Forças
aliadas arquivaram filme de 1945 que documentou as atrocidades nazistas
Para
o jornalista Elio Gaspari o mundo só começou a encarar o Holocausto a partir
dos anos 1960, com o julgamento público de Adolf Eichman em Tel-Aviv. De fato,
a captura do oficial nazista em Buenos Aires por um comando israelense, seu
transporte clandestino para a Terra Santa, as audiências na Suprema Corte e a
sentença por enforcamento, em 1962, renderam milhares de reportagens, centenas
de livros e ensaios, questionamentos políticos, filmes e documentários.
Entretanto,
essa revelação histórica - a do mais brutal massacre institucional de cidadãos
promovido por um governo em solo europeu – poderia ter sido antecipada e
exibida ao mundo, ainda em 1945, caso as autoridades britânicas e americanas
não tivessem arquivado em uma repartição pública militar os cinco cilindros de
filme que registraram em tempo real o horror dos campos de concentração
alemães.
Cenário macabro
A
filmagem feita por cinegrafistas do exército aliado acompanha a libertação de
11 campos de concentração nazistas – de um total de 1.094 já documentados - a
partir de abril de 1945. Entre eles os campos de Bergen-Belsen, com 70 mil
mortos (onde Anne Frank morreu), Majdanek (80 mil), Dachau (30 mil) Buchenwald
(56 mil), Ebensee (20 mil), Matthausen (150 mil) e Auschwitz-Birkenau (1,1
milhão). As imagens aéreas mostram vastas planícies ocupadas por fileiras de
barracões cercadas por arame farpado e guaritas. No solo, cadáveres sem roupa
se misturam aos doentes e moribundos que agonizam sob a indiferença daqueles
que ainda reúnem forças para disputar algum resto de comida. Um cenário macabro
onde proliferam a imundície, as epidemias e a fome.
O
filme também mostra as equipes nazistas – homens e mulheres - que atuavam nos
campos da morte. Sob a ordem do exército aliado, esses soldados alemães cavam
imensos buracos onde são jogados os milhares de cadáveres que jazem insepultos.
Todos esquálidos e desnudos. O material catalogado sob a inscrição F3080
permaneceu abandonado nas prateleiras de um departamento do antigo ministério
da Guerra (hoje, ministério da Defesa) e em 1952 foi transferido para o
“Imperial War Museum” – IWM (Museu Imperial da Guerra) que o registrou sob o
título de “Memory of the Camps” (Memória dos Campos). Ali ficou enterrado e
esquecido por décadas.
Culpa coletiva
Planejado
para ser um documento histórico e didático que funcionaria como uma prova real
da existência dos campos e das práticas abomináveis exercidas pelo regime
nazista, o projeto do comando aliado ficou sob a responsabilidade de Sidney
Bernstein (1899-1993), chefe da seção de cinema da divisão de Informação
britânica, que chamou Richard Crossman para ajudá-lo no roteiro. Crossman foi
um dos primeiros oficiais britânicos a pisarem no campo de Dachau e
posteriormente entrou para a política, tornando-se líder do Partido Trabalhista
e ministro do Trabalho. Com apoio dos colegas do serviço americano de
informação, Bernstein recrutou ainda o diretor de cinema Alfred Hitchcock
(1899-1980), que trabalhava em Hollywood, para supervisionar o documentário.
Mas,
em 9 de julho de 1945, menos de três
meses após o início efetivo do projeto, os americanos retiram a sua
participação no filme. Em setembro de 1945, com o documentário inacabado, as
autoridades britânicas resolvem interromper o trabalho. O comando militar,
àquela altura, estava empenhado em melhorar as relações anglo-germânicas,
conter uma possível expansão soviética e não dar publicidade à vitimização dos
judeus que lutavam por uma pátria na terra de Israel sob mandato britânico. A exibição
do filme iria incutir uma culpa coletiva sobre a população alemã, o que segundo
as autoridades aliadas aumentaria ainda mais o caos e a desmoralização de uma
nação derrotada.
Nas imagens engavetadas, moradores das cidades
e vilas próximas aos campos, convocados pelo exército aliado, visitam esses
locais em plena efervescência de uma indescritível e absurda tragédia humana.
As câmeras registram o constrangimento e a aparente vergonha dos alemães
diante daquela multidão de seres desfigurados, reduzidos ao nível mais baixo de
miséria e humilhação. Um pesadelo inimaginável que se sucedia a poucos
quilômetros de suas casas, sem que ninguém soltasse um suspiro de misericórdia.
Vizinhos das indústrias da morte, os moradores são forçados a encarar, naquela
primavera de 1945, a máquina genocida que amparada na indiferença e pouco caso
de seus cidadãos exterminou milhões de crianças, idosos e cidadãos civis
inocentes.
