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quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Jornalistas em exílio forçado é “ferida aberta” na América Latina

/ Sheila Sacks /

Com apoio da Unesco, o relatório Vozes Deslocadas (Voces Desplazadas) - que faz um retrato da situação de risco que envolve profissionais de jornalismo na América Latina -  revela que 913 jornalistas, no período de 2018 a 2024, tiveram que sair de seus países de origem para resguardar sua segurança e a de seus familiares.  De acordo com os autores do estudo, “o número representa uma ferida aberta nas democracias latino-americanas” (LatAm Journalism Review, em 9/9/2025).

Para o coordenador da pesquisa, Óscar Mario Jiménez, da Universidade de Costa Rica, a saída forçada de jornalistas cria “um vácuo de notícias” que acaba afetando a própria democracia. A perseguição política, as ameaças do crime organizado e a corrupção de agentes paraestatais estão entre as principais causas dos deslocamentos desses profissionais. 

Venezuela lidera

Dos 15 países com jornalistas obrigados a cruzar as fronteiras, a Venezuela, com 477 profissionais, a Nicarágua (268)  e Cuba (98) representam 92% dos deslocamentos na região. Em seguida vem a Guatemala (19), Equador (13), Haiti e El Salvador (10, cada um). Por outro lado, sete países não tiveram registro de saída forçada de jornalistas no período: Brasil, Costa Rica, Belize, Panamá, República Dominicana, Porto Rico e Uruguai.

O relatório também destaca que de janeiro de 2018 a março de 2025 foram mortos 169 jornalistas na América Latina e Caribe, segundo o Observatório de Jornalistas Assassinados da UNESCO. Com 81 mortes, o México encabeça a lista de países com mais assassinatos, seguido pela Colômbia (22), Haiti (16), Brasil e Honduras (12, cada um) e Guatemala (11), entre outros com números menores.

É a face mais trágica da violência e representa perdas irreparáveis de vidas humanas e golpes diretos à liberdade de expressão. O estudo menciona as ações do narcotráfico que têm um efeito inibidor que afasta o jornalista de realizar reportagens investigativas ou críticas, gerando um aumento da autocensura e “zonas silenciadas” impostas pelo medo de ameaças e coerção.

Com 86 páginas e escrito em espanhol,  o trabalho divulgado em julho deste ano foi desenvolvido em conjunto com o Programa de Liberdade de Expressão e Direito à Informação da Universidade da Costa Rica; a Organização de Liberdade de Imprensa Fundamedios; e a Cátedra Unesco em Comunicação e Participação Cidadã da Universidade Diego Portales, no Chile. A Unesco apoiou o projeto através de seu programa voltado para o direito à informação e segurança dos jornalistas.

Dificuldades no exílio

Entre os países que mais recebem jornalistas em fuga estão a Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Espanha, Estados Unidos e Canadá. A pesquisa evidencia, porém, que os profissionais deslocados enfrentam muitas dificuldades como a discriminação e xenofobia na busca de emprego formal, impedimentos legais, dependência de financiamento internacional, perseguição transnacional e rupturas familiares que afetam seu bem estar físico e mental e muitas vezes os impedem de desenvolver um projeto de vida estável.

Em consequência, muitos abandonam o jornalismo gerando com isso “zonas de silêncio e desertos informativos”, tornando mais vulnerável o direito da liberdade de expressão na região, tanto individual quanto coletivo.

 A pesquisa identificou que para os jornalistas no exílio a profissão supera a noção tradicional de “produzir notícias”, constituindo-se em “uma forma de ativismo democrático, um mecanismo de conservação da memória histórica, uma maneira de lidar com o deslocamento e uma prática que permite se sentir plenamente seguro e livre”.

O grupo de pesquisadores realizou entrevistas virtuais, entre outubro e dezembro de 2024, com representantes de 20 organizações nacionais e internacionais de diversos países latino-americanos que trabalham com jornalistas em situação de deslocamento. Também ouviu representantes de associações de imprensa, como a do Uruguai, e a Federação Nacional de Jornalistas (Brasil), além de enviar questionários à organização Repórteres Sem Fronteiras e a rede Voces del Sur, na qual  faz parte a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).

Em paralelo, foi implementada uma enquete digital respondida por 98 jornalistas no exílio registrados nas instituições constantes no estudo. Apurou-se que 32 abandonaram a profissão e 64 seguiram exercendo o jornalismo, às vezes de forma independente, mas sem uma remuneração adequada e muitos de forma precária. 

