Por Sheila Sacks
Publicado no "Observatório da Imprensa"
“Os
inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros” (Theodor W. Adorno, filósofo)
Na série
de TV Good Wife, ambientada nos
tribunais de Chicago, uma das magistradas possui determinada característica que
desarma os bacharéis que recorrem à sua jurisdição. Dependendo do viés
interpretativo adotado pelos advogados de defesa e de acusação em relação ao
tema em julgamento, a juíza interrompe a argumentação com o bordão “na sua
opinião”, sinalizando aos contendores e aos membros do júri que o raciocínio
expresso pelo profissional em questão representa um ponto de vista pessoal e
não necessariamente uma visão verdadeira ou correta dos fatos em exame.
Diferente
dos tribunais, cujos parâmetros legais dificultam e restringem eventuais
manipulações na construção de um raciocínio, a imprensa é um campo aberto a
observações pessoais especulativas pela própria natureza de seu serviço voltado
à livre difusão da informação e por extensão ao livre exercício da opinião. Ainda que o comentário afronte conceitos éticos e apresente visões
distorcidas da realidade, o jornal lhe confere visibilidade e, essencialmente,
o crédito da confiabilidade. O historiador americano Christopher Lash
(1932-1994), crítico dos processos de disseminação da informação no mundo
globalizado, teve essa percepção ao enunciar em seu livro “Cultura do
Narcisismo” (de 1979), que “para algo ser aceito como real, basta que apareça
como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável”.
Artistas opinativos
Recente
consulta do Ibope apontou que 58% dos entrevistados confiam “muito ou sempre
nos jornais impressos”, percentual superior a outros meios de comunicação como
rádio, televisão e internet (“O consumo da informação”, em O Estado de
São Paulo de 28.12.2014). Outro dado significativo é que a grande
maioria dos leitores (84%) lê jornais para se informar e se inteirar das
notícias, segundo a mesma pesquisa. Mas,
tratando-se de páginas de opinião, presume-se que o interesse do leitor irá
convergir naturalmente para o editorial, que enuncia a posição ideológica do
jornal, e também para os habituais colunistas que repercutem os temas políticos
nacionais e internacionais que impactam a vida do cidadão e da sociedade.
Na última
década, ampliando a influência subjetiva das páginas opinativas que interferem
na formação e avaliação da realidade, a imprensa vem agregando a esse plantel
de profissionais de jornalismo uma plêiade de personalidades do mundo
artístico, aparentemente em prol da diversidade de ideias e conceitos que
balizam a liberdade de expressão nas democracias. Se antes, cineastas, atores,
músicos e outros astros populares “bons de escrita” se expressavam nos
suplementos de cultura ou “segundo caderno” sobre a sua arte, agora migraram
para as páginas reservadas à prática e observação jornalísticas das cenas
político-sociais, concorrendo em igualdade de espaço e mérito com os textos do
“pessoal da casa”.
A seu
favor, os próprios currículos festejados pela imprensa e a admiração dos
leitores-fãs, dois referenciais de peso a embasar pontos de vista individuais e
impositivos que caracterizam “a superioridade bem informada” conceituada pelo filósofo
e sociólogo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969).
Na obra “Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada” (1951), Adorno
então em seu exílio nos Estados Unidos chama a atenção para a responsabilidade
que deve prevalecer entre a elite formadora de opinião – “os inteligentes” –
quando se propõe a expressar suas ideias e opiniões valendo-se de um meio de
comunicação de massa. “Nenhum pensamento é imune à comunicação e proferi-lo no
lugar errado e por meio de entendimento errado é suficiente para solapar sua
verdade”, escreveu.
Acrescentando
que à responsabilidade que se requer consciente e justa na formulação de
conceitos e interpretações críticas soma-se uma carga de poder bastante
presente dado o alto grau de influência que essas opiniões produzem. Para o professor de Ciências da Comunicação da
Universidade Nova Lisboa, João Pissarra Esteves, aqueles que têm acesso à mídia
estão investidos de um poder extraordinário, “porque impõem a sua própria
realidade perante os outros, de acordo com os seus valores e interesses
próprios” (“A Ética da Comunicação e os Media Modernos”, de 1998).
“Legisladores invisíveis”
Maior
contundência mostra o autor de “Nossa Cultura ou o que restou dela” (2005), o
psiquiatra e escritor inglês Theodore Dabrymple, de 65 anos, um implacável
analista da sociedade globalizada com uma dezena de livros publicados. Ele
credita aos artistas, diretores de cinema, romancistas, dramaturgos,
jornalistas e até cantores populares – além de economistas e filósofos sociais
– o poder de indução e controle das sociedades. “São eles os legisladores
invisíveis do mundo e devemos prestar muita atenção àquilo que dizem e como
dizem”, assinala no prefácio do livro.
