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terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eleições na Unesco: Sobre palavras e ações


por Sheila Sacks

Vamos iniciar o nosso texto com uma pergunta: será que o leitor ou alguém de suas relações tinha conhecimento, há algumas semanas, do nome e da nacionalidade do chefe da Unesco, a agência da ONU para Educação, Ciência e Cultura? Pois é, o diplomata japonês Koïchiro Matsuura exerce esse importante cargo de diretor-geral desde 1999 (em 2005 foi reeleito por mais quatro anos) e é quase certo que o grande público continuaria alheio a esse detalhe se não fosse o imbróglio constrangedor de sua sucessão, disputada por um ministro da cultura que já propôs a queima de livros em hebraico.


Considerado favorito, o egípcio Farouq Hosni só perdeu na quinta apuração, de forma apertada, por apenas quatro votos. Ou seja, foi apoiado por 27 dos 58 membros do comitê votante. Uma derrota preocupante, pois revela o tamanho da adesão obtida pelo candidato do Egito, malgrado a imensa repercussão negativa de sua candidatura, expressa de maneira veemente nos meios de comunicação por intelectuais, jornalistas, diplomatas, educadores e até políticos de várias nações.


Em relação à participação do Brasil, a questão desde o início foi tratada publicamente pela diplomacia brasileira como uma troca de favores. Tanto que o chanceler Celso Amorim jamais se sentiu inibido em suas justificativas em prol da candidatura egípcia, ainda que as mesmas fossem questionadas por muitos em razão da flagrante incompatibilidade com o que se convencionou designar de ética e de bons costumes. Envolvido até o pescoço nas tramas de bastidores da geopolítica – um jogo de poder usualmente apresentado pela mídia sob uma artificiosa terminologia que agrega siglas e títulos como G-8, G-20, emergentes, países em desenvolvimento etc. – o ministro já sinalizava, em maio deste ano, o rumo do voto brasileiro.


Tolerância zero para o antissemitismo


Na ocasião, entrevistado pelo jornal Folha de S.Paulo, ele descartou qualquer apoio à candidatura do diplomata Marcio Barbosa, diretor-adjunto da Unesco, por ver nela uma ameaça à pretensão do Rio de Janeiro em sediar a Olimpíada de 2016. Segundo Amorim, "cada candidatura tem um custo para as outras e pode gerar desgaste em termos de apoio", visto que naquele momento o governo brasileiro estava empenhado na candidatura do Rio para abrigar os Jogos Olímpicos: "Fizemos uma opção geopolítica", afirmou o ministro. "O Brasil tem uma aproximação com os países árabes e africanos que apoiam a candidatura egípcia." Uma posição que, aparentemente, colaborou para a conquista das Olimpíadas para o Brasil na votação em Copenhague (2/10), dez dias depois das eleições na Unesco, encerradas em 22 de setembro.


Interessante é que o ministro de Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, que esteve em julho no Brasil e depois estendeu a sua viagem à Argentina, Peru e Colômbia (primeira visita de um ministro do exterior israelense ao Brasil, em 22 anos), também parece advogar uma nova configuração para a política externa de seu país. De acordo com o portal de notícias "Aurora-Israel", o gabinete do ministro elaborou um estudo sigiloso sobre a política externa de Israel praticada no passado em relação ao resto do mundo. "Durante décadas", revela o documento, "Israel se descuidou por completo de regiões como a América Latina, África, Europa Oriental, Bálcãs (sudeste europeu), América Central e sudeste asiático. O Ministério de Relações Exteriores transformou-se em um ministério de relações israelenses-palestinos. E o custo dessa negligência tem sido imenso, evidenciando-se na ONU e em outros centros internacionais." Segundo o site, essa nova política defendida por Lieberman prevê uma maior aproximação com outras potências mundiais e com os países em desenvolvimento, buscando novos parceiros, além da sua já consolidada aliança com os Estados Unidos.


Por outro lado, o estudo também preconiza uma política de "tolerância zero" para comportamentos e expressões de antissemitismo em qualquer parte do mundo.


Vozes importantes não calaram


Mas, voltando à votação na Unesco, que deu uma vitória apertada à diplomata búlgara Irina Bolkova, custa a crer que uma organização composta por 193 países-membros e voltada basicamente para a difusão da educação, principalmente nas nações mais pobres, escapou, por pouco, de ser comandada por um personagem que em um determinado momento de sua vida pública foi capaz de expressar pensamentos tão mórbidos e racistas em relação a uma cultura e a um povo.


Criada em 1945 e sediada em Paris, a Unesco também tem como metas prioritárias contribuir para a paz e a segurança mediante o pluralismo e a diversidade de ideias, a liberdade de imprensa e a salvaguarda do patrimônio cultural dos povos, representada pela preservação das entidades culturais e tradições orais, a promoção de livros e a leitura. E foi exatamente aí, no quesito "livros", que o diplomata egípcio se aproximou do abominável, ao defender perante o parlamento, em 2008, a queima de livros israelenses em todas as bibliotecas de seu país. Não sem antes expelir ofensas inaceitáveis e desrespeitosas ("a cultura israelense é inumana, agressiva, racista, pretensiosa, rouba o que não lhe pertence...") que, se dirigidas a outras nações, talvez resultassem em um penoso impasse diplomático. No entanto, devido ao papel do Egito como mediador em conflitos na região e ao tratado de paz entre os dois países, que vigora há 30 anos, o assunto não teve conseqüências mais sérias.


