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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Argentina reestrutura polícia para enfrentar organização criminosa

/ Sheila Sacks /

Em entrevista à plataforma DEF online, que trata de temas de segurança, defesa e geopolítica, o secretário de Combate ao Narcotráfico e ao Terrorismo da Argentina, Martín Verrier, anunciou que o alvo número um recém-criado Departamento Federal de Investigação (DFI) da Polícia Federal do país é a organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).

A matéria foi publicada em 14 de agosto, e dois dias depois repercutida pelo site de notícias Infobae, um dos mais acessados de língua espanhola, com 38 milhões de usuários (Martín Verrier: “El grupo criminal brasileño PCC representa un nivel de amenaza alto para Argentina y la región”).

A nova unidade foi apresentada em junho pelo presidente Milei em uma cerimônia especial, quando foi destacado que o órgão terá atuação semelhante ao FBI com o objetivo primordial de atingir “o cerne das organizações criminosas que tentam ganhar poder e dinheiro no país”.  

Ameaça de alta dimensão

Com mestrado em Estratégia e Geopolítica pela Escola Superior de Guerra do Exército Argentino e em Inteligência e Segurança Internacional pelo King's College London, Verrier atuou como secretário de estado adjunto para o Controle de Drogas da Argentina de 2015 a 2019. Ele explica que há uma década já havia no Cone Sul alguns grupos de crime organizado, mas não do porte do PCC “que tem entre 30 a 40 mil membros e mais de dois mil no exterior, incluindo em países como Estados Unidos, Espanha e Moçambique”.   Na sua avaliação, o nível de ameaça da organização é bastante alto, “de uma dimensão com a qual a região Sul não está acostumada”.

Verrier assinala que a arregimentação de membros para o crime organizado ocorre principalmente no sistema prisional e para conter o crescimento desses grupos foram feitas mudanças na estrutura do governo. Uma das medidas foi a transferência dos presos de alto risco das penitenciárias provinciais para o sistema prisional federal, agora sob a alçada do ministério da Segurança.  “O que acontecia antes é que as prisões eram usadas como bases de operações e estavam sob o controle do Ministério da Justiça, que não tem poderes de polícia. Hoje, temos o controle de todo encadeamento: desde o potencial chefe que pode estar tentando operar na prisão até o comerciante dos bairros”, relata Verrier.

Conexão com Hezbollah

Meses antes, em uma reportagem do La Nacion sobre a fuga de 400 comandantes do Hezbollah para a América do Sul, Verrier denunciou a conexão entre o grupo terrorista e o PCC  que estaria dando proteção aos seus membros presos no Brasil sob acusações de narcotráfico, lavagem de dinheiro e outros ilícitos, em troca de armamentos (Una seria amenaza’. La nueva estrategia de Hezbollah en América Latina tras su debilitamiento en Medio Oriente, em 24/5).

A notícia em questão foi divulgada em primeira mão pelo canal saudita al-Hadhat , em abril, e segundo um representante da embaixada argentina no Líbano, a decisão do descolamento dos 400 terroristas e suas famílias para a América do Sul (Tríplice Fronteira, Venezuela, Colômbia e Equador) partiu da liderança do grupo xiita, temendo futuras retaliações por parte da defesa israelense. Outro motivo seria o plano de desarmamento do grupo a ser implementado pelo governo libanês, que tem seu próprio exército.

Também a plataforma libanesa de notícias This is Beirut publicou uma ampla matéria, na época, informando sobre o envio de centenas de terroristas à América do Sul, destacando a conhecida simbiose entre o terrorismo e o crime organizado na região. Em 2008, na Colômbia, a prisão do chefe de uma rede de tráfico de cocaína, Chekri Harb ,já revelava o pagamento sistemático de um “imposto”  de 12% ao Hezbollah, afirmava o artigo assinado pelo jornalista Mário Chartouni (Mullahs Wearing Sombreros: Hezbollah in Latin America, em 21/5).

