Por Sheila Sacks
Publicado no "Correio do Brasil"
No livro “Gomorra”, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalashnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.
No livro “Gomorra”, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalashnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.
Saviano lembra os dois presidentes que
morreram sob o fogo do Kalashnikov: o chileno Salvador Allende, em 11 de
setembro de 1973, no palácio presidencial de “La Moneda”, em Santiago, no golpe
militar que instaurou o regime ditatorial do general Augusto Pinochet; e o
egípcio Anwar Sadat, em 6 de outubro de 1981, no Cairo, durante uma parada
militar, três anos depois de ter assinado dois importantes acordos de paz com
Israel, em Camp David. Mortes que se somam a de outros políticos, como a do
general italiano Dalla Chiesa, que foi prefeito de Palermo, assassinado em
1982, e a do ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu, fuzilado em 1989.
“Mortes de excelência” que segundo Saviano garantiram “uma verdadeira
publicidade histórica” ao AK-47.
Concebido pelo general Mikhail Kalashnikov,
que morreu em 2013, aos 94 anos, e incorporado ao exército soviético em 1947, o
AK-47 é o fuzil mais popular da terra e estima-se que 250 mil pessoas são
mortas anualmente baleadas pela arma. Para comemorar os 70 anos de sua
invenção, foi inaugurada em uma praça de Moscou, em 19 de setembro, a estátua
de Kalashnikov empunhando o célebre fuzil que, há décadas, é um dos maiores
sucessos russos de exportação.
Símbolo
do liberalismo
Com mais de 100 milhões de exemplares espalhados pelo
mundo, o AK-47 está na bandeira de Moçambique e na bandeira do grupo
fundamentalista islâmico xiita Hezbollah; nos brasões do Timor Leste e do
Zimbábue; em centenas de emblemas de grupos políticos e nos vídeos de Osama Bin
Laden. “É um símbolo do liberalismo, um ícone absoluto”, abaliza o autor. E
explica: “A invenção desta arma permitiu a todos os grupos de poder e de
micropoder ter um instrumento militar. Ninguém, depois da AK-47 pode dizer que
foi vencido porque não tinha acesso a armas.”
Se na África Ocidental, o fuzil russo pode custar 50
dólares, no Iêmen é possível encontrar um AK-47 usado de segunda e terceira
mãos por 6 dólares. É o que afirma Saviano em seu livro. “O kalashnikov permite
que todos se tornem soldados, todos, até crianças esquálidas, e transformou em
generais das Forças Armadas pessoas que não conseguiriam guiar um rebanho de
ovelhas”, ironiza.
O jornalista revela que as drogas sustentam as compras dos
AK-47 por grupos armados. Sejam de guerrilheiros, terroristas, paramilitares ou
traficantes. “Coca em troca de armas”, enfatiza. Destaca o exemplo do ETA, o
grupo separatista basco considerado terrorista pela União Europeia, que enviava
cocaína através de seus militantes para receber, em troca, armas da Camorra, a
máfia napolitana. Não somente kalashnikov, mas explosivos e lança-mísseis.
Conhecido pelo seu histórico de quatro décadas de violência e mortes,
resultando em mais de 800 vítimas fatais, o ETA obtinha a cocaína através de
seus contatos com grupos guerrilheiros colombianos.
Queda do comunismo
ajudou
Com a queda da “cortina de ferro” – expressão usada por
Winston Churchill, em 1946, para definir as áreas na Europa sob o domínio da
União Soviética – e o fim da chamada “Guerra Fria”, países como Romênia,
Polônia e a ex-Iugoslávia ficaram com os seus arsenais abarrotados de armas
russas e precisando se reestruturar. O desmantelamento da União Soviética em
1991, precedido pela queda do Muro de Berlim, em 1989, criou um novo cenário
político-econômico na Europa e abriu as fronteiras para o mercado ilícito das
armas, dirigido principalmente para grupos políticos armados da África, América
Latina e do próprio Balcãs, como a Bósnia e a Sérvia.
De acordo com Saviano, a máfia napolitana pagava
informalmente a dirigentes comunistas em decadência a manutenção desses
depósitos de armas estocadas nos próprios países de origem. Dependendo da
conveniência, essas armas eram retiradas e levadas para a Itália para serem
negociadas. “Os fuzis vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam o
símbolo da OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte). Eram grandes
carretas roubadas das garagens americanas da base da OTAN, em Nápoles, que
graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália.”
