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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Chávez no Mercosul:mudança de rumo?


por Sheila Sacks


Hugo Chavez está vencendo a queda de braço com o Parlamento brasileiro e prepara-se para invadir o Mercosul. Após três anos de pressões, ironias e ameaças veladas do líder populista, a comissão do Senado validou o passaporte de ingresso da Venezuela chavista no bloco, com direito a voz, voto e veto nas questões básicas do grupo. Oficializa-se, portanto, nos trópicos do continente americano, um panorâmico palanque público para o venezuelano lançar os seus ataques verbais e propagandísticos contra Israel (país com o qual Chávez cortou relações diplomáticas no início de 2009) e, por acréscimo, promover a desavergonhada apologia ao urânio nuclear do Irã.

Depoimentos de ativistas de direitos humanos eram contrários ao ingresso

Voltando no tempo, em meados de 2009 um fato relevante passou a descoberto pela mídia nacional. Foi a 37ª reunião da Cúpula do Mercosul, ocorrida em Assunção (24 e 25 de julho) e boicotada por Hugo Chávez, inquieto com a demora do nada consta dos congressos do Brasil (Senado) e do Paraguai à investidura da Venezuela bolivariana como membro pleno do bloco, com direito a voto decisório nas questões que envolvem os países do Cone Sul. A aspiração de Chávez, ao solicitar o ingresso no Mercosul, em 2006, jamais foi a de ser um mero participante. Sua intenção era se alçar a membro pleno, para poder comandar ações e ter a visibilidade dos países-membros fundadores: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

Interessante é que quinze dias antes da Cúpula de Assunção, em uma dupla audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, dois cidadãos venezuelanos, Leopoldo López, economista formado em Harvard e duas vezes prefeito da cidade de Chacao, perto de Caracas, e o jornalista e ativista de direitos humanos, Gustavo Tovar-Arroyo, deram depoimentos contrários ao ingresso da Venezuela no Mercosul. López em seu testemunho instou os senadores presentes a visitarem a Venezuela (segundo ele o país mais perigoso do continente americano) para verificarem in loco a criminalização das vozes discordantes e a falta de democracia no país, situações que contrariam os princípios fundamentais da Carta do Mercosul.

Há mais de dez anos no poder (foi eleito em dezembro de 1998), Chávez também foi duramente criticado pela ONG Human Rights Watch (HRW), no ano passado. No relatório divulgado em Caracas, em setembro de 2008, a organização denunciou o acentuado e grave enfraquecimento das instituições democráticas na Venezuela, a intolerância política, a violação de direitos básicos, a intimidação e a censura nos meios de comunicação, o controle do Judiciário, a repressão aos opositores do regime e a discriminação em concursos públicos daqueles que não se perfilam com o governo. O documento de 267 páginas enfatiza a perda das liberdades civis ocorrida nessa década, com a limitação do acesso à informação e a elaboração de listas negras, utilizadas para excluir das estatais os servidores que não votem a favor do governo. Em resposta às críticas, Chaves expulsou do território venezuelano o representante da organização, José Miguel Vivanco.

Congresso americano considera Venezuela uma ameaça a países vizinhos

Convidado a participar de uma audiência do Senado,há poucos meses, o jurista Celso Lafer, que foi embaixador do Brasil junto à ONU e ministro das Relações Exteriores, também se posicionou contra o ingresso da Venezuela no Mercosul, assinalando que um dos problemas delicados da atual agenda internacional é justamente a possibilidade da entrada daquele país no bloco. Para Lafer, existe um conflito de concepções entre a Venezuela e os países do Mercosul, principalmente no que se refere à defesa da democracia e dos direitos humanos. Em outro campo, relatório do Congresso americano divulgado em julho deste ano revela a crescente infiltração do narcotráfico e o alto grau de corrupção no governo e exército venezuelanos. O documento constata o nascimento de um ameaçador narcoestado assentado na América Latina com graves conseqüências aos países vizinhos. De acordo ainda com o estudo, a Venezuela de Chávez vem se transformando no principal centro de distribuição de cocaína produzida na Colômbia e no maior porto de embarque da droga para os Estados Unidos (cerca de 17% da produção mundial do produto).

Liberman alerta para o crescimento de movimentos radicais na América do Sul

Confirmando as relações perigosas da Venezuela com o ilícito, armas fabricadas na Suécia e vendidas a Caracas foram encontradas com a guerrilha colombiana das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), expondo ainda mais a estreita ligação de Chávez com grupos armados que desafiam estados democráticos. Situação enfatizada pelo ministro Liberman, em sua passagem este ano pela Argentina, quando destacou, na entrevista ao jornal La Nación, a perigosa influência de Chávez no fortalecimento de movimentos radicais na América do Sul e a ameaça que tais grupos terroristas representam para o Brasil, Argentina e Paraguai, países da Tríplice Fronteira. Entretanto, certo que a Venezuela em breve ganhará o status de membro votante no Mercosul, Hugo Chávez já se articula com os dirigentes de Cuba, Nicarágua, Equador e Bolívia para criar uma espécie de partido político latino-americano para sustentar as suas posições no bloco.

Regimes autoritários em ascensão no Cone Sul

Analisando a situação da América Latina, o cientista político norte-americano Francis Fukuyama - que em seu livro “O Fim da História” (1992) afirma ser a democracia liberal o ponto final da história dos sistemas políticos, descartando o comunismo e a utopia socialista – acusa os dirigentes populistas de países como Venezuela, Equador e Bolívia de promoverem reformas constitucionais com o único objetivo de aumentarem o seu próprio poder, instituindo regimes autoritários. Falando no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, Fukuyama disse ser difícil imaginar uma sociedade moderna que não precise de algum tipo de democracia, porque esse sistema político é o que mantém o maior índice de variedade cultural e é compatível com a diversidade de idéias, ao contrário das teocracias muçulmanas e outros regimes fechados.

Também para o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004), a democracia é o governo das leis por excelência, opondo-se a qualquer forma autocrática de governo. Daí que a democracia pode se dar ao luxo de errar porque os procedimentos democráticos permitem corrigir os erros. O que não acontece hoje na autocracia eletiva da Venezuela, segundo Celso Lafer. Lá, não se aplicam as idéias de Bobbio que tem uma frase exemplar sobre a excelência da democracia sobre os outros regimes: “A grande vantagem da democracia é que ela não corta cabeças. Conta cabeças.”

Nesse sentido, a ratificação da Venezuela de Chávez no Mercosul, em breve com novos poderes, se inclui como mais um dado inquietante na atual geografia política do continente.