Por Sheila Sacks
“Hoje aos homens é
concedido confrontar-se com realidades que antes confrontavam somente no leito
de morte” (Ernst Bloch, filósofo alemão)
publicado no site Observatório da Imprensa
Provavelmente em
2016 mais uma história ambientada em um campo de concentração estará nas telas
dos cinemas. Produtores de Hollywood adquiriram os direitos de filmagem do
livro “Em Busca de Sentido - Um psicólogo no campo de concentração”, do
psiquiatra e filósofo austríaco Viktor Frankl (1905-1997), publicado em 1946, e
que após ser traduzido para o inglês, em 1959, se tornou um best-seller mundial
(no Brasil, a obra já está na 37ª edição). O roteirista Adam Gibgot, que fará a adaptação da história para o cinema,
adiantou que a abordagem do tema seguirá a linha amena da película italiana “A
vida é bela” – sobre um pai e seu filho menor que são conduzidos a um campo de
concentração -, Oscar de melhor filme estrangeiro em 1999.
Com elementos que beiram ao gênero de literatura de autoajuda,
pela ênfase à psicologia virtuosa da vontade pessoal e da força do espírito
para superar as adversidades, o livro de Frankl traz a mensagem de que ao
indivíduo cabe procurar um sentido e uma missão na vida. Uma visão que caminha
em rumo diverso a de seu ilustre conterrâneo Sigmund Freud (1856-1939), com
quem manteve correspondência e conheceu pessoalmente. Em uma conferência em
Viena, o filósofo reconheceu o fato e se justificou: “É verdade que Freud
escreveu que ‘no momento em que alguém pergunta sobre o sentido ou o valor da
existência, está doente’; mas eu penso que é nesse momento que a pessoa manifesta
sua humanidade. É um empreendimento humano o interrogar sobre um sentido para a
vida, e cabe perguntar se tal sentido é alcançável ou não.”
Setenta anos depois
do lançamento da obra, que também enfatiza o valor e o sentido do sacrifício em
qualquer situação, as teses de Frankl e Freud estranhamente se interagem. Isso
porque em uma época na qual o sentido da vida para uma fatia da humanidade se centraliza
em matar e se imolar em sacrifício às causas associadas ao radicalismo
religioso e político, a presunção de Freud torna-se cabível principalmente em
relação aos jovens que aderem ao terror. A procura de uma razão para viver não
é uma condicionante à busca do bem e se manifesta, de um modo geral, a partir
de um desajuste pessoal que, mais adiante Frankl classificaria de “vazio
existencial”.
Mas, apesar das
concepções de Frankl não entusiasmarem Freud nem tampouco a outro gigante da
psicologia com quem manteve contato, o também austríaco Alfred Adler
(1870-1937), sua obra de estreia e as demais que se seguiram (escreveu 39
livros) receberam elogios e palavras de incentivo de líderes religiosos do
porte do Papa Paulo VI, que o convidou para um encontro no Vaticano, em 1970, e
do Rebe Menachem Mendel Schneerson, do movimento ortodoxo Chabad. Seus livros
também foram traduzidos para o árabe e o persa, sendo editados no Egito, Irã e
Turquia, de populações muçulmanas.
Livro do século
Em 1991, uma pesquisa realizada entre os leitores dos
Estados Unidos apontou os 10 livros que mais influenciaram e fizeram a
diferença em suas vidas. No topo da lista não houve surpresa: a Bíblia
continuava liderando com facilidade (fato que se repete até os dias de hoje nos
EUA). A consulta, conduzida pela prestigiosa instituição norte-americana
“Library of Congress” - a maior biblioteca do mundo com um acervo atual de mais
de 35 milhões de livros e outros impressos -, em parceria com o Clube do Livro,
também consagrou um texto escrito por um médico judeu vienense, intitulado
“Man’s Search for Meaning” (Em Busca de Sentido, na edição brasileira). Uma
escolha que se repetiu anos mais tarde, em 2000, no Japão, com os leitores do
“Yomiuru Shimbun”, de Tóquio, o jornal de maior tiragem diária do mundo (10
milhões de exemplares), que listaram o livro de Frankl como um dos 10 mais
importantes do século 20.