General Kalashnikov e o fuzil AK-47 |
Antes, na década de 1980, durante o conflito entre a
Argentina e a Inglaterra na Ilha das Malvinas, no Atlântico Sul, a Camorra
também entrou no circuito para a venda informal de armas para a defesa
argentina. O jornalista afirma que devido ao isolamento econômico do país à
época, “ninguém teria lhe vendido oficialmente”. A chamada Guerra das Malvinas
durou dois meses e foi um fiasco para a máfia. “Poucos tiros, poucos mortos,
pouco consumo.” Ele conta que no mesmo dia que foi decretado o fim do conflito,
o serviço secreto inglês interceptou um telefonema intercontinental entre a
Argentina e uma localidade em Nápoles. “Aqui a guerra acabou”, falavam da
Argentina. “Não se preocupe, haverá outras...”, responderam do outro lado do
Atlântico.
Saviano é categórico ao ressaltar o poder de fogo dos clãs da
região da Campânia, no sul da Itália, e de sua capital Nápoles e arredores, nas
décadas de 1980 e 1990: “As guerras, da América do Sul aos Bálcãs, são feitas
com as garras das famílias da Campânia.” Em Nápoles, a Camorra já fez 3.600
mortos nos últimos 30 anos.
Fuzis com a
marginalidade
No Brasil, em junho, a polícia civil carioca descobriu no
terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro uma grande leva
de armamentos escondidos em aquecedores de piscinas dentro de containers vindos
de Miami. Foram apreendidos 45 fuzis AK-47 que iriam abastecer os traficantes
nas favelas, no valor de R$ 1,6 milhão. Na ocasião a secretaria de Segurança
informou que desde o início de 2017, 250 fuzis já tinham sido retirados das
mãos de bandidos. “No Rio de Janeiro, traficante só tira onda de macho por
conta disso, de ter o fuzil. A hora que tiver uma pistola, ele vai dar meia
volta”, comentou o titular da Segurança, Roberto Sá, repetindo com outras
palavras as observações de Saviano acerca da portabilidade do AK-47.
Pelas contas da polícia do Rio de Janeiro, cada fuzil vendido
aos traficantes no mercado negro tem um custo de 20 mil reais (em torno de 6,6 mil
dólares). Saviano escreve em “Gomorra” que o valor de um AK-47 está diretamente
ligado à violação dos direitos humanos. Quanto mais barato o fuzil, pior são as
condições de civilidade e cidadania.
Preocupado com a disseminação dessas armas de alta
letalidade, contrabandeadas principalmente do Paraguai e da Bolívia, o governo
brasileiro sancionou uma lei, em 26 de outubro, que torna crime hediondo, com
prisão imediata e sem direito à fiança, o porte ilegal de fuzis e outros
armamentos restritos às áreas militares. Somente no estado do Rio de Janeiro, do
início do ano até agosto foram apreendidos 347 fuzis, 149 a mais do que em
2016.
Vivendo recluso
Desde a publicação de
“Gomorra”, em 2006, Roberto Saviano vive sob escolta policial, devido a ameaças
de morte da Camorra. Em sua penúltima obra, “Zero Zero Zero” (2013), que
desvenda as rotas e o tráfico de cocaína no mundo, ele registra uma dedicatória
especial, logo na primeira página: “Dedico este livro a todos os carebinieri da minha escolta. Às 38 mil
horas vividas juntos. E àquelas que ainda viveremos. Onde quer que seja.”
Onze anos depois do seu livro de estreia – que foi
transportado para as telas de cinema e depois transformado em série de TV - Saviano
passa a maior parte de seu tempo nos Estados Unidos, recluso, ainda que
publicando nos meios de comunicação e escrevendo livros, como o recente romance
“La Paranza dei Bambini” (O bando dos meninos), de 2016, sobre a deliquência
juvenil em Nápoles. Lamenta que “Gomorra”, publicado quando tinha 26 anos,
tenha afetado drasticamente a vida de sua família, que teve de sair de Nápoles.
“Minha mãe sofreu um infarto e me senti culpado. Vim correndo dos EUA e, em
parte, foi porque me senti como se lhe tivesse dado o golpe no coração (...) E
meu irmão, a quem amo demais, o mesmo. Ele me diz que está comigo, mas sei que
está cansado de aguentar tanto.”