Citando relatório da agência Antidrogas DEA (Drug Enforcement Administration), o jornalista escreve que o Hezbollah estabeleceu relações comerciais com cartéis de drogas sul-americanos, notadamente La Oficina de Envigado, da Colômbia ( que substituiu o Cartel de Medellín, de Pablo Escobar), responsável pelo fornecimento de grandes quantidades de cocaína para os mercados europeu e americano. E prossegue: “Assim, o tráfico de cocaína tornou-se uma fonte de financiamento para o grupo, complementando o apoio financeiro de Teerã e garantindo-lhe crescente autonomia financeira. Essas atividades abrangem pelo menos doze países da região, de acordo com o relatório da RAND Corporation (instituição que fornece pesquisas e análises para agências de segurança do governo americano), de março de 2025, que documenta meticulosamente a presença do Hezbollah na Argentina, Panamá, Peru, Colômbia, Venezuela, Brasil, Curaçao, Bolívia, México, Honduras, Guatemala e Chile. As atividades incluem mineração ilegal na Venezuela e sofisticadas redes de lavagem de dinheiro no Panamá.”

Identificado como um site independente, “comprometido em perpetuar a tradição de liberdade de expressão e jornalismo de qualidade, pilares fundamentais da identidade libanesa”, This is Beirut agrega uma equipe de quase 100 profissionais entre jornalistas, tradutores, colunistas e colaboradores.

No ano passado, a Argentina selou um acordo de cooperação com a CIA para atuação nas Três Fronteiras visando o combate aos cartéis de droga e a sua conexão com grupos terroristas na arrecadação de fundos para recrutamento e atentados no Oriente Médio. Em agosto deste ano, o Paraguai celebrou acordo semelhante para implantação de uma base do FBI com foco no monitoramento da Tríplice Fronteira.  

Em paralelo, o governo dos Estados Unidos divulgou através de seu site oficial a recompensa de 10 milhões de dólares por informações que levem  aos mecanismos de financiamento do grupo na região.

Novo eixo

A matéria do La Nacion também destaca que o Hezbollah pode estar ampliando sua estrutura para o oeste da América do Sul, criando um novo eixo de atuação no Equador, Colômbia e Venezuela. No final de agosto, o governo dos Estados Unidos enviaram navios de guerra para o sul do Caribe, perto da costa da Venezuela, para conter o fluxo de  narcoterrorismo na região e, desde então, já realizou três ataques a embarcações que estariam transportando  drogas em direção aos EUA.  

Segundo especialistas entrevistados pela Fox News (em 7/9), o Hezbollah se tornou um dos principais financiadores e “lavadores” de dinheiro de grupos de narcotraficantes da Venezuela. “A parceria do Irã com Maduro permite que o Hezbollah opere naquele país sem problemas”, afirmaram, destacando que o Irã também tem investido bilhões de dólares na economia local.   

Outro fator que ajuda a encobrir as atividades ilícitas do Hezbollah, consoante aos especialistas, é a forte presença da comunidade xiita libanesa em países da América do Sul. O grupo terrorista se utiliza de laços familiares, a língua e as instituições comunitárias para aumentar e consolidar sua influência na região. Dessa forma, o Hezbollah pode interagir com cartéis locais, vender drogas e canalizar os lucros de volta para o Líbano por meio de esquemas elaborados para financiar atos terroristas no Oriente Médio (Cartel connection: Hezbollah and Iran exploit Maduro’s Venezuela for cocaine cash).

 Problema antigo

Em relação à Tríplice Fronteira, há três décadas a região é uma preocupação para o governo americano, mas somente agora, em razão do posicionamento político tanto do presidente do Paraguai, Santiago Peña, como do presidente da Argentina, Javier Milei, a vigilância terá o apoio explícito dos dois países. O alinhamento, inclusive, garantiu aos dois países taxas tarifárias de 10% aplicadas pelo governo Trump (o Brasil foi sancionado com taxas  de 50%).

Em várias reportagens ao longo do tempo órgãos da imprensa nacional e internacional têm citado nomes de integrantes de grupos terroristas indiciados e com mandados de prisão expedidos pelas justiças  norte-americana e argentina que transitam e operam nas cidades de Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina).

Alguns foram presos por tráfico de drogas, cumpriram a pena, foram soltos e desapareceram. Outros fugiram e mudaram os nomes. Atualmente são foragidos e com paradeiros ignorados.

Palavra de especialista

A presença do Hezbollah na América do Sul, segundo o agente da Polícia Federal e especialista de contraterrorismo, Christian Vianna de Azevedo, se iniciou no final da década de 1980, durante a guerra civil no Líbano, quando mais de 1 milhão de libaneses emigraram para países onde já existiam comunidades libanesas assentadas como as cidades da Tríplice Fronteira, Venezuela, Colômbia e Chile (também em São Paulo existe uma forte presença de libaneses).

