade
judaica, qualquer visitante mais atento pode notar o temor e a insegurança que
seus membros ainda sentem em relação à grande sinagoga de Roma.
Foi o que percebi,
em 2014, ao me aproximar de uma família no antigo bairro judeu de Roma. A
relutância em indicar a localização do templo e os olhares desconfiados
dirigidos à sacola que eu portava, não deixavam dúvidas. No prédio, rodeado por
duas guaritas com policiais, o ingresso somente é autorizado após uma minuciosa
revista. Enfim, uma sensação de medo que sobrevive à tragédia de 1982,
resistindo ao tempo em sua inquietude por uma justiça que, efetivamente, não se
concretizou.
Gadiel Taché, que
viveu o pesadelo de perder o irmão e sofrer mais de trinta cirurgias, lamenta
que um véu de silêncio ambíguo ainda acoberte o episódio. Anualmente, a
comunidade judaica relembra a data fatídica e clama por esclarecimentos e a
prisão dos envolvidos. Ao escolher um sábado, o “shabat”, o dia da semana mais
santificado para o judaísmo, os terroristas premeditaram uma ação visando
atingir uma simbologia sagrada e um grande número de fieis. Porque como
preceituava o rabino e teólogo Abraham Heschel (1907-1972), que perdeu a
família no holocausto, os sábados são as catedrais do povo judaico.
E explicava a
razão: “Durante os seis dias da semana, vivemos sob a tirania das coisas do
espaço. O sábado nos coloca em sintonia com a santidade do tempo. Neste dia
somos chamados a participar no que é eterno no tempo, a nos voltar dos
resultados da criação para o mistério da criação, do mundo da criação para a
criação do mundo.” Pensamento que o papa Francisco reverberou no púlpito do
templo de Roma ao afirmar textualmente que “judeus e cristãos podem e devem
oferecer à humanidade a mensagem da Bíblia sobre o cuidado da criação”.
Texto atualizado e ampliado do original "Em Roma, uma sinagoga entre catedrais".