Por Sheila Sacks
“Eis que há muito tempo fala-se sobre a terra e os três quartos do que
se diz passam despercebidos” (Maurice Merleau-Ponty, filósofo)
Em 2013, um ciclo de conferências reuniu pensadores brasileiros e
franceses em torno de uma proposta de análise dos vários aspectos e
particularidades que envolvem o silêncio – assumido, deliberado e, em certa
medida, transgressor -, frente à tagarelice exacerbada do mundo contemporâneo.
Isso porque a modernidade vem impondo uma aceleração forçada ao tempo e com
isso uma consequente prosa contumaz, superficial, eivada de obviedades e enganos.
Essa hiperatividade da linguagem “prosaica”, que no entendimento do
francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) “limita-se a tocar, por
signos convencionais, significações já instaladas na cultura” (A Prosa do Mundo/1963)
tem sido estimulada até por conta do fenômeno da “tirania da visibilidade” (sou
visto, logo existo), uma marca das sociedades globalizadas assentadas nas redes
virtuais, no consumo dirigido, na descartabilidade e no efêmero. Hoje, praticar
o silêncio tornou-se “out”.
Memórias-padrão
Mesmo assim, ainda que os ambientes de clonagens linguísticas e
pensamentos triviais se multipliquem, o silêncio continua sendo um mecanismo de
resistência ao alcance de qualquer pessoa e um item fundamental à maturação e à
reflexão, duas coordenadas que balizam o tempo da razão, da criação e da arte.
No filme “Oblivion” (2013), o diretor e autor da HQ (história em quadrinhos) que
inspirou a película, Joseph Kosinski, 39 anos, realiza um exercício futurista e
apresenta um mundo pós-guerra nuclear onde clones com memórias idênticas são
induzidos a acreditar em supostas verdades que se comprovam posteriormente
falsas.
Uma drástica antevisão do porvir que tem a sua correspondência no mundo
atual, com os seres humanos cada vez mais tendendo às memórias coletivas
uniformes oriundas das massivas mensagens dos chamados “dispositivos
midiáticos”, compreendendo o termo dispositivo como qualquer mecanismo que seja
capaz de governar a vida, conforme enunciado pelo filósofo italiano Giorgio
Agamben, 67 anos, no livrete “O que é um dispositivo” (2006).
De mártires e heróis
Nessa maré de mesmice, a garimpagem de quem por dever de ofício segue o
rastro da notícia se dá no pormenor, nas entrelinhas e no não dito. As conexões
se formam na aparente linguagem coloquial, distraída e inconsequente – as tais
palavras ditas ao léu? - que muitas vezes perversamente encobre uma verdade ou a
mentira com manobras diversionistas.
Crianças do gueto de Theresienstdt. Das 15 mil somente um pouco mais de cem foram encontradas |
Presidindo o conselho judaico do gueto de Theresienstdt (Terezin,
em tcheco, a 80 quilômetros de Praga), na Tchecoslováquia, de fins de 1944 a
meados de 1945, o entrevistado tinha entre as suas funções a de se reportar
periodicamente ao planejador daquele suposto “gueto modelo” – uma farsa
inominável -, o tenente-coronel das forças nazistas e responsável pela
logística de extermínio de milhões de judeus, Adolf Eichmann (1906-1962).
Lanzmann guardou por mais de quarenta anos a entrevista, omitindo-a do
documentário “Shoah”, exibido em 1985, alegando que na ocasião o contexto era
outro.
No bate-papo em questão, em determinado momento Mumelstein cita uma
frase do prêmio Nobel de Literatura, Isaac Bashevis Singer (1902-1991): “Fomos
todos mártires, mas nem todos os mártires foram santos”, diz ele no flagrante
intuito de corroborar, para a posteridade, o seu polêmico comportamento durante
a Shoah e de lambuja replicar a citação que, da forma como é
apresentada, suscitaria dúvidas quanto à conduta daqueles que, como ele,
sobreviveram aos campos da morte.
O gueto de Theresienstdt funcionou de 1941 a 1945 e
aproximadamente 140 mil judeus europeus passaram por esse campo de transição,
sendo que cerca de 97 mil foram deportados e mortos em Auschwitz e Treblinka.
Quinze mil crianças também viviam no gueto e somente um pouco mais de cem foram
encontradas. Segundo o historiador e filósofo Gershom
Scholem (1897-1982) os sobreviventes de Theresienstdt consideravam Mumelstein
um traidor que merecia ser enforcado.
A escolha de cada um
Em contraponto a esse colóquio romano entre o intelectual e o
rabino registre-se uma outra conversa, desta vez reunindo dois policiais, individualistas
e sem apego às regras, no interior de uma carro em movimento no estado
americano da Virgínia. Inserida no capítulo final da primeira temporada da
série de TV “True Detective” (uma criação do roteirista Nic Pizzolatto), a cena
foi acompanhada por mais de 3,5 milhões de espectadores em uma única noite do
último março.
Rememorando o passado e os fatos que impactaram negativamente as suas
vidas pessoais e profissionais ao longo de mais de duas décadas de parceria na
polícia, o detetive Rust Cohle, personagem de Matthew McConaughey, é
incisivo na sua afirmação ao colega Marty (Woody Harrelson) acerca das
responsabilidades e consequencias das ações de ambos. Ele diz de forma
peremptória ao companheiro: “Todos têm uma escolha, Marty. Todos têm uma
escolha.”
Enfim, o personagem central do “Último dos Injustos” teve sim
uma escolha e a exerceu. Mas, diferente do detetive Cohle - que não procurou se
justificar ou se poupar-, Mumelstein usou da arrogância para fundamentar a sua
defesa. E nesse caso, melhor seria optar pelo
pudor do silêncio já que “as palavras sabem de nós aquilo que ignoramos delas”,
como diria o poeta René Char (1907-1988), figura chave da moderna literatura
francesa e herói da resistência armada contra os nazistas.