Vizinhos dos campos |
O historiador Geoffrey Megargee, do Museu do
Holocausto de Washington, afirma que, de 1933 a 1945, o regime nazista implantou
uma rede de trabalho escravo que funcionou em 42.500 locais na Alemanha e nos
países ocupados. Foram 1.094 campos de concentração e 1.150 guetos, além de
milhares de fábricas e outros centros de trabalho forçado, de tortura e de
morte.
O mapeamento e o censo completo desses locais
irão compor uma enciclopédia que deverá estar concluída nos próximos anos. “A
existência de campos de concentração não era segredo e dada a dimensão dos
números é quase impossível acreditar que os alemães não tinham conhecimento do
sistema de matança de Hitler”, pondera o pesquisador. “Quando você tem dezenas
de milhares de acampamentos e milhões de trabalhadores forçados, prisioneiros
de guerra e prisioneiros de campos de concentração em todos os lugares, todos
fazendo todo o tipo de trabalho que se possa imaginar, é muito difícil dizer
que você não sabia de nada desse sistema”, completa.
Exibição
na TV
Corpos empilhados |
Em 7 de maio de 1985, após 40 anos de um
esquecimento premeditado e moralmente injustificável, o documentário em estado bruto é apresentado
na TV americana. Pesquisadores do premiado programa de jornalismo investigativo
“Frontline” - focado em temas políticos e internacionais - haviam encontrado em
um cofre do IWM, em Londres, os cinco cilindros de filme e mais um rolo sem
data, com imagens não editadas, um roteiro datilografado para narração e uma
lista de termos que corresponderia às imagens editadas (um
sexto carretel de filme que mostrava a libertação dos campos de Auschwitz e
Majdanek teria sido levado para Moscou por cinegrafistas soviéticos).
O ator britânico Trevor Howard (1913-1988) é
escalado para a narração das imagens que se mantém fiel ao roteiro original.
Com o mesmo título registrado pelo museu, “Memory of the Camps” é exibido pelo
canal aberto PBS (Public Broadcasting Service), dos Estados Unidos, uma
emissora pública voltada para programas culturais e educativos.
Josef Kramer |
Acerca
do filme, um dos cinegrafistas responsáveis pelas imagens chocantes registradas
no campo de Bergen-Belsen foi o sargento do exército britânico, Mike Lewis, que
não tinha ideia do que iria encontrar naquela tarde de 15 de abril de 1945, ao
cruzar os portões do campo recém- libertado. Tinham dito que ele iria filmar um
acampamento de prisioneiros, de criminosos. Anos depois, sua filha, Helen,
conta a saga do pai: “Ele entrou pelos portões de arame farpado e se deparou
com um terreno baldio cheio de corpos de pessoas mortas, em sua maioria nuas,
ao lado de outras morrendo de fome. Eram em torno de 10 mil pessoas que jaziam
insepultas e outras 13 mil que morriam de desnutrição e doenças.”
Helen
Lewis diz que seu pai permaneceu por 10 dias filmando as atrocidades nazistas
em Belsen, apesar da epidemia de tifo que assustava a todos. “Foi um trabalho
de registro histórico que inclusive foi usado em um dos primeiros julgamentos
de crimes de guerra.” De fato, cenas do documentário foram apresentadas como
prova documental no julgamento de Josef Kramer, o chefe do campo de
Bergen-Belsen, cuja imagem está presente no filme. Conhecido como a besta de
Belsen, Kramer também foi responsável pelo controle das câmaras de gás de
Auschwitz. Ele foi condenado por uma corte militar britânica e enforcado em 13
de dezembro de 1945.
Em Berlim
Corpos insepultos |
Um
ano antes, em 1984, por ocasião do 34º Festival de Cinema de Berlim, as imagens
de “Memory of the Camps” foram mostradas à parte da competição oficial. O
documentário sem som foi precedido pela leitura do texto dos editores
originais. Após os 60 minutos de filme houve um debate acompanhado pela rede
americana de TV NBC (National Broadcasting Company). O tema abordava a
possibilidade de exibição do documentário em toda a Alemanha Ocidental (o muro
de Berlim que separava as duas Alemanhas - a Oriental sob o governo soviético e
a Ocidental, alinhada com os Estados Unidos - só foi derrubado em novembro de
1989). Porém, o assunto não foi adiante em termos práticos e os debatedores e a
plateia se mostraram evasivos.
O
crítico de cinema Harlan Kennedy que escrevia para a revista americana “Film
Comment” e estava presente ao encontro, comentou que o único traço de realidade
sobre o que acontecia no país em relação ao Holocausto veio através da
observação de um estudante. “Ele disse que nunca se falava sobre essas atrocidades
na escola. E que havia participado de uma visita com seus colegas a
Bergen-Belsen, mas a história e o horror do lugar foram apresentados de forma
bem abreviada. Disse ainda que nunca tinha visto nada parecido com as imagens
do filme, o que fez o mediador pular da cadeira e responder que não havia esse
tipo de material disponível na Alemanha.”
