/ Sheila Sacks /
Com apoio da Unesco, o relatório Vozes
Deslocadas (Voces Desplazadas) - que faz um retrato da situação de risco que
envolve profissionais de jornalismo na América Latina - revela que 913 jornalistas, no período de
2018 a 2024, tiveram que sair de seus países de origem para resguardar sua
segurança e a de seus familiares. De
acordo com o estudo, esse número representa uma ferida aberta nas democracias
latino-americanas.
Em entrevista à revista digital LatAm
Journalism Review, do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da
Universidade do Texas, o coordenador da pesquisa, Óscar Mario Jiménez, da Universidade de Costa
Rica, afirma que a perseguição política
e as ameaças do crime organizado e de agentes corruptos são as causas
principais que provocam o deslocamento
desses profissionais (‘Se estima que más de 900 periodistas de América
Latina están rehaciendo sus vidas y empleos en el exilio’, em 9/9/25).
Venezuela
lidera
Dos 15 países com jornalistas
obrigados a cruzar as fronteiras, a Venezuela, com 477 profissionais, a Nicarágua
(268) e Cuba (98) representam 92% dos
deslocamentos na região. Em seguida vem a Guatemala (19), Equador (13), Haiti e
El Salvador (10, cada um). Por outro lado, sete países não tiveram registro de
saída forçada de jornalistas no período: Brasil, Costa Rica, Belize, Panamá,
República Dominicana, Porto Rico e Uruguai.
O relatório também destaca que de
janeiro de 2018 a março de 2025 foram mortos 169 jornalistas na América Latina
e Caribe, segundo o Observatório de Jornalistas Assassinados da UNESCO. Com 81
mortes, o México encabeça a lista de países com mais assassinatos, seguido pela
Colômbia (22), Haiti (16), Brasil e Honduras (12, cada um) e Guatemala (11),
entre outros com números menores.
É a face mais trágica da violência e
representa perdas irreparáveis de vidas humanas e golpes diretos à liberdade de
expressão. O estudo menciona as ações do narcotráfico que têm um efeito
inibidor que afasta o jornalista de realizar reportagens investigativas ou
críticas, gerando um aumento da autocensura e “zonas silenciadas” impostas pelo
medo de ameaças e coerção.
Com 86 páginas e escrito em
espanhol, o trabalho divulgado em julho deste ano foi desenvolvido em
conjunto com o Programa de Liberdade de Expressão e Direito à Informação da
Universidade da Costa Rica; a Organização de Liberdade de Imprensa Fundamedios;
e a Cátedra Unesco em Comunicação e Participação Cidadã da Universidade Diego
Portales, no Chile. A Unesco apoiou o projeto através de seu programa voltado
para o direito à informação e segurança dos jornalistas.
Dificuldades no exílio
Entre os países que mais recebem
jornalistas em fuga estão a Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Espanha,
Estados Unidos e Canadá. A pesquisa evidencia, porém, que os profissionais
deslocados enfrentam muitas dificuldades como a discriminação e xenofobia na
busca de emprego formal, impedimentos legais, dependência de financiamento
internacional, perseguição transnacional e rupturas familiares que afetam seu
bem estar físico e mental e muitas vezes os impedem de desenvolver um projeto
de vida estável.
Em consequência, muitos abandonam o
jornalismo gerando com isso “zonas de silêncio e desertos informativos”,
tornando mais vulnerável o direito da liberdade de expressão na região, tanto
individual quanto coletivo.
A pesquisa identificou que para os jornalistas
no exílio a profissão supera a noção tradicional de “produzir notícias”,
constituindo-se em “uma forma de ativismo democrático, um mecanismo de
conservação da memória histórica, uma maneira de lidar com o deslocamento e uma
prática que permite se sentir plenamente seguro e livre”.
O grupo de pesquisadores realizou
entrevistas virtuais, entre outubro e dezembro de 2024, com representantes de
20 organizações nacionais e internacionais de diversos países latino-americanos
que trabalham com jornalistas em situação de deslocamento. Também ouviu
representantes de associações de imprensa, como a do Uruguai, e a Federação
Nacional de Jornalistas (Brasil), além de enviar questionários à organização
Repórteres Sem Fronteiras e a rede Voces del Sur, na qual faz parte a Abraji (Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo).
Em paralelo, foi implementada uma
enquete digital respondida por 98 jornalistas no exílio registrados nas
instituições constantes no estudo. Apurou-se que 32 abandonaram a profissão e
64 seguiram exercendo o jornalismo, às vezes de forma independente, mas sem uma
remuneração adequada e muitos de forma precária.
Um
bem comum
O estudo também abre um capítulo sobre
o conceito de jornalismo, citando fontes da Unesco que o classificam de “um bem comum na medida
em que é de interesse público para as democracias que as pessoas tenham acesso
à informação verificada”. Cita um dos informes da ONU sobre o direito à
liberdade de expressão (2012), quando o então relator especial Frank LaRue
afirma que o jornalista é quem “observa, descreve, documenta e analisa os
acontecimentos, assim como documenta e analisa declarações políticas ou
qualquer proposta que pode afetar à sociedade, com o propósito de sistematizar
as informações e reunir fatos e análises
para informar aos setores ou ao conjunto da sociedade”.
Por sua vez, em 2011, o Comitê de
Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social da ONU já tinha emitida a
Observação Geral nº 34 sobre liberdade de opinião (artigo 19 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos) que assinala que na função jornalística
“participam uma ampla variedade de pessoas, aí incluídos analistas e repórteres
profissionais de dedicação exclusiva, autores de blogs e outros pessoas que
publicam por sua própria conta na imprensa, internet e em outros meios de
comunicação” (pág.22 do relatório).
Com base em várias resoluções e
convenções aprovadas por organizações internacionais, o estudo subscreve os
enfoques abordados e afirma que “o exercício
do jornalismo é uma prática indissociável ao direito à liberdade de
expressão”.
Epicentro
global do crime
Para a rede Voces Del Sur a expansão
das estruturas do narcotráfico converteu a América Latina no “epicentro global
do crime”. Em seu informe de 2023, a rede, que reúne 17 organizações da
sociedade civil, assinala que as autoridades políticas são as que mais ferem a
liberdade de expressão e da imprensa na região. “É possível observar um claro
padrão de repressão estatal sistemática contra o jornalismo independente
através de técnicas que incluem, entre outras, o uso político da pauta estatal,
a propagação de discursos estigmatizantes, detenções arbitrárias, fabricação de
processos judiciais, restrições de acesso à informação pública e a criação de
leis que se contrapõem às normas internacionais e interamericanas de direitos
humanos”.
No quadro demonstrativo sobre as
causas responsáveis que forçam os jornalistas a procurar refúgio em outro país
estão listados, pela ordem, as autoridades governamentais, o crime organizado,
agentes paraestatais corruptos, poder judiciário, ministério público e as
indústrias extrativas.
O relatório também ressalta que o sistema de mídia na América Latina é pouco competitivo e mantém vínculos não transparentes com setores dos poderes político e militar, assim como apresenta altos níveis de concentração de propriedade, publicidade e audiência. Na última década, a proliferação das redes sociais e as plataformas digitais, além de aumentar os desafios em termos de desinformação, também provocou uma redução de oferta no mercado de trabalho formal dos jornalistas, principalmente tratando-se de mídia impressa.




