Por Sheila
Sacks
Publicado no "Observatório da Imprensa"
Se as fake news (notícias falsas) são um fenômeno recente, as fake histories (histórias falsas) se perdem no tempo. Isso porque de todas as ciências humanas, a história é a mais indefinida em seus intentos, a mais limitada em seus meios, aquela que menos admite métodos rigorosos e a que tem mais dificuldade em superar seus erros e enganos.
Se as fake news (notícias falsas) são um fenômeno recente, as fake histories (histórias falsas) se perdem no tempo. Isso porque de todas as ciências humanas, a história é a mais indefinida em seus intentos, a mais limitada em seus meios, aquela que menos admite métodos rigorosos e a que tem mais dificuldade em superar seus erros e enganos.
A frase do historiador
Pierre Daunou tem mais de 200 anos e reflete séculos de narrações tidas como
verdadeiras, mas que efetivamente não passam de versões mentirosas dos fatos,
falsos testemunhos, documentos forjados e criações históricas.
A história em xeque
Sobre essa coleção de
erros humanos em que se apoia a historiografia, o historiador François Dosse,
autor de “História em Migalhas”, reconhece que a história ainda é frequentemente
considerada fonte de corrupção. “As mentiras são mais fascinantes do que a
verdade”, dizia Umberto Eco. “E nem todas as verdades são para todos os
ouvidos”. Para o escritor italiano, “os jornais mentem, os historiadores
mentem, a televisão hoje mente”.
Mas, em se tratando de
um historiador, a busca pela verdade deve ser a sua primeira e única obrigação.
Isso porque a partir de suas narrativas, indivíduos e povos poderão ser
assolados por vicissitudes e barbáries, “igualmente cometidas pelos brutos e
pelos civilizados, ignorantes e instruídos, cínicos e devotos, egoístas e
heróicos”. Vasculhar os escaninhos da história e
não se render às narrativas oficiais já é uma forma de combater esse tipo de
mazela milenar.
Caso Dreyfus
O caso do capitão
Dreyfus, ocorrido em 1894, é emblemático. Envolvido em uma trama que o levou à
prisão e a ser expulso das Forças Armadas francesas, o militar foi vítima de
uma fake history que arruinou a sua vida pessoal e profissional.
Acusado de espionagem
a favor da Alemanha, ele foi julgado sumariamente por alta traição e condenado
ao degredo perpétuo na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Anos depois, comprovou-se
que as provas secretas contra Dreyfus eram um embuste. Ele recebeu o
indulto em 1899, mas somente em 1906 o julgamento espúrio foi cancelado.
Entretanto, se passou
um século para que sua inocência fosse oficialmente reconhecida pelo exército
da França. Isso se deu em 1995, quando o general Jean-Louis Mourrut, chefe do
“Service Historique de l`Armée de Terre” (atual ‘Service historique de la
Défense’ – SHD) classificou, publicamente, o caso Dreyfus de “uma
conspiração militar, fundada parcialmente em documento falso que resultou na
deportação de um homem inocente”.
O falso como
verdadeiro
Com o intuito de
mostrar os procedimentos ardilosos de pessoas sem escrúpulos que movidas pelo
ódio e ambições políticas inventam mentiras e as transformam em supostas
verdades, Umberto Eco escreveu “O Cemitério de Praga”, publicado em 2010.
Tendo como base fatos
e personagens verídicos que participaram da elaboração e da disseminação de “Os
Protocolos dos Sábios de Sião”, o autor reconstrói o século 19 através de uma
narração polêmica, que recebeu críticas do Vaticano e do rabinato de Roma.
Eco narra o nascimento
e a evolução desse abjeto complô, criado com a finalidade de atribuir aos judeus uma fictícia
conspiração para dominar o mundo.
Os falsos documentos forjados pela polícia secreta do Czar Nicolau II, em 1897, foram utilizados por Hitler em sua política de extermínio, incluindo-os em “Mein Kampf”, apesar de o jornal britânico The Times, em 1921, já ter desmascarado a farsa.
Ainda assim, o magnata
Henry Ford levou os Protocolos, na tradução inglesa, para os EUA, publicando-os
em forma de livro. Por sua vez, o rei Faisal, da Arábia Saudita, costumava
oferecer os Protocolos, em sua versão árabe, às autoridades que visitavam o
país.
Em uma de suas
entrevistas aos jornais italianos, Umberto Eco ressaltou o perigo que se
esconde nas chamadas “conspirações falsas”, pelo seu alto grau de manipulação e
dada à dificuldade em desmenti-las. ”A característica de uma conspiração
verdadeira é que ela é invariavelmente descoberta”, analisa. “Hitler e o
nazismo propagaram a falsa conspiração dos judeus como verdadeira e tiraram
proveito dos Protocolos.”
O poder da mentira
Mas, por que as
pessoas ainda consomem essa farsa? Será por ignorância? Por curiosidade? Os
Protocolos, afinal, seguem sendo oferecidos e vendidos em uma dezena de
idiomas, em formato de livro, com circulação livre na internet.
Juíza em Israel por
mais de 30 anos, Hadassa Ben-Itto investigou o embuste durante seis anos e em
1998 publicou “A Força da Mentira”, traduzido para o português no ano passado. “Escrevi
esse livro como um desafio a todos aqueles que inadvertidamente permitem que
essa e outras mentiras similares sejam espalhadas e provoquem danos contínuos”,
explica.
Em sua opinião o
conceito de “liberdade de expressão” não deveria acobertar mentiras. “Uma
mentira deliberada não é uma ideia”, reforça. “Ela pode facilmente se
transformar em uma arma perigosa e como tal deve ser banida, assim como outras
armas que têm o potencial de causar assassínios em massa e destruição.”
Uma perspectiva diferente
daquela defendida pela filósofa Hannah Arendt que questionava o fato de estudiosos do tema centrarem o foco, basicamente, no processo de falsificação. Na
sua percepção, o mais importante, nos tempos atuais, seria descobrir o porquê do
reiterado interesse das pessoas por uma declarada mentira, já devidamente desmistificada,
cujo poder de perenidade surpreende e assusta.