É o que se
acompanha em relação a dois artigos publicados em O Globo nas edições de domingo. O primeiro – “O Jeová do DVD” - assinado
pelo compositor Aldir Blanc foi dado a conhecer uma semana antes da realização
do primeiro turno das eleições presidenciais que elegeram Dilma Rousseff
(28.09.2014). Manejando as palavras como petardos, o compositor adota uma
linguagem “jihadista” para firmar sua posição ideológica de não votar na então
candidata Marina Silva. Acusa-a de estar “enganando os trouxas” e faz pouco da
crença da candidata. “O que a inspira (na Bíblia)? A matança dos inocentes? Um
pai que sacrificaria o filho porque o velho é um Deus ciumento? O absurdo e
cruel sofrimento imposto a Jó? Os incestos e traições?”
Antes, o
autor insinua que a queda do avião de Eduardo Campos teve o dedo de agências de
inteligência internacionais. “Há quem diga que o avião foi sabotado pela CIA,
Mossad, a poderosa empresa transacional Testemunhas de Jeová e outros
interessados.” E conclui: “Afastem do povo brasileiro essa bíblia arcaica,
cheia de dólares e mentiras.”
Opinião contestada
No segundo
artigo – “A Hollywood de Hitler”, em 16.11.2014 – o cineasta Cacá Diegues repercute o livro do
americano Ben Urwand “A colaboração – O pacto entre Hollywood e o nazismo”
(2013) que versa sobre um suposto compromisso de não agressão aos nazistas por
parte dos donos de estúdios americanos na década de 1930. Dados contestados
pelo jornalista e crítico de cinema da revista “The New Yorker”, David Denby, à
época da publicação do livro. Ele classifica de enganosa e cheia de erros e
omissões a tese acadêmica de Urwand que originou a obra, questionando e
desmentindo fatos descritos pelo autor (“How Could Harvard Have Publisher Ben
Urwand’s ‘The Collaborations’?, em 23.09.2013).
Filme contra o nazismo (1939) |
Mas, Cacá
Diegues assume as afirmações de Urwand como verdades absolutas e define seu
julgamento: “O curioso é que os chefões dos estúdios eram quase todos judeus
(...). Em benefício de seu balanço, eles preferiram ignorar o que se passava
com os judeus na Alemanha de Hitler e em toda a Europa.”
Mais
adiante, ele reforça esse ponto de vista: “Se considerarmos as leis do mercado
acima de todas as coisas, estaremos consagrando a superioridade do dinheiro
sobre a ética (...), “o fim do próprio humanismo e do amor à vida.” Ou seja,
não satisfeito em endossar fatos controversos, o cineasta desloca o eixo das
responsabilidades no que concerne ao maior e mais abominável processo de
matança institucionalizada do Ocidente. Crime levado a efeito por uma política
de estado e para o qual a maioria dos governos europeus fechou os olhos, em uma
cumplicidade, essa sim, que consagra o fim do humanismo e do amor ao próximo.
Os bastidores de um jornal (1952) |
Lamentavelmente,
em ambos os artigos, reconhecida a capacidade intelectual de seus autores, a
lógica do pensamento mantém-se superficial e primária, repetindo estereótipos
que corrompem um correto juízo de valor. Associar o Velho Testamento e Jeová a
“dólares e mentiras” assim como o cinema de Hollywood a Hitler são duas faces
tendenciosas e estigmatizantes da mesma moeda. Pondo de lado fatores pessoais
como preconceitos, inconsciente e linguagem, vale a resposta da filósofa Hannah
Arendt (1906-1975) ao jornalista Samuel Grafton, do New York Post, em 1963, sobre a coerência da superficialidade com o
mal. “Nós resistimos ao mal, ao não sermos arrastados pela aparência das coisas,
ao pararmos e começarmos a pensar; isto é, ao alcançarmos outra dimensão que
não a do horizonte do cotidiano. Em outras palavras, quanto mais superficial
alguém for, mais probabilidade terá de se render ao mal.” (“The Jewish
Writings”, de 2007).
Ao leitor
consciente, portanto, sobra a desagradável sensação de impotência diante da
leitura de textos bem articulados, produzidos por uma elite inteligente
respaldada por um veículo da imprensa do porte de O Globo. Nesse caso soa perfeita a observação do sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, de 89 anos, quando afirma que “nunca fomos tão livres e tão
incapazes para mudar as coisas”.