Digitalização dissemina imagens que o mundo não viu

Heróis viajantes

"Guardo em mim,

antes mesmo de nascida,

um épico da Metro,

cheio de guerreiros, rabis e profetas.

Uma história sem par,

feita de cinco milênios,

difícil de acreditar.

Uma travessia impossível,

um desafio,

a jornada incrível

de um povo teimoso,

obstinado na fé.

Onde quer que eu vá,

onde quer que eu esteja

meus heróis estão comigo,

me dando força e coragem.

São meus heróis viajantes,

que o tempo com sua falta de lógica

e igual mania de ordem

ainda não nos fez apresentar.

Vivo em um tempo

que em nada lembra

o tempo de Jericó.

No entanto, vejam só,

me sinto tão perto,

tão do lado do meu audaz general:

-Toca a trombeta, Josué,

faça a muralha cair!

Tem dia que eu acho que o tempo será camarada.

Vou estar com Eleazar e Judá

no ardor das grandes batalhas.

Já me vejo de escudo e espada

a trilhar as estradas

entoando, onde quer que eu vá,

o hino do macabeu-soldado:

-Quem por D’us for, comigo está!

Essa sensação de ter dentro de mim

um passado de profunda raiz,

é o que me empurra pra frente,

é o que não me deixa cair.

Afinal Bar Kochba é meu parente,

meu herói, meu irmão.

Vivi com ele nas montanhas

e o vi lutar como um leão,

em uma briga tão desigual e estranha

que de Roma ecoou a suprema indagação:

-Por um D’us que não se vê,

pra que tamanha devoção?

Ah! Meus heróis gigantes,

quanta força, quanta fé!

Foi preciso dois mil anos,

muita surra e pontapé,

para das cinzas renascer

uma geração de guerrilha,

disposta a lutar e a perserverar

por amor à sagrada cartilha.

Por onde andou você,

meu herói perdido,

nesses vinte séculos de mil casos idos?

Em que vila ou gueto

desfez-se da espada

e ignorou a verdade

de que sem luta não há vencedor.

Em que lugar do meu coração

você se aninhou medroso, tímido e quieto,

trocados a revolta e o cajado

pela estrela amarela da dor.

Foi preciso chegar ao fundo do poço,

afogar-se no sangue e no fel

para entender que a fé

é mais do que livros e lições.

A fé é luta incessante,

é um corpo a corpo constante

sem descanso.

Mais que conceito, ideia ou palavra,

a fé é enxada, ancinho e trabalho.

Não há como mudar,

a fé para o hebreu é a Torá e o braço:

- Que em cada peito se faça uma couraça,

que em cada cabeça se arme uma muralha!

E foi dessa verdade

marcada a ferro e fogo

que você, meu herói perdido,

reencontrou a pálida identidade,

ainda que esquálida e assustada,

vagando sem destino

por uma Europa vencida.

Você, que mesmo fraco e faminto,

sem casaco, sapato ou insígnia,

foi soldado, combateu.

Vestiu a velha roupa de macabeu

e fez da vida uma dádiva de D’us.

Essa é minha história, orgulho e glória.

Um passado vivo e presente

que senta comigo na mesa.

Um amigo de todas as horas

que reparte o pão, as alegrias

e as incertezas.

Ah! Meus heróis gigantes,

do tempo e do espaço,

transcendentais viajantes."

O Muro de Jerusalém

Aqui estou eu,

calado e perplexo

diante das pedras

desse muro incomum.

Como aportei,

para que ou por que,

pouco se me dá.

Perguntas não faço.

O fato é um só:

eu cheguei.

Se vim a passeio,

passaporte estrangeiro,

que importância isso faz?

A verdade está aí,

para o que der e vier:

eu estou aqui.

Olho o muro e me vejo em mil.

Sou Moché, sou Yeudá,

sou Bar Kochba, sou Anielewicz.