Em entrevista on-line publicada pelo Instituto de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (IPLD), em 212/5/2024 (‘Financiamento do terrorismo e a influência do Hezbollah na América do Sul’), Vianna de Azevedo ressalta que integrantes do grupo xiita-libanês, criado em 1982, se infiltraram nas comunidades praticando atividades ilegais acobertadas por negócios aparentemente legais, como agências de turismo e outras atividades comerciais.  Desde então o grupo terrorista opera diversas redes criminosas e foram responsáveis por atos terroristas em diversas partes do mundo e em particular na Argentina, como o ataque à bomba à Embaixada de Israel em 1992 (29 mortos e 247 feridos) e à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) em 1994 (85 mortos e 300 feridos), os maiores já ocorridos na América Latina.

O especialista ressalta que o Irã é a maior fonte de recursos dos terroristas, representando 60% de seu capital. As outras fontes seriam o “tráfico de drogas, tráfico de armas, contrabando de migrantes, lavagem de dinheiro, e outros tipos de contrabando, além de doações de simpatizantes ao redor do mundo”. Até um banco legalmente estabelecido, o Lebanese Canadian Bank, sediado em Beirute com representação em Montreal, foi usado como braço financeiro do Hezbollah para lavagem de dinheiro associado ao tráfico de cocaína em investigação denunciada pelo governo americano em 2011.

No Brasil, há vários casos documentados sobre transações ilícitas de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro envolvendo financiadores do Hezbollah. Vianna de Azevedo cita Farouk Omairi, preso por alguns anos no Brasil por tráfico de cocaína e identificado por órgãos de inteligência argentina como um dos mentores do atentado à AMIA. Também Assad Ahmad Barakat, dono de cassino em Porto Iguaçu, na Argentina, investigado por lavagem de dinheiro. Preso duas vezes no Brasil, foi extraditado para o Paraguai.

Para o agente federal é preciso uma visão única, das áreas públicas e privadas, para o combate ao grupo terrorista que atua igualmente como uma organização criminosa transnacional. “É essencial que instituições como bancos, o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e órgãos públicos como a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Justiça Federal, a Receita Federal, o Banco Central do Brasil e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) tenham uma percepção unificada da ameaça que o grupo representa.”

Vianna de Azevedo explica que o Hezbollah não é reconhecido oficialmente no Brasil como grupo terrorista e isso atrapalha nas ações de enfrentamento. “A dificuldade aumenta porque o Hezbollah opera como uma organização híbrida, atuando tanto como grupo terrorista quanto como organização criminosa transnacional.“ O especialista assinala que seus membros aqui no país não se identificam como atuantes do grupo e são investigados por tráfico de drogas, tráfico de armas, lavagem de dinheiro, e falsidade ideológica.

“O dinheiro que eles arrecadam mesmo sendo por meio de crimes, usualmente acaba indo para um caixa comum no Líbano, o que complica a separação dos fundos destinados à política, assistência social ou atividades terroristas”, analisa o agente. “Então provar judicialmente é um grande desafio para as autoridades brasileiras e de qualquer país.”

Ferramentas tecnológicas

Acerca do financiamento ao terrorismo houve um avanço tecnológico e atualmente existe um novo cenário global apontado pelo GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional - Financial Action Task Force, FATF, em inglês).

Relatórios da organização enfatizam que as ameaças estão em constante evolução, impulsionadas pela tecnologia e pela mudança nas táticas utilizadas pelos grupos terroristas. A utilização de criptoativos ( moedas virtuais protegidas por criptografia), sistemas de pagamento peer-to-peer (sem a participação de bancos) e plataformas de crowdfunding (espaço on-line para arrecadação de fundos e doações) estão sendo cada vez mais utilizados para coletar e movimentar investimentos. As fontes de receitas também migraram para pequenos negócios e redes de caridade, por exemplo, financiando ataques de pequena escala executados por células descentralizadas e os chamados “lobos solitários”.

O recente atentado em um ponto de ônibus em Jerusalém, ocorrido em 8 de setembro, com 6 mortos e 22 feridos, é um exemplo dessas ações individualizadas. Dois palestinos armados, residentes na Cisjordânia, foram os autores do ataque e, como recompensa, suas famílias serão assistidas ao longo do tempo pelos fundos arrecadados pelos grupos terroristas.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

China em alta no Brasil apesar das críticas de organizações de direitos humanos

/ Sheila Sacks /

Pesquisa Quaest divulgada em 26/8/2025 mostra um aumento da percepção positiva dos brasileiros em relação à China. Houve uma alta de 11pontos em relação a fevereiro, evoluindo de 38% para 49% os percentuais dos que veem o país asiático de forma favorável. O levantamento também detalha que a China lidera a aprovação entre os mais pobres (45%).

