por
Sheila Sacks
“Minha geração, e aquela de nossos avós,
não precisavam de educação judaica intensiva para lembrar que somos judeus. Mas
nossos filhos pertencem à Quarta geração. O que foi suficiente para nós não
basta para eles. Na Quarta geração, o judaísmo precisa ser renovado, ou então
será abandonado. Não há outra alternativa” (Jonathan Sacks, rabino-chefe da Inglaterra)
Naquele ano de
1967, três meses antes das celebrações do Rosh Hashaná e Yom Kipur, os judeus
de todo o mundo foram brindados com uma série de imagens que varou o planeta
como um luminoso cometa, provocando uma explosão de emoções poucas vezes
sentida com tamanha intensidade.
A impressionante
foto do rabino Slomo Goren, capitão das forças armadas de Israel, abraçado
aos rolos da Torá e ecoando o som do shofar aos quatro cantos do planeta para
anunciar a libertação de Jerusalém - a partir daquele instante uma cidade aberta
a todos os credos e raças -, assumia ares de profecia, tornando-se um divisor
entre o velho e os novos tempos que assomavam porta adentro como emissários há
muito aguardados.
Igualmente a
visão de soldados israelenses rezando ao pé do muro sagrado, no coração de
Jerusalém, mexeu com os brios de uma geração de jovens, talvez em dúvida em
relação aos caminhos a seguir. Revelou-se também como uma preciosa dádiva para
aqueles veteranos que vinham lutando, há décadas, pelo direito de pisar o solo
milenar da cidade santa. E converteu-se, certamente, em um sinal celestial
incontestável para milhões de judeus que sobreviveram à perseguição e à matança
da era nazista, símbolo raro de que, afinal, o sofrimento, os reveses e as
incontáveis almas sacrificadas na pira da intolerância estavam sendo redimidos
naquele momento histórico.
David e Golias
Nunca é demais
rememorar a Guerra dos Seis Dias, que permanece como uma lembrança forte e
inspiradora, merecedora de inúmeras resenhas, considerações e análises
apuradas. Se por um lado, a luta e a perseverança de um povo acossado que não
se acovardou diante das forças majoritárias que o ameaçavam, repetindo o
exemplo bíblico de David e Golias, revigoram nossos sentimentos de autoestima,
por outro provocam uma saudade doída de um instante único de fé e coragem,
eternizado em tantos corações.
Isso porque à
profética mensagem de consolidação da nação judaica registrada ao término dos
seis dias de guerra, e lá se vão mais de quatro décadas, foram incorporados, na
Diáspora, modernosos discursos, hábitos, conceitos, significados e interpretações
que, ao longo do tempo, criaram uma esquisita miscelânea, difícil de ser
contabilizada como ganho à identidade cultural de um povo. A chamada
“flexibilização” cultural e religiosa que avança a passos largos sobre as
comunidades judaicas é o nosso novo Golias a ser enfrentado.
O massacre
diário de informações volúveis, a difusão incontrolável de modismos, a ditadura
do consumismo e a imposição de uma indústria tecnológica de circulação de
mensagens e desejos artificiais são tentáculos de uma rede malévola que
preenche e ocupa as poucas e qualitativas brechas de tempo que dispõem o ser
humano ativo, contribuindo para minar os alicerces básicos das minorias e
diluir, paulatinamente, as suas identidades originais. Alvos sensíveis desta
guerra subterrânea e subliminar que se estende por todos os 365 dias do ano, os
judeus da Diáspora labutam em meio a uma batalha crucial que implica em atenção
e resistência redobradas, no sentido de preservar a sua imensa e preciosa
herança milenar.
Canto das sereias
Incansáveis, as
comunidades judaicas se empenham para não serem encobertas pelas ondas desse
mar de mesmice que as espertas ditaduras de costumes têm imposto às sociedades
modernas. Enquanto para as gerações mais antigas, remanescentes da imigração e
cerceadas pelas grades culturais do passado, é mais fácil preservar os rituais,
os símbolos e o calendário de eventos, para os seus filhos e netos a situação
se mostra mais desconfortável e, muitos desistem, às vezes inconscientemente,
de remar contra a maré de um mundo fermentado por ideias monolíticas e
preconceituosas que roem e esgarçam as nem sempre sólidas convicções religiosas
de nossos jovens.
Hoje, grande
parte dos líderes comunitários, de poderosos empresários, de ativistas
dedicados e de senhoras voluntárias que investem seu tempo e seu entusiasmo em
prol das causas judaicas, convive com um paradoxo pessoal em função do alto
grau de assimilação presente no seio de suas próprias famílias.
É cada vez mais
difícil afinar o discurso público da preservação dos valores judaicos com a
realidade que enfrentam no âmbito familiar. Respirar em casa um ambiente 100%
judaico, estudar em escola judaica ou participar de movimentos sionistas não
são mais os indutores capazes de conduzir os jovens a uma via de fidelização às
suas raízes ancestrais.
O “canto das
sereias” das mensagens cativantes e sedutoras que propagam as vantagens de uma
vivência integrada e harmoniosa com a comunidade maior, a qual cada judeu da
Diáspora está ligado pelos fortes laços da nacionalidade, tem sido interpretado
de uma forma literal, ao pé da letra, seja por conveniência, preguiça ou uma
decisão particular. Daí que a tênue linha que demarca o que é uma convivência
integrada e o que se constitui em uma entrega adesista precisa ser acentuada
antes que a mesma seja irremediavelmente varrida do mapa.