Em relação às mulheres jornalistas obrigadas a trabalhar em exílio, a pesquisa constatou que a intimidação é mais cruel, inclusive utilizando estratégicas específicas como a exposição das imagens dos filhos em redes sociais como forma de pressão para que não publiquem críticas sobre o país de origem. Em algumas situações, as crianças se encontram longe da mãe sob a guarda de parentes.

Um bem comum

O estudo também abre um capítulo sobre o conceito de jornalismo, citando fontes da Unesco  que o classificam de “um bem comum na medida em que é de interesse público para as democracias que as pessoas tenham acesso à informação verificada”. Menciona ainda um dos informes da ONU sobre o direito à liberdade de expressão (2012), quando o então relator especial Frank LaRue afirma que o jornalista é quem “observa, descreve, documenta e analisa os acontecimentos, assim como documenta e analisa declarações políticas ou qualquer proposta que pode afetar à sociedade, com o propósito de sistematizar as informações e reunir  fatos e análises para informar aos setores ou ao conjunto da sociedade”.

Relembra igualmente que um ano antes o Comitê de Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social da ONU já tinha emitida a Observação Geral nº 34 sobre liberdade de opinião (artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) que assinala que na função jornalística “participam uma ampla variedade de pessoas, aí incluídos analistas e repórteres profissionais de dedicação exclusiva, autores de blogs e outros pessoas que publicam por sua própria conta na imprensa, internet e em outros meios de comunicação” (pág.22 do relatório).

Com base em várias resoluções e convenções aprovadas por organizações internacionais, o estudo subscreve os enfoques abordados e afirma que “o exercício  do jornalismo é uma prática indissociável ao direito à liberdade de expressão”.

Epicentro global do crime

Para a rede Voces Del Sur a expansão das estruturas do narcotráfico converteu a América Latina no “epicentro global do crime”. Em seu informe de 2023, a rede, que reúne 17 organizações da sociedade civil, assinala que as autoridades políticas são as que mais ferem a liberdade de expressão e da imprensa na região. “É possível observar um claro padrão de repressão estatal sistemática contra o jornalismo independente através de técnicas que incluem, entre outras, o uso político da pauta estatal, a propagação de discursos estigmatizantes, detenções arbitrárias, fabricação de processos judiciais, restrições de acesso à informação pública e a criação de leis que se contrapõem às normas internacionais e interamericanas de direitos humanos”.

No quadro demonstrativo sobre as causas responsáveis que forçam os jornalistas a procurar refúgio em outro país estão listados, pela ordem, as autoridades governamentais, o crime organizado, agentes paraestatais corruptos, poder judiciário, ministério público e as indústrias extrativas.

O relatório também ressalta que o sistema de mídia na América Latina é pouco competitivo e mantém vínculos não transparentes com setores dos poderes político e militar, assim como apresenta altos níveis de concentração de propriedade, publicidade e audiência. Na última década, a proliferação das redes sociais e as plataformas digitais, além de aumentar os desafios em termos de desinformação, também provocou uma redução de oferta no mercado de trabalho formal dos jornalistas, principalmente tratando-se de mídia impressa.


terça-feira, 7 de outubro de 2025

Sites governamentais desempenham papel importante na checagem de notícias online, aponta estudo

 / Sheila Sacks /

Relatório divulgado este ano pelo Reuters Institute, instituição britânica especializada no estudo do Jornalismo, mostra que mais da metade do público consultado (58%) afirma estar preocupada com o que é real e o que é falso quando se trata de notícias online.

Em sua 14ª edição, o Digital News Report 2025, disponível na Internet, coletou dados de quase 100 mil pessoas em 48 países de cinco continentes, em uma análise abrangente do contexto dos mercados digitais.  Quando perguntada, a  maioria dos entrevistados identificou duas fontes principais a recorrer quando existem dúvidas sobre a veracidade da informação: o canal de mídia jornalística em que confiam (38%) e os sites governamentais (35%). As redes sociais foram mencionadas por 14% dos entrevistados. 

Para a verificação de uma notícia específica, o maior percentual dos pesquisados (44%) respondeu que também recorre às fontes oficias representadas pelos sites governamentais. Em seguida, 35% disseram que acessam sites especializados e, logo abaixo, empatados em 26%, aparecem a Wikipedia e a mídia jornalística tradicional. 

O fato reforça a importância e a responsabilidade dos jornalistas que trabalham nas assessorias de comunicação social de órgãos públicos nas várias instâncias de governo. 