Importantes vozes, porém, não se calaram diante de tamanho descalabro e repercutiram suas objeções à candidatura do egípcio. A escritora francesa Simone Weil, a primeira mulher a presidir o Parlamento europeu (1979-1982), condenou as declarações de Hosni e pediu o boicote à sua candidatura. O secretário-geral da organização Repórteres Sem Fronteiras, o jornalista Jean-Fraçois Julliard, lembrou que o diplomata egípcio não era um bom candidato para a Unesco porque representava um país que não respeita a liberdade de expressão, principalmente na internet. O combativo Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz de 1986, acompanhado de outros intelectuais, alertou a comunidade internacional, em artigo no jornalLe Monde, sobre o passado e as declarações racistas de Hosny.


Compromissos não podem ser questionados


Contudo, houve uma pessoa em todo esse contexto permeado de palavras de indignação, protestos e manobras de bastidores, a quem coube produzir um gesto raro e admirável, quase um ato de redenção, capaz de sugerir um viés de esperança em um mundo político cada vez mais afastado dos valores morais que devem nortear o comportamento e as ações nas sociedades civilizadas. Trata-se de Manuel Maria Carrilho, embaixador de Portugal na Unesco, que não aceitou as instruções de votar no candidato egípcio, o que obrigou o governo português a enviar outro diplomata a Paris para executar as suas instruções.


Portugal decidiu apoiar Hosni na expectativa de contar com o voto do Egito à sua candidatura a membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU para o biênio 2011-2012. Carrilho, de 58 anos, se recusou a comparecer às últimas votações e a imprensa portuguesa especulou que o diplomata tenha alegado razões de consciência para não votar no egípcio, denunciado por suas declarações antissemitas e por representar um país onde se pratica a censura.


Muito respeitado em Portugal, Carrilho é doutor em Filosofia Contemporânea, escritor, jornalista (foi colunista do jornalLe Monde e manteve uma coluna semanal, até 2008, no jornal Diário de Notícias, um dos mais lidos do país), ministro da Cultura (1995-2000), deputado e vice-presidente do Partido Socialista, de 2002 a 2008. Entre medalhas e condecorações recebidas, destacam-se a Gran Cruz da Ordem de Mérito Civil, do rei da Espanha (1996), a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, do governo brasileiro (1997) e o Grand Offícier da Légion d’Honneur, do governo francês (1999).


Nomeado embaixador de Portugal junto à Unesco em janeiro deste ano, o diplomata apoiava a austríaca Benita Férreo-Waldner, da Comissão Européia, instituição que representa e defende os interesses dos países europeus. Esta foi a primeira opção do governo português para o comando da Unesco e quando a comissária retirou a sua candidatura, Portugal passou a apoiar o candidato egípcio. Sobre a diferença de opiniões com Carrilho, o Ministério de Negócios Exteriores de Portugal declarou, em nota à imprensa, que "os compromissos do Estado português são superiores e não podem ser postos em causa". Conforme publicado no matutinoDiário de Notícias, "a decisão de Carrilho de não votar não merece comentários".


Os "destruidores de livros"


Contudo, a sua corajosa atitude se enquadra de forma primorosa no elucidativo pensamento do escritor norte-americano Ernest Hemingway acerca do que seja, de fato, um feito. Dizia o prêmio Nobel de Literatura de 1954: "Jamais confunda movimento com ação."


Vale lembrar ainda que o que estava em jogo, prioritariamente, era a mudança do comando da mais importante e respeitada organização internacional de fomento à educação e cultura, bastião da luta contra o preconceito e a censura nos meios de comunicação. Bem mais do que eleger, por exemplo, um síndico de prédio que, mesmo assim, se deseja que tenha bons antecedentes. A retórica de amenizar os pensamentos explicitados pelo candidato egípcio com artifícios do tipo de que "não foi bem isso que ele quis dizer" e que "a declaração foi retirada de seu contexto original" consiste em argumentações escapistas que não convencem. Na realidade, as palavras devem sem manipuladas com cuidado, pois são mais poderosas que bombas atômicas. Conselho da época de 1930, da britânica Pearl Strachan Hurd, que continua a valer neste século 21.


Estimular, através das palavras, uma prática condenável que a humanidade deseja crer que jamais será ressuscitada, é uma afronta à inteligência e à sensibilidade das pessoas de bem. O filósofo e poeta alemão Heinrich Heine já escrevia, lá pelos idos de 1820, que aqueles que se mostram dispostos a queimar livros acabam, cedo ou tarde, por queimar homens. Palavras proféticas, tendo em vista que, um século mais tarde, livros de grandes autores como Freud, Marx, Einstein, Mann, Zweig, Remarque e o próprio Heine arderam em fogueiras públicas nas principais cidades da Alemanha, precedendo a tragédia do Holocausto.


Em seu livro História Universal da Destruição dos Livros (2006), o venezuelano Fernando Baez aponta o ódio, o medo, a soberba, a intolerância e a sede de poder como os motivos que animam os chamados "destruidores de livros" a seguir adiante. "Na verdade, a intenção deles nunca foi destruir o objeto em si, mas o que este representa – o vínculo com a memória, o patrimônio de ideias de toda uma civilização."