Prazer imediato
Outro fator
condicionante favorável ao ambiente de similitude observado nos jovens – tanto
no que se refere ao modismo de bens de consumo, ao comportamento social e as
expectativas de vida – é a tal busca da felicidade, muitas vezes mal
compreendida ou confundida com o prazer imediato.
Nas décadas de
1980 e 90, a conversão religiosa de um dos pares do casal era a rotina
convencional necessária para a aceitação pela família de um casamento
precedido, na maioria das vezes, de terríveis dúvidas e de um mal-estar
generalizado de ambas as partes. Diante da argumentação emocional de um filho
sobre a importância do amor e da felicidade a dois, os pais sucumbiam, mesmo a
contragosto, sofrendo calados ou reclamando até o final de suas vidas.
Muitos
procuravam ficar de bem com a sua consciência, matriculando os netos em escolas
judaicas na esperança de que o processo inicial de assimilação revertesse
milagrosamente. Hoje a situação se enveredou por outra vertente mais perigosa.
Agora são os pais que justificam as escolhas dos filhos fora do judaísmo,
bradando que a felicidade da garotada está em primeiro lugar. O “sentir-se
feliz” virou uma espécie de passaporte especial que garante imunidade ao seu
portador, oferecendo uma travessia aparentemente sem problemas ou cobranças
pelas fronteiras da assimilação.
Arte versus Judaísmo
Também a arte,
em todas as suas variantes, transformou-se em uma das mais poderosas redes de
pescaria que arrasta os jovens para fora de seu habitat ancestral. No Brasil, a grande maioria dos atores, atrizes,
diretores e apresentadores de TV,
compositores, músicos, escritores, intelectuais, pintores e demais artistas de
sucesso, com ascendência judaica, já estão casados ou vivem com pessoas de
outro credo religioso. Seus descendentes diretos não mantêm o menor resquício
de religiosidade judaica, fato absorvido como um detalhe folclórico de sua
árvore genealógica.
Curiosamente,
cabe a mídia judaica a iniciativa de lembrar o (perdido) elo judaico desses
cidadãos, festejados por jornais comunitários pelo sucesso de suas empreitadas.
Por sua vez, magnatas judeus que contribuem generosamente para a sustentação de
sinagogas e escolas ortodoxas amargam, na vida familiar, deserções
inexplicáveis de entes queridos, passageiros privilegiados da sociedade
transnacional dos ricos e milionários, onde as tentações e as transgressões
acabam se diluindo na benemerência que alivia os corações.
Assumindo o Yom Kipur
Apesar desse
quadro inquietante, anualmente, nas celebrações de Rosh Hashaná e Yom Kipur, as
sinagogas brasileiras ainda ficam lotadas de fiéis. Na Administração Pública,
pelo menos no estado do Rio de Janeiro, existem leis municipais e estaduais que
liberam o funcionário público de trabalhar nestes dias. Uma das leis que
abrange a cidade do Rio foi elaborada pelo então vereador Ronaldo Gomlevsky e
sancionada pelo prefeito à época, Marcello Alencar (lei nº 1410 de 21 de junho
de 1989). Já no âmbito estadual, a lei foi aprovada em 19 de dezembro de 1997
(lei nº 2874). Anos depois, o ex-governador Sérgio Cabral criou uma nova lei
para os feriados judaicos, ampliando a antiga (Lei nº 6.543 de 26 de setembro de
2013).
Entretanto, o
que se observa é que muitos judeus que trabalham no serviço público preferem
não expor esse lado, muitas vezes resguardado, de suas identidades,
comparecendo normalmente nas repartições nos dias sagrados. É fato comprovado
que quando “as festas” recebem uma ajudazinha do calendário e são celebradas no
fim de semana, a ida às sinagogas é maior. Citando novamente o rabino Sacks,
vale destacar a sua observação: “Os não-judeus respeitam os
judeus que respeitam o Judaísmo. E os não-judeus ficam constrangidos por judeus
que ficam constrangidos com o Judaísmo.”
Tratando-se de
Yom Kippur, é importante que por um período de 25 horas o mundo com seus
absurdos e inconveniências fique para trás. Os judeus de todo o mundo,
irmanados em suas orações, não darão ouvidos aos reclamos do corpo acostumado
ao prazer da alimentação diária. Enlaçados pelo poderoso abraço espiritual de
nossos profetas, estes autênticos heróis de nossa história, estaremos travando
uma guerra silenciosa com os nossos sentidos mais primitivos, como a gula, a
paixão, a dissimulação, a inveja, a raiva e a ambição. Enfim, com todas as
transgressões cometidas, conscientemente ou não, ao longo do ano.
Todos os dias do ano
Por certo, a
aspiração e a vontade decisivas de domar esses inimigos do caminho da retidão
não serão tarefas a serem cumpridas em único dia dedicado ao perdão. O trabalho
mais difícil e árduo irá se desenrolar ao longo dos 365 dias, no campo de
batalha onde acontecem os embates das ideias, das provocações e da geração das
falsas expectativas. Ou seja, na rotina diária de cada um.
Responder com coragem,
audácia e inteligência - através de atos coordenados, decisões acertadas e,
principalmente, de exemplos pessoais - é talvez exigir demais de um grupo
minoritário, do qual se espera, até nas piores situações, momentos de grandeza
e superação. Mas, o passado é a nossa verdade e nele aprendemos que as grandes
conquistas coletivas do povo judeu nasceram da fé inabalável de vontades
individuais que assumiram um papel decisivo na hora precisa. Que continue assim !
Texto atualizado, escrito originalmente em
2008 sob o título “O Yom Kipur e a guerra dos 365 dias