O autor tinha sobrevivido a três longos e sofridos anos em
campos de concentração, acompanhado de um caderno de anotações que serviu de
base para descrever a sua terrível experiência e a de outros companheiros sob a
ótica de um psicólogo. Publicado pela primeira vez em Viena, o livro de pouco
mais de cem páginas, escrito em nove dias, trazia uma mensagem estimulante já a
partir do título: “Trotzdem ja zum Leben sagen” (Diga sim à vida, de qualquer
maneira, trad. livre do alemão). Espantoso para quem acabara de perder seus
entes queridos de modo tão bárbaro: o pai, no campo de Theresienstadt
(República Tcheca); a mãe e o irmão caçula, em Auschwitz (Polônia); e a esposa
grávida, em Bergen-Belsen (Alemanha).
Ao longo da narrativa, Frankl detalha situações
inimagináveis de desumanidade e de degradação física experimentadas por
prisioneiros de todas as idades, inclusive crianças, no campo de Auschwitz, e analisa
que todo ser humano submetido àquelas condições em pouco tempo irá apresentar
um estado de espírito anormal o que não deixaria de ser uma reação psicológica
“normal”. E lembra a frase do poeta e filósofo Gatthold Ephraim Lessing
(1729-1781), mestre do Iluminismo: “Quem não perde a cabeça com certas coisas é
porque não tem cabeça para perder.”
Frankl recorre a pensamentos de filósofos, poetas e
escritores nas suas descrições dos cotidianos quadros sórdidos e terrificantes
que compunham o dia a dia daquele exército deplorável de condenados. A
sublimação do sofrimento é lembrada na afirmação do russo Dostoievsky
(1821-1881) que dizia temer apenas uma coisa na vida: não ser digno de seu
próprio tormento. Daí a importância das chamadas “miseráveis alegrias” que
inoculavam um valioso fôlego espiritual nos prisioneiros despojados de todos os
seus pontos de equilíbrio. “Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava
de sustos. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do
corpo antes de nos deitar.” Uma felicidade no sentido negativo de Schpenhauer
(filósofo alemão do século 19) ou uma isenção de sofrimento em sentido muito
relativo, segundo Frankl.
Arte, política e
religião
Usada pelos prisioneiros como uma valiosa tábua de salvação
contra a apatia, o desânimo e a loucura, a arte nos campos de concentração está
presente nas narrativas da maioria dos livros, documentários e filmes sobre o
tema, compondo, juntamente com o material salvo da hecatombe, um considerável
legado cultural, se o termo é aplicável, da tragédia do holocausto. Sessões de
música, poesia, teatro e até de humor aconteciam com o beneplácito da guarda
nazista adestrada contra possíveis focos de rebeliões. Os sentimentos de
inconformismo ou revolta, canalizados para um escoadouro fictício de sonhos e
fantasias, mantinham os prisioneiros sob controle, proporcionando uma sensação
de bem estar, ainda que fugaz e ilusória. Valia “tudo para esquecer”, atesta
Frankl.
Outras áreas de interesse que movimentavam o cotidiano dos
campos eram a política e a religião. ”Em primeiro lugar, a política, o que não
é de surpreender e, em segundo, a religião, o que não deixa de ser notável”,
conta. “Todos aqui discutem política quase sem parar, mesmo que se trate de
ouvir sequiosamente os boatos infiltrados e passá-los adiante. Quanto à
religião, o impressionante eram os cultos improvisados no canto de algum
barracão ou num vagão de gado, escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta
após o trabalho, cansados, famintos e passando frio em trapos molhados.” Médico
psiquiatra, Frankl afirma que se manteve fora de privilégios. “Não é sem
orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro ‘comum’. Nada fui senão o
simples nº 119104.”
