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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Quando a fé remove montanhas

por Sheila Sacks

A história de uma amizade que mudou o mundo

"Quando eu era jovem costumava admirar as pessoas inteligentes, com a idade passei a admirar as pessoas de bom coração" (Heschel) 


Bradando por justiça e liberdade, os anos 1960 adentraram pela história de uma maneira atrevida e rebelde que sacudiu as estruturas do establishment social e cultural do planeta. Arrebanhando intelectuais, universitários, artistas, profissionais liberais, religiosos, políticos e ativistas em geral, a luta pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos incendiou mentes e corações, mobilizou jovens e sacudiu todo o continente americano.

Somando-se a tal desafio, outras batalhas titânicas foram travadas naquela década conturbada, com coragem e lucidez, por uma geração iluminada. Como a façanha de dizer “não”, em determinado momento, à guerra do Vietnã, e participar dos esforços para erradicar, por completo, no seio da Igreja Católica, um conceito milenar e preconceituoso contra os judeus. O que foi feito no Concílio Vaticano II, através da Encíclica "Nostra Aetate".

Em todos esses combates onde o entusiasmo, a tenacidade e a perseverança se apresentavam como condições básicas para qualquer militância atingir o seu objetivo, um homem do livro e da fé destacou-se com a sua presença indelével, despertando encantamento e admiração naqueles que dele se acercavam.

De família ortodoxa e natural da Polônia, Abraham Joshua Heschel (1907-1972) era filósofo, professor, escritor e rabino. Em 1963, quando se encontrou pela primeira vez com o reverendo Martin Luther King, Heschel já tinha escrito a maioria de seus livros, dentre eles os quatro mais conhecidos: “Os Profetas”, “O Shabat” (sábado), “O Homem não está Só” e “Deus em Busca do Homem”.

Black Zion

No ensaio escrito por Susannah Heschel sobre o seu pai e incluído no livro “Black Zion: African-American Religious Encounters with Judaism” (2000) - que trata das relações culturais e religiosas dos negros norte-americanos com o Judaísmo - são realçadas a afeição, a amizade e a convergência de ideias que uniam esses dois gigantes de seu tempo. “Ambos, Heschel e King, buscavam as imagens do Êxodus para despertar suas audiências para o grave problema do racismo”, conta Susannah.

Foi o que aconteceu na conferência Nacional de Religião e Raça realizada em Chicago, em janeiro de 1963, que reuniu judeus e cristãos em torno de temas como a discriminação e o preconceito. Na ocasião, Heschel inicia o seu discurso comparando o dia presente à história bíblica de Moisés e o Faraó: “O resultado daquela primeira assembleia não se completou”, alerta Heschel, “porque o Faraó ainda não capitulou". E afirma: "Na realidade foi mais fácil para as crianças de Israel atravessar o Mar Vermelho do que está sendo para os nossos irmãos afro-americanos cruzarem certos campus universitários.”


Convidado por John F. Kennedy para um encontro na Casa Branca, Heschel faz um apelo para que o presidente convoque as lideranças espirituais do país para um maior engajamento pessoal nas questões dos Direitos Civis: “Eu proponho que o presidente dos Estados Unidos declare estado de emergência moral”, enfatizou o rabino, “já que nós permaneceremos em falta com Deus enquanto a humilhação aos negros persistir”.


Em março de 1965, Heschel e King caminham juntos na emblemática marcha realizada no estado de Alabama (depois de duas tentativas abortadas pelas forças policiais), um dos mais segregacionistas do país. Durante cinco dias eles percorrem os 71 quilômetros que separam a cidade de Selma à capital Montgomery, à frente de uma multidão que chega a 25 mil pessoas, para defender o sagrado direito do voto da população negra. “O contrário do bem não é o mal, e sim a indiferença”, argumenta Heschel. “Em uma sociedade livre, alguns são culpados, mas todos são responsáveis.”

Vietnã

Naquele mesmo ano Heschel funda o movimento antibelicista “Clergy and Laymen Concerned About Vietnam (CALCAV)”, que congrega religiosos e leigos que se opõem à guerra no Sudeste Asiático. Com a parceria do teólogo cristão John C. Bennett e do pastor luterano Richard Neuhaus, o grupo discursa em universidades, sinagogas e igrejas, clamando pelo fim do conflito no Vietnã. “Se hoje é difícil parar com a guerra, amanhã será muito mais difícil ”, protesta Heshel.

Em janeiro de 1967, ao final do primeiro encontro nacional da organização, em Washington, e na presença dos 2.500 representantes de 47 estados, Heschel lê o documento que resume o pensamento e a disposição dos participantes: “Chega um tempo em que o silêncio soa como traição. Esse tempo está entre nós e tem relação com o Vietnã.” A filha de Heschel conta da angústia do pai acerca do problema: “Frequentemente eu o via no meio da noite, incapaz de dormir. A guerra o afligia cruelmente.”