As confissões foram feitas ao jornalista Daniel Verdú, do “El
Pais” (29.08.2017), em um parque na cidade de Bolonha, sob os olhares atentos
de cinco carabiniere. Apesar do
enorme sucesso internacional – “Gomora” vendeu 10 milhões de exemplares em 40
idiomas - Saviano admite que hoje não teria escrito o livro da mesma maneira.
Jurado de morte pela Camorra, ele tem pesadelos e passa por períodos de
depressão. “Eu os desafiei, estava convencido de ser invencível.” Mas, em “La
Paranza dei Bambini”, Saviano volta ao tema da máfia napolitana, focando em um
grupo de adolescentes da Camorra, em Nápoles, que circulava pelas ruas e
bairros em motos, atirando com seus fuzis AK-47, amedrontando e controlando
seus moradores. Um enredo que desagradou à população e aos empresários da
cidade que acusam o jornalista de criminalizar Nápoles e espalhar para o mundo
uma imagem negativa do lugar.
Roberto Saviano |
Porém, o romance se baseia em fatos reais, a partir de uma
investigação desenvolvida pelos promotores antimafia Henry Woodstock e
Francesco De Falco e que culminou, em 2015, com a prisão de dezenas de pessoas.
Assim sendo, mesmo sob protestos e ameaças, Saviano não tem como excluir o
AK-47 de sua literatura. O que lembra uma situação semelhante tendo o Rio de
Janeiro como cenário. Desta vez atingindo o premiado cineasta José Padilha. Seus
filmes “Tropa de Elite” (2007) e “Tropa de Elite 2 – Agora o inimigo é outro”
(2010) que tratam das relações promíscuas entre policiais, traficantes e
políticos, e onde não faltam AK-47, o levaram a sair do Brasil, em 2015, depois
de se sentir ameaçado. Atualmente, ele vive com a família em Los Angeles e
escreve periodicamente para um jornal carioca.
Arma de atentados e
guerrilha
O AK-47 também atraiu a atenção de dois jornalistas
americanos que se debruçaram sobre o tema: Larry Kahaner, que publicou em 2006 o
livro “AK-47, a Arma Que Transformou a Guerra” (na edição em português), e CJ
Chivers, ex-correspondente de guerra. Seu livro “The Gun: The AK-47 and the
Evolution of War” é de 2010.
Escrevendo para o jornal “The New York Times”, Chivers
lembra que o AK-47 é pivô de crimes espetaculares que chamam a atenção do mundo.
“A lista remonta a décadas: a morte dos
atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; a tomada de uma
escola em Beslan, Rússia, em 2004; os ataques em Mumbai, Índia, em 2008; o
ataque a um shopping center em Nairóbi”, destaca. Ele afirma que a disseminação do fuzil mudou a guerra
moderna. “À medida que os governos comunistas repassavam os kalashnikovs para
aliados e terceiros, os rifles assumiram um papel inesperado: niveladores de
campo de batalha.”
Entre os fatos históricos nos quais o AK-47 teve papel
preponderante estão a Guerra do Vietnã, com os guerrilheiros vietcongues utilizando
a arma na selva contra os americanos. “Guerrilheiros
armados com kalashnikovs lutavam de igual para igual contra soldados de
infantaria de uma superpotência”, assinala o jornalista. Por sua vez, nos anos
1980, forças americanas e paquistanesas treinavam combatentes islâmicos a usar
o AK-47 na guerra para expulsar as forças soviéticas do Afeganistão.
No campo do terrorismo moderno, coube ao AK-47 inaugurar “a
era do terrorismo kalashnikov”. Chievers cita como exemplo o atentado à Vila
Olímpica de Munique onde estava a equipe israelense, assistido pelo mundo, ao
vivo, pela TV. Alerta que os governos têm feito pouco para deter a proliferação
desse tipo de arma, que escapou do controle das autoridades constituídas. “O kalasnikov
deixou de ser uma ferramenta do Estado ou da ideologia comunista. Criado para
fortalecer estados autoritários, o AK-47 ganhou credibilidade fora da lei, se
transformando em símbolo de revolta, contragolpe, crime e jihad”, conclui.