Junto aos pais
Em sua autobiografia, publicada em 1995, Frankl relata como
teve a oportunidade de escapar ao regime nazista: “Eu esperei alguns anos até
obter o visto de imigração para os Estados Unidos. Finalmente, um pouco antes
do ataque a Pearl Habor (7/12/1941), fui convidado a ir à embaixada para pegar
o meu visto. Aí então, eu hesitei, pois como poderia deixar meus pais para
trás? Eu já imaginava qual seria o destino deles: deportação para um campo de
concentração. Poderia eu dizer adeus e deixá-los entregues a própria sorte? O
visto era pessoal, exclusivo para a minha pessoa”.
À época, Frankl tinha 36 anos e era diretor do setor de
Neurologia do Hospital Rothschild, tendo trabalhado antes, por quatro anos, no
Hospital Geral de Viena, no tratamento de pacientes com tendências ao suicídio.
Ele conta que quando chegou em casa naquele dia, encontrou o pai, em lágrimas:
“Os nazistas atearam fogo na sinagoga”, disse-me, mostrando um pedaço de
mármore que ele conseguira salvar. Na peça estava gravada, em dourado, uma
única letra hebraica, justamente a letra inicial do quarto Mandamento: Honra
teu pai e tua mãe. Diante disso, Frankl telefonou para a embaixada americana e
cancelou o visto. “Talvez a decisão que eu tomei já estivesse comigo há muito
tempo, e na realidade somente escutei o eco da voz de minha consciência”, afirmou.
Ponto de vista
O jornalista e escritor norte-americano Matthew Scully, mais
conhecido pela sua função de speechwriter (redator de discursos) do ex-presidente George W. Bush, observa que Frankl publicou “Em Busca
de Sentido” um ano antes do surgimento de “O Diário de Anne Frank” (1947).
Ambos os livros ganharam o mundo, mas os autores tiveram destinos distintos.
“No caso de Frankl, a sorte o conduziu para uma direção diferente. Depois da
perda da esposa no Holocausto (Shoá – catástrofe - em hebraico), ele casou-se
novamente, escreveu outros 32 livros, criou um método de psicoterapia,
construiu um instituto em Viena que leva o seu nome, deu palestras ao redor do
mundo, e permaneceu vivo para ver o seu livro ser traduzido para 45 idiomas.”
Em 2007, a obra já havia atingido a cifra de 12 milhões de exemplares vendidos.
No encontro que teve com Frankl, em Viena, em abril de 1995, o
jornalista falou de sua surpresa pelo livro não ser, pelo menos, o segundo mais
lido na biblioteca do Museu do Holocausto, em Washington, onde “O Diário de
Anne Frank” ainda reina absoluto (35 milhões de cópias em 67 idiomas). Frankl
atribuiu o fato ao tom conciliatório que sempre adotou em suas mensagens e que
desagradava a muitos: “Em todo o meu livro ‘Em
Busca de Sentido’ você não vai encontrar a palavra ‘judeu’. Eu não acentuei a minha condição de judeu e nem de ter
sofrido como um judeu”, afirmou.
Na entrevista, publicada pela revista americana “First Things”, Frankl fez
questão de igualar a sua dor à de qualquer outro ser humano submetido a uma
situação de horror. “Sou 100% contra a tese de culpa coletiva”, enfatizou.
“Parto do fundamento de que a culpa, a priori, é individual.” Reforçando essa
posição, Frankl já havia dito, em outra ocasião, que mesmo nos estreitos
limites de um campo de concentração, ele somente encontrara dois gêneros de
pessoas: as decentes e as sem decência. “Nenhuma sociedade está imune aos dois,
portanto, havia no campo guardas decentes e prisioneiros, sem decência,
notadamente os capos (prisioneiros
que dispunham de prerrogativas especiais)
que insultavam e torturavam os seus próprios companheiros em troca de
vantagens pessoais.”
Escondendo o
inimigo
O antropólogo Richard A.Shweder, escritor, professor e presidente do
Comitê de Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago, destaca o fato de
que Frank surpreendeu o mundo ao afirmar que o espírito humano encontrava
maneiras de alcançar a dignidade mesmo na lama de Auschwitz. “Ele argumentava
que um prisioneiro tornava-se digno ou não a partir de uma decisão própria
interior, e não somente em consequência das condições do campo.” Para Frankl,
ninguém melhora ou evolui enxergando-se como vítima. Cada pessoa é capaz de se
sobrepor a situações degradantes, “já que a saúde mental está relacionada com
as decisões e não com as condições”.
