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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

As fronteiras da notícia


por Sheila Sacks

Ainda sobre a liberdade de imprensa e a parcialidade da notícia

A organização francesa Repórteres Sem Fronteiras (RSF) divulgou em outubro o ranking anual de liberdade de imprensa que classifica as nações de acordo com a situação observada em seus territórios.

No relatório “Worldwide Press Freedom”, elaborado a partir de questionários respondidos por jornalistas, juristas, ativistas de direitos humanos e organizações parceiras de cinco continentes, é destacada a importância de um ambiente de paz, mais do que a prosperidade econômica, para a garantia da liberdade de imprensa.

E foi justamente o conflito armado em Gaza, no início do ano, o que motivou a RSF a rebaixar Israel na classificação mundial em 2009. Para a ONG a guerra é a maior ameaça e o pior cenário para a prática do livre exercício de veiculação de notícias. Em 2008, Israel ocupava o primeiro lugar entre os países do Oriente Médio a garantir as liberdades individuais e a integridade física dos profissionais de jornalismo, situação essa impossível de se manter quando em cenários conturbados por combates e atos de terrorismo, cerceados por normas e segredos militares. A guerra, que vitimou 3 jornalistas e deixou 20 feridos na área conflagrada, foi o principal argumento para a organização retirar 47 pontos de Israel e empurrá-lo para a 93ª colocação.

Vale lembrar que 127 jornalistas morreram em zonas de guerra em todo o mundo, em 2007, e nenhum em território israelense. Ano passado, das 68 mortes em serviço, 70% ocorreram no Iraque.

Simplismo e imediatismo difundem notícias parciais

Mas mesmo com uma guerra em seus calcanhares, Israel se mantém uma democracia exemplar que não pressiona ou amordaça os jornalistas. A quantidade de correspondentes estrangeiros que trabalha livremente em suas cidades - em torno de 400 - é bem acima da existente em países sob tensão contínua. Porém, já é lugar-comum a publicação de notícias e artigos maniqueístas sobre o sensível binômio “israelenses versus palestinos”, enfocado sob o prisma simplista e repetitivo de uma confrontação de forças desiguais.

O fato é que a notícia tem suas limitações e um caráter variável e até subjetivo. Isso porque mesmo se pressupondo que uma notícia seja verdadeira em relação à realidade de uma determinada ocorrência, no instante de sua veiculação ela já se torna parcial e, em alguns casos, até injusta, porque exclui o seu histórico e antecedentes. O imediatismo da notícia não contempla passado nem futuro, apenas o presente. Assim, a causa inicial, mãe de toda a insensatez, erva daninha cultivada com maestria pelos apologistas do terror – varrer Israel do mapa – raramente é mencionada. Perdido o status de novidade, o âmago da questão virou uma espécie de lenda urbana ou um pormenor démodé a ser mantido fora das fronteiras da notícia.

No entanto, países como a Síria e Irã não desistem de enviar armamentos para grupos terroristas visando à destruição de Israel, como as toneladas de morteiros, granadas e mísseis encontradas pela marinha israelense, na semana passada, escondidas entre a carga civil de um navio mercante, a 160 quilômetros da costa de Israel.

Mídia imita e repete o que a sociedade deseja ouvir

O filósofo francês Paul Virilio, de 77 anos (Cibermundo: a política do pior), afirma que a mídia contemporânea é o único poder que tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra. Segundo ele, o neutro não existe, sobretudo no domínio da notícia. Isso porque o jornalismo constrói percepções de realidade quando seleciona, destaca, descarta etc o que será apresentado ao receptador. É um jogo de sedução, afirma o jornalista e estudioso de mídias, Régis Debray, que foi amigo pessoal de Fidel Castro e Che Guevara nos anos 1960. As mídias em suas mensagens imitam o pensar e o falar dos que recebem as notícias e vice-versa, em um tipo muito singular de mimetismo. Dessa forma, a mídia, como um todo seria sempre o reflexo de uma sociedade, repercutindo o que se escuta e o que se lê e homogeneizando pensamentos.

Nesse contexto, a repetição surge como um engenhoso mecanismo de persuasão e substituição de valores. “A repetição nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla”, escrevia sabiamente, no século 18, o autor do “Tratado da Natureza Humana”, o filósofo escocês David Hume. Sendo Israel o objeto da notícia, constata-se que, lamentavelmente, a mídia repetitiva e corrosiva não tem dado trégua. Muito menos algum crédito às sucessivas tentativas de acordos de paz ensejadas por Israel ao longo desses 61 anos de história.

A metáfora da paz não deve sobrepujar a realidade do terror

Destino melhor, porém, teve o presidente norte-americano Barak Obama que em poucos meses à frente do país foi agraciado com o prêmio Nobel da Paz, sem ter apresentado nenhum resultado concreto nesse segmento, até por exiguidade de tempo.

Para o professor e cientista político Candido Mendes, a homenagem “premia um novo estado de consciência internacional”. “Um prêmio explosivo”, avaliou o brasileiro, não tanto pela láurea ter sido instituída pelo sueco Alfred Nobel, conhecido como o pai da dinamite, mas pelo espanto “saudável” que suscitou em muitos. Entretanto, a retórica do voto de confiança nas boas intenções de um político, pelo menos aqui no Brasil soa mais como conversa fiada. Uma espécie de oratória de probabilidades ou um exercício de futurologia um tanto descabido. No campo do jornalismo seria como uma notícia sem o fato real que lhe dê base e substância. Uma anomalia.

Mas, se o prêmio de Obama foi explosivo no sentido figurado, o que se ouviu no 20° Colóquio da Academia da Latinidade, realizado no Cairo, há pouco mais de dez dias, é nitroglicerina pura. Na presença de intelectuais, sociólogos, filósofos, historiadores e políticos da França, Espanha, Itália, Portugal, Egito, Argélia, Brasil e outros, a professora Mia Bloom, da Universidade de Geórgia (EUA) e autora do livro “Morrendo para matar: a sedução do terror suicida”, falou sobre o aumento da participação de mulheres nos atentados suicidas no Iraque e em outras regiões, como Sri Lanka e Turquia. Antes restrito aos homens muçulmanos, foi constatado que desde 2008 organizações nacionalistas, movimentos religiosos e grupos terroristas como a al-Qaeda veem se utilizando cada vez mais de mulheres-bomba, com melhores resultados letais, porque elas muitas vezes ficam a salvo de revistas. E a tendência, no futuro, inclui a arregimentação de crianças.

A palestra da professora norte-americana na Academia da Latinidade – instituição criada há dez anos para funcionar como uma ponte de entendimento nas relações do Ocidente com o Oriente, principalmente com o mundo muçulmano - ocorreu dois dias depois de um dos piores atentados à bomba em Bagdá, assumido pelo braço iraquiano da al-Qaeda, que matou 135 pessoas e feriu mais de 600.

Enfim, mais um alerta assustador com base em dados reais e que como tantas outras manifestações sérias e conscientes, lamentavelmente, tende a permanecer estacionado nos meios acadêmicos, à margem da notícia e do grande público.