Imagens digitalizadas
Em
2015, três décadas após essas apresentações que tiveram divulgação restrita, o
governo britânico resolve marcar os 70 anos da libertação dos campos nazistas e
o fim da Segunda Grande Guerra (1939-1945) com o documentário recuperado sob o
título original: “German Concentrations Camps Factual Survey” (Inspeção local
dos campos de concentração alemães, em tradução livre). Pesquisadores do IWM
onde o filme esteve abandonado por mais de 60 anos se empenharam no processo de
digitalização das imagens e de outros acabamentos, como a inclusão de som e
áudio e a reabilitação do rolo dado como perdido.
Contudo,
permanecem os questionamentos sobre a decisão das forças aliadas de desistir de
concluir o documentário, em 1945, e deixá-lo enterrado por tanto tempo, longe
do olhar e da consciência do mundo. A filha de Sidney Bernstein, o idealizador
do filme, revelou em entrevista ao jornal israelense “Haaretz” que até 1984-85,
quando as imagens foram liberadas, ela também não tinha conhecimento da
existência do material. Cineasta e autora de dezenas de curtas-metragens, Jane
Wells confessou que foi uma surpresa completa saber que o pai esteve em Bergen-Belsen.
Realmente, Bernstein impressionado com o relato escabroso do correspondente
britânico da rádio BBC, Richard Dimbleby, sobre o campo de Belsen, foi ao local
e decidiu retratar os crimes dos nazistas de tal maneira que seria impossível
alguém negar que aquilo existiu.
Em
1984, aos 85 anos, Bernstein lamentou que o documentário não se concluísse.
“Minhas instruções eram para filmar tudo, o que provaria que realmente aquilo
aconteceu. Eu queria provar que tinha visto porque a maioria das pessoas iria negar.”
Sobre a presença de Hitchcock no filme, acredita-se que foi importante para
delinear o roteiro, enfatizando quão perto estavam os campos de concentração
das aldeias e cidades, onde civis alemães viveram durante a guerra. O cineasta
queria planos longos, sem cortes, para que o documentário transmitisse
credibilidade e assim se tornar irrefutável a possíveis controvérsias quanto ao
extermínio sistemático de milhões de pessoas naquelas fábricas de mortes.
“Memory” é tema de filme
Ressuscitado da censura e do ostracismo, o documentário de 1945 agora está sendo apresentado em museus e centros de cultura a uma geração que na maioria das vezes dá de ombros para o que aconteceu porque não houve um processo sistemático de conscientização coletiva sobre o tema que ficou restrito às teias literárias, memoriais e artísticas. Mas, ainda assim suas imagens surpreendem pelo extremo nível de desumanidade e a brutalidade que registram.
Ciente
e sensibilizado pelo trabalho de restauração do documentário, o antropólogo e
documentarista inglês Andre Singer partiu para a realização de um filme tendo
como base o “Memory of the Camps”. Autor de documentários premiados de TV e
ex-diretor do “Discovery Channel”, na Europa, Singer revive a história de alguns
sobreviventes, apresentando imagens do filme original, depoimentos de soldados
e cinegrafistas que estiveram nos campos, e a visão de Bernstein e Hitchcock.
Apresentado no Festival de Berlim em 2014, o filme "Night Will Fall"
(em alusão à citação do roteiro original: ‘A menos que o mundo aprenda a lição
que essas imagens ensinam, a noite vai cair’) foi exibido na TV, no início de
2015, em mais de 15 países, durante a semana de celebração do Dia Internacional
do Holocausto (27 de janeiro).
Guardas arrastam cadáver |
Na
Alemanha, onde o filme teve estreia mundial, o historiador Heinrich August
Winkler admitiu que “o Holocausto é o fato central da história alemã do século
20”. Também afirmou que a população da Alemanha levou muitas décadas para
reconhecer o Holocausto e que não se pode colocar um ponto final diante desses
acontecimentos. Professor emérito da Universidade Humboldt, de Berlim, ele
discursou no parlamento alemão na cerimônia dos 70 anos do fim da Segunda
Grande Guerra, em sessão especial realizada em 8 de maio de 2015. Para uma
plateia de autoridades, o historiador lembrou que a ascensão política de Hitler
foi o triunfo do mito sobre a razão e advertiu que a xenofobia e o
antissemitismo atuais presentes na vida das sociedades alimentam e nutrem esses
mitos, que na verdade nunca desapareceram. Continuam à espreita, esperando a
sua hora para agir.