A mídia nacional interpretou o tarifaço de Trump aos produtos brasileiros  como o principal fator de influência na sondagem, visto que a percepção negativa em relação aos Estados Unidos aumentou de 24% para 48%. Mas, entre os brasileiros que recebem mais de cinco salários mínimos, a avaliação positiva aos EUA lidera com 53%, aponta o mesmo levantamento. 

Vigilância e intimidação 

De acordo com o relatório anual da Anistia Internacional sobre os direitos humanos no mundo, disponibilizado em abril deste ano em sua plataforma on-line, o governo chinês continua a aplicar leis e políticas repressivas que restringem o direito à liberdade de expressão e à liberdade religiosa. Ao longo de 2024, defensores dos direitos humanos foram perseguidos, processados ​​e condenados a longas penas de prisão. Ativistas que viviam no exterior enfrentaram ameaças e intimidação. Líderes religiosos foram presos e novos regulamentos limitando ainda mais a liberdade de religião e crença entraram em vigor no país.

“Novos regulamentos foram emitidos pelo ministério de Segurança concedendo poderes adicionais aos agentes da lei para inspecionar dispositivos eletrônicos, incluindo os de visitantes estrangeiros na China”, afirma o documento, que destaca ainda outros pontos de assédio e constrangimento ocorrido ao longo do ano passado:

- estudantes chineses, alunos em universidades na Europa Ocidental e Estados Unidos, enfrentaram vigilância e censura on-line e off-line por parte de agentes estatais;

- defensores dos direitos humanos, incluindo ativistas, advogados e jornalistas continuaram a enfrentar intimidação, assédio, detenção arbitrária, tortura e maus-tratos;

- regulamentos religiosos sofreram revisões mais restritivas e entraram em vigor limitando ainda mais a liberdade de religião e crença;

– o acesso às informações sobre dados do Estado, incluindo a aplicação da pena de morte, ficou ainda mais rigoroso pelas revisões da Lei de Proteção de Segredos de Estado;

- o espaço para a liberdade de expressão, já altamente cerceado pela Lei de Segurança Nacional (NSL) e outras normas repressivas, diminuiu ainda mais;

- e em Hong Kong uma nova lei de segurança nacional restringiu ainda mais o espaço cívico e dezenas de ativistas pró-democracia foram condenados a duras penas de prisão.

Órgão jurídico da ONU faz alerta

O relatório da Anistia (Amnesty International), disponível na internet, expõe a situação de ativistas e advogados presos pelo regime enquanto atuavam em defesa de direitos civis e trabalhistas, de melhores condições de saúde para as mulheres, e de um espaço maior de discussões na sociedade. Em outubro do ano passado, a ativista He Fangmei  foi condenada a cinco anos e seis meses de prisão por sua campanha por vacinas seguras. Também condenadas a cinco e três anos e meio de prisão as ativistas do movimento #MeToo e de direitos trabalhistas, Sophia Huang Xueqin e Wang Jianbing, denunciadas por "incitação à subversão do poder estatal". Defensores dos direitos humanos, os advogados Li Yuhan e Chang Weiping, após cumprirem as penas prisionais e serem libertados, sofreram mis sanções e foram privados de seus “direitos políticos”.
A Anistia também nomeou a China como o “principal carrasco do mundo”, com milhares de pessoas sendo executadas, 40% relacionadas ao tráfico de drogas. Na ONU, a Relatora Especial sobre a Independência de Juízes e Advogados, Margaret Satterthwaite, expressou preocupação “sobre as restrições administrativas, criminalização e outros padrões de interferência no trabalho de advogados”. Para a especialista, “profissionais de direitos humanos que trabalham em casos delicados foram particularmente visados no país”.

