Por Sheila Sacks
Mantido em segredo por 67 anos, somente em 2005 o governo argentino revogou o documento que negava a entrada de judeus perseguidos pelo regime nazista
(Publicado no Observatório da Imprensa sob o título 'O jornalismo que reescreve a história')
Exército argentino (1940) |
“Como um argentino
crescendo nos Estados Unidos e na Irlanda, eu era hostilizado pelos colegas de
escola. – É onde todos os nazistas estão, diziam referindo-se à Argentina”. Quem conta essa passagem de sua
adolescência, em recente entrevista ao “Boston Review”, é o jornalista e
pesquisador Uki Goñi, 61 anos, correspondente do jornal britânico "The Guardian" e autor do best-seller “A
Verdadeira Odessa – o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón”.
Lançado em 2002 (The Real
Odessa, em inglês), o livro demandou seis anos de pesquisas e levou o autor a
cidades como Bruxelas, Berna, Berlim, Londres, Maryland (EUA), além da própria
Buenos Aires. Vasculhando arquivos oficiais como os da Cruz Vermelha
Internacional, consultando documentos confidenciais, inclusive informes da CIA
(central de inteligência americana), e buscando testemunhos que comprovassem a
existência de uma organização de resgate de nazistas, Goñi se deparou com o que
ele definiu de a “verdadeira” Odessa, em alusão ao romance “O Dossiê Odessa”,
do escritor inglês Frederick Forsyth, publicado há mais de 30 anos.
Guardando semelhanças com
a ficção (Forsyth foi correspondente da agência Reuters e a suposta Odessa
seria a sigla de ‘Organisation der ehemaligen SS- Angehörigen’ – Organização de
Antigos Membros da SS), o jornalista argentino descobriu uma estrutura bem
planejada que não somente abrigava homens da SS (Schutzstaffel – a tropa
nazista de Hitler), mas criminosos de guerra da língua francesa e fascistas
croatas. Uma rede operativa que contou com o beneplácito da ditadura peronista
(1946-1955) e se relacionava com setores do Vaticano, agências de inteligência
dos Aliados e grupos secretos argentinos.
Isolamento
e dificuldades
Se o início das pesquisas
- que redundou em 22 mil páginas de documentos e 260 entrevistas (uma delas com
Wilfred van Oven, secretário particular de Joseph Goebbels, ministro de
propaganda de Hitler) devidamente digitalizadas pelo Museu do Holocausto de
Washington (USHMM) e disponíveis para consulta pública desde 2012 – se deu em
função de uma reportagem, em 1996, para “The Sunday Times” de Londres (sobre a
história de um passaporte encontrado na Patagônia que teria sido usado por
Martim Bormann, o segundo homem mais importante do III Reich, depois de Hitler,
em sua fuga para a América do Sul), em 2014, passada mais de uma década da
primeira edição do livro, o silêncio de seus compatriotas incomoda o jornalista
que vive em Buenos Aires desde 1975.
“O livro me fez ficar sem
amigos na Argentina. Absolutamente sem amigos. Para se ter uma ideia, sou
constantemente procurado por acadêmicos e estudiosos dos Estados Unidos e da
Europa. Falei em universidades americanas, na Alemanha, em Manchester
(Inglaterra) e Salzburgo (Áustria). Mas aqui...nada. Eu nunca fui convidado
para falar a estudantes de história em qualquer lugar do país e nenhuma
universidade ou pesquisador da Argentina se aproximaram de mim. E isso é meio chocante”, desabafa Goñi na
reportagem (“Political Hatred in Argentina” – Ódio político na Argentina, em
tradução livre/17.02.2014).
O jornalista acredita que
a obra produziu uma espécie de isolamento público apesar das pessoas estarem
conscientes da importância de seu trabalho. Goñi ressalta ainda que os acessos
aos arquivos na Argentina “foram difíceis” (as pastas com dados sobre
imigração, por exemplo, foram queimadas em 1996), diferente das condições
existentes nos outros países consultados.