Um fato ilustra esse ponto de vista. Quando os aliados libertaram os
campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto
esconderam um oficial da SS (Schutzstaffel, a tropa nazista de Hitler) de nome
Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que
ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha em seu julgamento e, durante
algum tempo, manteve correspondência com o oficial tentando confortá-lo, já que
o homem vivia atormentado por sua participação na barbárie nazista.
Conselhos para se manter
vivo
Frank também lembra em seu livro uma das primeiras
recomendações que, recém-chegado a Auschwitz, recebeu de um prisioneiro
veterano: “Não tenha medo! Não se amedronte com as seleções! Mas uma coisa eu peço para você... faça a barba
diariamente, mesmo que tenha de usar um fragmento de espelho... mesmo que tenha
que dar o seu último pedaço de pão para isso. Você ficará com uma aparência
mais jovial e o ato de se barbear dará a sua face mais rubor. Se quiser
sobreviver, só existe um jeito: Mostre-se saudável para o trabalho.”
Já nos momentos de intensa frustração, recorda Frankl, o
artifício era orientar os seus pensamentos para as coisas mais triviais, como
por exemplo achar um pedaço de arame para substituir o cadarço podre de um
sapato. Ele também se forçava a pensar acerca de seu futuro, após a libertação.
Anos depois, nas diversas universidades onde lecionou – entre elas a de Harvard
– Frankl sempre enfatizava aos seus alunos que cada pessoa deve ir ao encontro
de sua missão. “O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida.
Por isso é preciso trabalhar por algo além de si mesmo.”
Indicado ao
Nobel da Paz
Vitor Frankl foi professor de Neurologia e Psiquiatria na
Universidade de Medicina de Viena até 1990, quando se aposentou aos 85 anos
(ele também praticava o alpinismo e tirou o seu brevê de piloto de aeroplano
aos 67 anos). Doutor em Filosofia, Frankl recebeu o título de “Doutor Honoris
Causa” em 29 universidades de todo o mundo, entre elas, as federais do Rio
Grande do Sul (1984) e de Brasília (1988).
Membro honorário da Academia Austríaca de Ciências e Cidadão
Honorário de Viena, Frankl proferiu palestras em mais de 200 faculdades nas
principais cidades do mundo e foi considerado pelo “American Journal of
Psychiatry”, o mais importante pensador desde Sigmund Freud e Alfred Adler. A
Logoterapia ou Análise Existencial - método psicológico criado por ele - é
conhecida como “A Terceira Escola Vienense de Psicoterapia” (a primeira é a
Psicanálise Freudiana e a segunda é a Psicologia Individual de Adler). Em 1985
recebeu o “Oscar Pfister Prize”, prêmio máximo da “American Society of
Psychiatry”, e teve seu nome proposto para o Nobel da Paz pela “The Milton H.
Erickson Foudation”, entre outras entidades.
Lembrando a visita que fez a Frankl em um hospital de Viena,
poucos meses antes de seu falecimento, ocorrido em setembro de 1997, o escritor
e doutor em psicologia Jeffrey K.Zeig - idealizador do ciclo de seminários
internacionais “Evolution of Psychotherapy Conferences”, que teve em Frankl um
dos seus participantes mais ilustres - buscou uma frase do romancista e
filósofo francês Albert Camus, na sua obra póstuma “O primeiro homem”, para
definir a personalidade de seu mestre: “Existem pessoas que justificam o mundo,
que ajudam os outros somente com a sua presença.” A citação veio a propósito da
insistência de Frankl em manter uma linha de telefone aberta para atender
pessoas de tendências suicidas, ainda que estivesse doente e hospitalizado. Até
o final de seus dias, Frankl recebia em média mais de 20 cartas diárias de
pessoas que se diziam salvas após a leitura de seu livro.