Perseguição religiosa com prisões

Artigo publicado pela Catholic News Agency (CNA), em 21/10/2024, revelou a repressão a dez bispos católicos chineses por resistirem a se submeter ao controle estatal da Associação Católica Patriótica Chinesa (CPCA), uma organização criada em 1957, ligada ao Partido Comunista, e que na prática exerce vigilância e emite diretrizes para os religiosos. 
A informação está contida no relatório “Ten Persecuted Catholic Bishops in China”, de 17/10, assinado pela advogada de direitos humanos Nina Shea, diretora do Centro para a Liberdade Religiosa do Instituto Hudson, uma instituição americana de pesquisa sobre políticas publicas, relações internacionais, segurança e demais questões da atualidade. Ela escreve que sete sacerdotes estão presos, “sem o devido processo legal, alguns deles sob detenção contínua por anos ou décadas”, como o bispo Julius Jia Zhiguo, de 90 anos, cujo “crime” foi ter permitido que hinos fossem cantados em sua igreja sem a permissão do governo.
O documento de 56 páginas assinala que os bispos mencionados foram submetidos a “investigações policiais sem prazo determinado, banimentos de suas dioceses e outros impedimentos ao seu ministério episcopal, incluindo ameaças, vigilância, interrogatório e a chamada reeducação”. 

Lembrando ainda que a Organização Repórteres Sem Fronteiras classificou a China como "a maior prisão de jornalistas do mundo". Em seu relatório divulgado em maio, a ONG internacional denuncia que atualmente 109 jornalistas estão presos em condições severas na China, inclusive a jornalista Zhang Zhan que divulgou a epidemia de Covid-19. Ela cumpriu pena de quatro anos de prisão e voltou a ser detida em agosto do ano passado. No ranking mundial de liberdade de imprensa, a China este ano ocupa a 178ª posição entre 180 países como um dos piores lugares para jornalistas trabalharem e viverem, atrás apenas da Coreia do Norte e Eritreia. Caiu seis posições em relação a 2024. 

O estudo relata que “para silenciar os jornalistas, o governo chinês acusa-os de ‘espionagem’ e ‘subversão’ ou de ‘incitar tumulto e provocar desordem’, três crimes cuja definição é tão vaga que podem ser invocados praticamente em qualquer contexto”. A mídia é controlada pelo Estado que “multiplica os obstáculos ao trabalho dos correspondentes estrangeiros”. Todos os dias o departamento de Propaganda do Partido Comunista envia aos meios de comunicação uma lista detalhada de tópicos a serem destacados e outra de tópicos cuja abordagem é proibida, sob pena de sanções. 

A China é a segunda maior economia do mundo, depois dos Estados Unidos e o terceiro país em extensão territorial, só perdendo para a Rússia e o Canadá.  Uma em cada cinco pessoas no mundo (1,4 bilhão) vive na China que até 2023 era o país mais populoso. Atualmente cabe à Índia esse título. O salário mínimo mensal é de 378 dólares (2.740 yens chineses ou em torno de 2 mil reais), de acordo com o site China Briefing. 


domingo, 31 de agosto de 2025

Sem palavras - uma aventura urbana

 / Sheila Sacks /

Pela segunda vez dona Edite repete o longo trajeto de Copacabana ao bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para finalizar a promessa assumida pelo pronto restabelecimento de uma prima muito querida. A doação seria para uma creche mantida por uma dessas organizações sociais de ajuda ao próximo. Entorpecida pela viagem, os pensamentos vagam perdidos entre as fronteiras do consciente e do sono. Sorri ao lembrar a garotada da creche. Tem 70 anos e o físico esbelto a faz esquecer a idade.

Um tempo depois o táxi diminui a velocidade e estaciona em uma rua que parece desabitada. A via silenciosa avança por dezenas de metros até uma pequena praça de terra batida. − A senhora trouxe o endereço? − pergunta o taxista olhando ao redor. − Estou na dúvida sobre a rua, diz. Dona Edite abre a bolsa e procura o papel onde anotou o endereço. Tinha esquecido em cima da cômoda. − É aqui mesmo – afirma, reconhecendo o muro em frente. Desce do táxi. No céu, as nuvens se acumulam.

Encimado por pontudos cacos de vidros, o muro de cimento é um desafio a possíveis intrusos. Dona Edite toca a campainha já antevendo o abraço afetuoso da risonha atendente. Enquanto espera, alça a vista para o horizonte recortado pela admirável estrada suspensa do teleférico que se estende sobre o conjunto de favelas do Alemão, uma cidadela fortificada e inexpugnável.