Segredo
de estado
Manifestação nazista em Buenos Aires (1938) |
Com edições em inglês,
espanhol, alemão, italiano, esloveno e português, o livro serviu de base aos
documentários “Rise of the Fourth Reich” (Ascensão do IV Reich), do “History
Channel” (2009), e “Elusive Justice: The Search for Nazi War Criminals”
(Justiça enganosa: A busca por criminosos de guerra nazistas, em tradução
livre), de 2011, provocando reações na Itália, Holanda e na própria Argentina,
a partir de registros envolvendo a arquidiocese de Gênova, a companhia aérea
KLM e a Casa Rosada, entre outras instituições e órgãos governamentais, na
preparação e operacionalidade das rotas de fuga dos nazistas para a Argentina.
Suspeita-se que centenas
de colaboradores nazistas de várias nacionalidades fugiram da Europa para a
Argentina entre 1945 a 1955 (entre 6 a 8 mil ‘refugiados’, de acordo com alguns
historiadores), dentre eles 180 criminosos de guerra (30 alemães, 50 croatas e
100 franceses), segundo um informe da Ceana (Comisión para el Esclarecimiento de las
Actividades del Nazismo en Argentina), que funcionou de 1997 a 1999 sob os
auspícios do governo argentino. Goñi, porém, contesta a cifra e afirma que suas
investigações identificaram 300 criminosos de guerra (incluindo austríacos,
belgas, romenos, húngaros, noruegueses), muitos deles já condenados que se
abrigaram no país.
Sabe-se que tanto Josef Mengele, conhecido como o
“anjo da morte” por transformar prisioneiros em cobaias humanas nos campos de
concentração, como Adolf Eichmann, o responsável pela “solução final” que
implicaria na eliminação dos judeus da Europa, ambos entraram na Argentina com
passaportes expedidos pela Cruz Vermelha Internacional, o primeiro em 1949, e o
segundo em 1950.
Por outro lado, uma circular instituída pela
chancelaria argentina, em 12 de julho de 1938, e enviada a todos os seus
consulados e embaixadas proibindo a entrada de judeus no país, funcionou como
um decreto de morte para 200 mil judeus que ficaram a mercê de Hitler depois da
anexação da Áustria pela Alemanha. Também 100 judeus de cidadania argentina
foram impedidos de retornar à Argentina. O documento que levava o carimbo de
“estritamente confidencial” foi descoberto nos arquivos da embaixada argentina
em Estocolmo, em 1998, pela historiadora Beatriz Gurevich, que fez parte da
Ceana.
Porém, em virtude de desentendimentos com a
comissão, a pesquisadora demitiu-se e o documento considerado “segredo de
estado” só veio a público quatro anos depois com o livro de Goñi, a quem
Gurevich enviou uma cópia. Mas, o infame memorando só foi revogado em 8 de
junho de 2005 - após 67 anos de vigência secreta - em cerimônia na Casa Rosada
presidida por Néstor Kirchner, atendendo petição encabeçada pelo jornalista.
Netos da Guerra
Atentado à embaixada de Israel (17.03.1992) |
Recentemente, Goñi passou algum tempo na Alemanha
recolhendo material para documentários e conversou bastante com estudantes
cujos avós vivenciaram a era nazista, encontrando semelhanças com o que tem
observado na Argentina. “Eu ouvia muitas crianças dizendo: Por que devemos nos
preocupar? São meus avós, por que você está falando sobre isso? Por que
deveríamos estar pagando esse dinheiro aos judeus por algo que aconteceu 60
anos atrás? E o que isso tem a ver comigo?”
Mas, de acordo com o jornalista, se ele encontrou
uma geração de netos que não quer saber o que os avós disseram e
fizeram (‘Isso não tem nada a ver comigo; por que estão sempre atacando a
Alemanha?’), há também aqueles que realmente se mostram interessados em
conhecer o passado e puderam conversar com seus avós. “Existe uma ligação
especial entre um neto e um avô o que permite uma maior franqueza”, avalia Goñi
que protagonizou um drama familiar ao revelar a existência de um documento
secreto conhecido como a Diretiva 11.