Sou todos que um dia,

com gana e coragem,

lutaram por mim.

Faço uma prece,

sem mesmo saber rezar.

Quero a Torá no meu coração

(antes tarde do que nunca).

Nada mais tem importância,

a não ser estar aqui, de pé,

diante desse muro incomum.

Quero tudo que tenho direito:

a kipá na cabeça,

o talit sobre os ombros,

as lágrimas molhando o rosto.

Quero a terra, o céu e a alma infinita,

toda a história passada a limpo.

Quero mergulhar de cabeça,

quero ser meu povo!

Tanto tempo vaguei,

preso a tramas,

manhas e artimanhas

de um mundo comum.

Sou o filho que volta,

sem nunca ter passado da esquina.

Indeciso, arrogante,

produto bem acabado

da cultura pagã.

Sou aquele que chamam de jovem,

filho dileto da mixórdia ocidental.

Porém,

sabe-se lá por que cargas d’água,

aqui estou eu,

calado e perplexo,

diante desse muro de pedra.

Cheguei despreparado,

curioso turista,

sem âncora ou amarras,

cidadão do mundo!

Que tolo eu fui.

Aqui, frente a esse muro incomum,

a mentira se desfaz,

perde a pose e a graça.

Diante do muro que resta

eu choro o tempo de engano e espera.

Tudo o que eu não fui

por descaso e preguiça

na hora devida.

Mas agora,

de cara para esse muro de pedra,

exijo a lei e o feito.

Da Torá o mais ínfimo preceito.

Quero o início, o esplendor e a febre,

também a liberdade e a voz

dos nossos rabis e profetas.

Quero cumprir a promessa,

vencer o deserto,

o vento e a fera.

Frente a frente,

posição de sentido,

a profecia vive na terra prometida!

Frente ao muro,

coração aos pulos,

digo, grito, repito e repiso:

quero mergulhar de cabeça,

quero me descobrir!

Chá das Cinco

Meu espanto é com o tempo, a morte e a incógnita.

Tudo que se mostra ida sem volta.

Com os homens não faço acertos ou conchavos,

eles se dizem espertos mas as respostas não sabem.

Minha luta vai além do asfalto, do cochicho e da gravata.

Não usa uniforme nem arma, dispensa saliva e trapaça.

É um desejo que ultrapassa a montanha mais alta,

risca o espaço e da estrela acompanha o rastro.

É a busca teimosa, a vontade enorme de um papo

com quem de fato está acima do rei e do ás.

Vou me lançar à jornada, empreender a viagem.

Seja de carona, na cabine de uma nave,

seja de cajado seguindo os astros.

Será uma aventura original, uma excursão sem igual:

a procura da luz e da verdade fora das rotas oficiais.

Quero tomar o chá das cinco com o mandarim desse colosso,

comer biscoito e geleia ao som do Cravo de Bach.

Esperar recostado no assento de um cometa

a hora certa das cartas na mesa, o momento do frente a frente.

Aí então, em uma ousadia de gente

vou me acercar do infinito, vou falar do que não sei.

Estejam as mãos trêmulas e o coração aflito

não darei meia volta na esquina à direita.

Da espera farei conduta pouco importando o quanto isso custe

de canseira e dor de cabeça.

Vou me postar à espera do abrir de uma janela.

Preciso indagar, quebrar o espanto,

descobrir novamente a América.

Ao mandarim desse colosso o que posso eu dizer

a não ser o que foi dito?

Mesmo assim me farei bandeirante.

Vou desbravar as matas, romper as fronteiras

dos cantos e becos dessa alma inquieta.

Do mundo levarei a surpresa e tudo que não se acha.

Quero traçar novo mapa, trilhar o caminho da estrela

e pedir ajuda a quem dá.

Ao mandarim desse colosso ainda vou perguntar:

perder ou ganhar, diga lá com franqueza,

que diferença faz daqui dessas alturas?