A mensagem e a mobilização do CALCAV sensibiliza Luther King. Ele ingressa oficialmente no movimento pela paz e faz um pronunciamento emocionado, ao lado de Heschel, em Nova York. Assumindo publicamente o seu engajamento, King louva a missão dos companheiros, dizendo-se profundamente solidário com os objetivos e o trabalho realizado: “Estou aqui esta noite porque a minha consciência não me deu outra escolha. É tempo de romper o silêncio... mesmo não sendo fácil assumir a tarefa de se opor a uma política de governo, especialmente em tempo de guerra.”

Vaticano II

Heschel também tem uma atuação única em outra missão singular: preparar um texto sobre os tópicos antijudaicos na liturgia católica, a pedido da instituição judaica “American Jewish Commitee”, e ir a Roma para se encontrar com o Cardeal Augustin Bea, que supervisionava o texto da Encíclica " Nostra Aetate" acerca das relações da Igreja com as outras religiões. Entre 1962 e 1965, período em que se realiza o Conselho Vaticano II, Heschel participa de várias audiências de trabalho com o Papa Paulo VI, ajudando-o a pavimentar o caminho das novas relações entre judeus e católicos.

Em uma de suas correspondências enviadas ao Vaticano, Heschel é contundente em relação ao parágrafo sobre a conversão: “A mensagem que considera os judeus candidatos à conversão e que proclama que o destino do Judaísmo é o desaparecimento, soa abominável para os judeus de todo o mundo. E como tenho seguidamente declarado para as lideranças do Vaticano, se eu me deparar com a alternativa da conversão ou a morte, eu escolho Auschwitz, sem problema.”

Anos depois, em 1971, quando Heschel viaja à Itália para uma série de conferências, ele revê Paulo VI em uma audiência reservada. Em seu diário, Heschel deixa registrado: “Quando o Papa me viu ele sorriu alegremente, com a face radiante. Apertou a minha mão com ambas as mãos, gesto que repetiu algumas vezes durante o encontro. Disse que havia lido os meus livros e que os mesmos eram muito espirituais e belos, e que os católicos deveriam lê-los. Disse ainda para que eu continuasse a escrever mais livros, acrescentando que tinha conhecimento da importante influência que meus escritos exerciam sobre os jovens.”

Profetas como exemplo

O estudo da vida dos profetas bíblicos de Israel fez com que Heschel partilhasse o seu tempo espiritual com os necessitados e injustiçados. Um dia antes de sua morte, em meio ao frio e a neve, ele permaneceu de pé durante horas, em frente a uma prisão, aguardando a liberação de um companheiro ativista - um sacerdote católico. Era dezembro e Haschel tinha 65 anos.

Filho de rabino, Heschel nasceu em Varsóvia e estudou em uma Yeshiva (seminário rabínico). Obteve o grau de Doutor em Filosofia na Universidade de Berlim e completou sua formação religiosa em “Hochschule”, a academia alemã de altos estudos judaicos. Em 1940, junto com outros intelectuais judeus que fugiam do horror nazista, encontrou refúgio nos Estados Unidos. Seus esforços, porém, para resgatar seus familiares da Polônia foram infrutíferos. Perdeu a mãe viúva e as três irmãs no Holocausto (nos campos de morte de Treblinka e de Auschwitz). Nunca mais retornou à Polônia e à Alemanha, “pois cada pedra e cada árvore traziam lembranças”.

Professor de Ética Judaica e Misticismo, por mais de 25 anos, no “Jewish Theological Seminary of América”, em Nova York, ele visitou Israel em 1967, depois da Guerra dos Seis Dias. Ao retornar aos Estados Unidos ele publica o livro “Israel: an echo of Eternity” e emocionado confessa que não tinha ideia do quão intensamente sentia-se ligado a sua ancestralidade.

Valor do tempo

No conjunto de sua obra encontramos amplos temas recorrentes que tratam do significado da fé, da divindade das ações e da sacralidade do tempo. Ele afirmava que qualquer ação é um teste porque é nas ações que o homem toma consciência de seu poder de destruir ou de criar alegria. “O coração se revela no que o homem realiza, no que ele faz.”

Heschel também separa a piedade da fé, argumentando que existem atos de piedade sem fé, já que esta pressupõe uma ligação com Deus. Quanto ao aspecto sagrado do tempo, o sábado ou shabat seria a materialização do santificado, “pois este dia representa a eternidade dentro do tempo”. Para o filósofo, a fascinação do homem pela grandiosidade do espaço e pelos objetos que pode ver e tocar – aos quais intitula de realidade – o afasta da verdadeira conquista espiritual que só o entendimento da sublimidade do tempo é capaz de proporcionar: “O resultado desta nossa consciência dos objetos é nossa cegueira a toda a realidade que, de início, não se identifica como um objeto. Ela se mostra óbvia em nossa compreensão de tempo, que não sendo um objeto palpável, parece carecer de realidade.”

Entretanto, acentua Heschel, a própria Bíblia preocupa-se mais com o tempo do que com o espaço: "Ela vê o mundo na dimensão do tempo. Presta mais atenção às gerações, aos eventos do que aos países e às coisas; preocupa-se mais com a história do que com a geografia. O tempo é o coração da existência."