Influenciadores e políticos

O relatório de 170 páginas verificou que a preocupação com notícias falsas é maior entre o público dos Estados Unidos e da África (73%), e mais baixa na Europa Ocidental (46%). Quando se trata de fontes subjacentes de informações falsas ou enganosas, influenciadores e personalidades on-line são vistos como a maior ameaça em todo o mundo, juntamente com políticos nacionais (47%).

A preocupação com influenciadores é maior em países africanos como Nigéria (58%) e Quênia (59%), enquanto os políticos são considerados a maior ameaça nos Estados Unidos e Espanha (57%), e em grande parte da Europa Oriental, incluindo Sérvia (59%), Eslováquia (56%) e Hungria (54%).

A mostra revela ainda que pessoas mais jovens, na faixa de 18 a 34 anos, e entrevistados de 35 anos ou mais, tendem a confiar em iguais fontes de busca e checagem. A diferença estaria no fato de que as pessoas mais jovens são muito mais propensas a dizer que confiam em comentários de outros usuários, mídias sociais e chatbots de IA.

Tratando-se de redes sociais, 21% dos mais jovens as usariam contra 12% dos mais velhos. A diferença também ocorreria no que se refere aos chatbots de IA, nomeados por 13% da ala jovem e 7% pelas pessoas com mais de 35 anos.

Nível educacional

Dados da pesquisa também apontam que o nível educacional tem influência nas opções de ferramentas utilizadas na checagem das informações. Observou-se que os entrevistados com níveis mais baixos de educação formal (21%) estão muito menos propensos a dizer que recorreriam à mídia de notícias, fontes oficiais, mecanismos de busca ou verificador de fatos, ao contrário daqueles com níveis mais altos de escolaridade (33%).

Outro sinal relativamente positivo é que a confiança geral nas notícias (40%) permaneceu estável pelo terceiro ano consecutivo. A proporção de assinantes que pagam por notícias online se conservou em 18% em um conjunto de 20 países mais ricos – com a maioria ainda satisfeita com as ofertas gratuitas.

A análise da pesquisa foi divulgada pelo professor Rasmus Kleis Nielsen, professor de Jornalismo na Universidade de Copenhague e diretor do Reuters Institute entre 2018 e 2024 (‘How the public checks information it thinks might be wrong’, ou em tradução livre, 'Como o público verifica informações que podem estar erradas', em 17/6).

Menos TV como fonte de notícia

Sobre o Brasil, o relatório observa que após décadas do domínio da TV aberta, o mercado de mídia no país vem sendo desafiado pelas plataformas digitais e serviços de streaming. Em 2013, 75% dos brasileiros tinham a TV como fonte de notícias e em 2025 apenas 46%. A maioria dos brasileiros (78%) busca informações online e 17% pagam pelo serviço.

As notícias impressas também tiveram uma forte queda no período, de 50% para 10%, enquanto as mídias sociais evoluíram de 47% para 54%, sendo as principais fontes de notícias para 33% dos brasileiros. Tratando-se de dispositivos de acesso às notícias, a TV registrou uma queda consistente, de 81% para 52% , com o celular dominando em 82% ( em 2013 eram 23%).

Sobre o nível de confiança das notícias apresentadas nas diversas mídias houve uma queda de credibilidade no período de 2015 a 2025, de 62% para 42%, notadamente com as notícias on-line. O relatório assinala que 67% dos brasileiros se preocupam com as fake news.

No que diz respeito ao alcance de público, apesar da rede Globo estar à frente em termos de abrangência no noticiário de TV ( 41% ) e notícias online (32%), o grau de confiança é menor (55%) em relação a outras emissoras, como a SBT News (64%), rede Record (62%) e Band (59%). A rede Globo também apresenta a maior taxa dos que não confiam (29%).

No caso de notícias impressas, o jornal O Globo soma 54% de credibilidade, um pouco acima de O Estado de São Paulo (53%) e Folha de São Paulo (52%). Porém, o percentual dos que não confiam é maior tratando-se de O Globo (27%) em relação aos jornais paulistas, 23% e 26% respectivamente. 

O relatório destaca que o Brasil ocupa a 63ª posição entre 180 países no índice de liberdade de imprensa - World Press Freedom Index Score 2025 – da organização Repórteres Sem Fronteiras. Dos oito países do continente americano incluídos na pesquisa, o Brasil é superado apenas pelo Canadá (221ª) e Estados Unidos (57ª) , estando em melhor posição de que o Chile (69ª), Argentina (87ª), Colômbia (115ª), México (124ª) e Peru (130ª).