Postada na calçada, pressiona mais uma vez o botão vermelho instalado na frente do muro. Finalmente o portão é aberto e um sujeito de boca murcha, cabelos ralos e com as roupas sujas de massa e tinta assoma à soleira. − A creche está em obra, madame − apressa-se em explicar. E emenda: − Só volta a funcionar na semana que vem.

Dona Edite sente que a bexiga fraca dá sinais preocupantes. De supetão ela cruza o portão sem dar tempo ao homem de impedi-la. − Preciso usar o toalete. É rapidinho e sei o caminho − vai dizendo enquanto aperta o passo. Mas logo sente uma pressão violenta na nuca e se dá conta de que a arrastam para o interior da casa. É largada em frente a uma enorme cratera escancarada no centro da sala. Operários de torsos nus empilham sacos de entulho trazidos do fundo do buraco que se alonga em um túnel por debaixo da casa, em direção, talvez, à agência bancária instalada a poucos metros da esquina. Outros cavam a terra dura e escura. Atônita, dona Edite percebe alguns homens fardados. Um deles se aproxima, o rosto oculto por uma touca de malha. Das fendas do gorro, dois olhos cinzentos e frios a avaliam. − Deje la bolsa acá − ordena. O portunhol range na voz cavernosa do gigante. Ele usa coturnos emborrachados e colete à prova de bala. Aponta o banheiro. –Adelante, vá.

No estreito banheiro dona Edite se vê sem os documentos, dinheiro, celular, relógio e sua inseparável sombrinha. Ela se abandona desolada sobre o tampo do vaso sanitário. As horas passam impassíveis às garras da aflição. De repente escuta uma sirene. Sons confusos e amortecidos pelas paredes vão ganhando contornos estranhos em sua cabeça. Pessoas discutem, as vozes alteradas pela agitação e a raiva. Escuta xingamentos, gritos, urros de dor e o que parece ser uma movimentação de luta. Súbito, a porta é aberta com um estrondo de ferragens partidas e um homem é empurrado violentamente banheiro  adentro. Ele bate com a cabeça no piso de ladrilhos. – Traidor! − berra o gigante

− Não faça isso, colombiano, tenha dó! − implora o homem com a voz engasgada. Em resposta, rajadas de tiros de fuzil desfolham o seu peito que se rompe como um vulcão em erupção. Uma larva gosmenta tinge o morto de vermelho. – Ninguna palabra, mujer − ordena o justiceiro mirando a mulher petrificada. A touca suja de sangue é jogada ao chão e com a mão faz um sinal inesperado para segui-lo. Dona Edite percebe que as pernas estão imobilizadas pelo terror. O gigante de botas se afasta e a velha senhora ganha fôlego e  se joga sobressaltada em direção à porta tropeçando sobre o corpo do morto que estranhamente se contorce em convulsões.

Desorientada, ela se depara com a carnificina, o vestido florido empapado de sangue. Atravessa a sala onde corpos se espalham pelo chão. Gritos e batidas vindos do buraco agora tampado por pedras a confundem. Uma nuvem de calor e fumaça se eleva do chão e ela se desespera. O homem corre para o fundo do quintal e com precisão e agilidade afasta os móveis empilhados que escondem uma portinhola que se abre para o terreno baldio de uma rua próxima. Fora da casa, dona Edite por um instante tem a impressão de que a cabeça vai explodir. Repentinamente, ouve o ronco ruidoso de uma motocicleta que vem em sua direção. Travada pelo medo, as pernas não obedecem. O colombiano acelera em seus calcanhares. – Detrás − bufa o desconhecido em fuga, respingando saliva e indicando a garupa da motocicleta. A velha senhora é arrancada do solo por um braço pesado como um trator. Ela se agarra à cintura do homenzarrão enquanto a máquina saracoteia e ganha velocidade.

−Fogo! − berra alguém no fundo da rua. Dona Edite escuta, atrás de si, duas violentas explosões e o estrondo de uma casa vindo abaixo. Um furacão de poeira move-se velozmente sobre a rua. O colombiano faz uma manobra arriscada e por alguns segundos a mulher avista os escombros da creche e um carro da polícia encobertos pelas chamas e rolos de fumaça. Já na avenida principal, ziguezagueando entre os carros, o bandido se lança para o Complexo do Alemão, em um itinerário de incerteza e medo.