Neto do embaixador Santos
Goñi - que no início da década de 1940 servia no consulado da Bolívia -, o
pesquisador revela no livro que durante os anos em que seu avô ficou em La Paz,
de 1939 a 1944, o diplomata teve de lidar com um grande número de pedidos de
judeus da Europa que queriam entrar na Argentina pela Bolívia, em razão das
dificuldades para a obtenção de vistos na Alemanha. Contudo, em razão desse
documento que vedava a entrada de judeus no país, o embaixador negou os vistos
a todos os fugitivos em obediência às ordens da chancelaria argentina. Estes,
desesperados, tentavam atravessar a fronteira da Argentina clandestinamente, a
pé, e muitos foram roubados, assassinados ou abandonados pelos guias que
contratavam para a travessia.
Atentado ao centro judaico AMIA (18.07.1994) |
Uma das situações que
impressionou o avô foi o caso de uma bela jovem que após oferecer as suas jóias
e implorar pelo visto, tirou a roupa e ficou nua frente a ele. Esta e outras
histórias aflitivas contadas por seu avô – que morreu em 1955 - sobre os judeus
que se lançavam à aventura temerária de atravessar a fronteira, a partir da
Bolívia, foram confirmadas pelo escritor ao encontrar documentos a respeito no
subsolo do Ministério do Interior em Buenos Aires. Goñi reconhece que houve um
fator muito pessoal no seu pedido de revogação da Diretiva 11 porque seu avô
foi um dos muitos diplomatas de carreira que aplicaram a ordem, “imbuído de um
senso de obediência à moda antiga”.
“Fechar
os olhos”
Na conclusão de seu livro,
Goñi afirma que decidiu escrever “A Verdadeira Odessa” por estar “exasperado”
pela falta de justiça contra os crimes cometidos pela ditadura (1976-1983),
quando “20 mil pessoas desapareceram nos campos de morte da Argentina” (no
período, ele trabalhou no ‘Buenos Aires Herald’, de língua inglesa), e também
“pelos fatais atentados a bomba contra a embaixada de Israel (1992) e o centro
judaico AMIA, em Buenos Aires, em 1994 – o ataque mais mortal contra um alvo
judeu desde o Holocausto, matando 86 pessoas”. Em 1998, o autor já tinha se
iniciado no tema ao publicar “Perón y los alemanes” que não provocou o debate
que ele esperava. “Vi-me obrigado a cavoucar o passado para traçar um gráfico
do longo aprendizado dos argentinos no ato de fechar os olhos diante do mal.”
Goñi , no centro, consulta arquivos (Áustria - 2012) |
Com uma sinceridade que
chega a ser constrangedora, Goñi não poupa nem a si mesmo. Logo após a
publicação do livro, em entrevista à correspondente Noga Tarnopolsky para “The
International Raoul Wallenberg Foundation” – organização não governamental que
promove os valores humanos de coragem e solidariedade que marcaram os
salvadores do Holocausto – ele confessou: “É difícil dizer e difícil de as
pessoas aceitarem, mas devo dizer que eu mesmo sou antissemita por causa da
educação que tive e também porque isso faz parte da sociedade onde tenho
vivido.” Para o jornalista, se antes ele negava que existia qualquer tipo de
antissemitismo na Argentina porque assim acreditava, depois da extensa pesquisa
realizada sua opinião é que a sociedade argentina precisa lidar com o problema
do antissemitismo, que é disseminado, se quiser se tornar um corpo social
democrático e transparente.
Atualmente vivem 187 mil
judeus na Argentina. Uma redução expressiva, considerando-se que em 1950 o
número registrado era de 310 mil, conforme dados da Agência Judaica (The Jewish
Agency).