Alguns metros acima da entrada da favela, em um pequeno descampado, a velha senhora avista novamente o incêndio lá embaixo e a confusão que se formou. Pessoas deixando as suas casas, outras acorrendo ao local, curiosos já amontoados comentando a tragédia. Uma viatura dos bombeiros atravessa a rua na contramão com a sirene ligada. Em frente aos escombros da creche, voluntários tentam se aproximar do carro da polícia ainda em chamas.

Equilibrando-se na garupa, dona Edite sente uma fisgada no peito quando o bandido se desvia de uma carroça de bananas e a moto ameaça derrapar. A boca está seca, a cabeça lateja e os braços e pernas entorpecidos. Olha para o alto e percebe que os bondinhos do teleférico estão parados. Passageiros contrariados saltam nas estações.

− Tá pegando fogo lá na creche da rua das margaridas − grita o garoto para a jovem na janela que solta uma gargalhada estridente. O colombiano acelera e se envereda pelas ruelas íngremes, desviando-se de restos de comida, latas de cerveja, garrafas e pneus. Cachorros soltos, porcos e gatos famintos perambulam por entre roupas estendidas em varais improvisados em meio a criançada que corre pelas vielas sem ter o que fazer. A poucos metros do topo da favela, uma saraivada de tiros interrompe a corrida. A moto rodopia, estatela-se no barro e seus ocupantes rolam pelo matagal. 

Dona Edite tem a queda amortecida pela copa de uma árvore e cai sobre os restos de um colchão imundo misturado ao lixo acumulado. Tenta se levantar a procura de um lugar para se esconder. Um corpo desconhecido cai ao seu lado, vísceras à mostra. O sangue espirra em seu rosto e ela fecha os olhos espavorida.  A cabeça dói e um fiapo de líquido quente escorre pela face e pescoço. Nas lajes, a céu aberto, um pelotão de bandidos varre o espaço com uma torrente de disparos.

Desesperada, ela se arrasta até um beco próximo. Espreme-se em um vão entre alguns casebres e deixa o corpo exaurido cair ao chão. Os pés inchados dentro dos tênis sujos de lama a enojam. O chão barrento exala forte fedor de urina. Seus lábios balbuciam a oração dos aflitos até o cansaço, o medo e a desesperança silenciá-los. Adormece e quando novamente abre os olhos uma garoa umedece os barracos e luzes mortiças de algumas lâmpadas pintam a escuridão. Levanta-se com dificuldade, sob o olhar curioso de um menino que parece observá-la há algum tempo. – Como eu chego à estação do teleférico? − pergunta, sentindo um fragmento de esperança. O vestido de fundo branco salpicado de flores coloridas tornou-se um trapo amarfanhado e dona Edite tem consciência de sua figura patética.  O garoto de pouco mais de sete anos chupa os dedos e leva alguns instantes até apontar a localização da estação, um pouco abaixo de onde estavam.

    No interior da cabine a velha senhora e o mendigo enrolado em uma manta são os únicos passageiros. O temor não a impede de embarcar. O relógio da estação marca quase dez horas da noite e o bondinho completa seu último trajeto até a avenida. A gigantesca favela parece blefar em um falso silêncio, espreguiçada como um paquiderme em vigília. A viagem se estende por intermináveis quinze minutos até a linha férrea. Desorientada, ela avista um táxi e solta um grito esganiçado. Joga-se no assento do carro e, antes mesmo de dizer para aonde vai, põe-se a soluçar. O taxista nota as condições deploráveis da mulher e aguarda alguns segundos. Indaga o que aconteceu. Dona Edite respira fundo. – Sem palavras, responde com um fio de voz.  Finalmente consegue articular um pedido de socorro. − Me leva para a casa, pelo amor de Deus! Em seguida, ainda aterrorizada pelos acontecimentos se afunda no estofado e leva a mão trêmula ao coração. − Copacabana, por favor.  

Publicado na antologia "Contos e Poemas Noturnos", vol.8 (agosto de 2025), da plataforma digital Revista Conexão Literária, do editor Ademir Pascale.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A loja dos bibelôs encantados - Recordando papai

/ Sheila Sacks /

https://www.revistariototal.com.br/pais/sheilasacks.htm

Sentada no banquinho de madeira nos fundos da loja, eu olhava fascinada papai desenhar as letras e os números nas páginas do livro-caixa encadernado com uma brochura azul marinho. As palavras eram escritas metricamente em cima das linhas, com arabescos que as tornavam mágicas. Os valores numéricos também pareciam desenhos ornamentais que mexiam com minha imaginação.     

O pequeno escritório, protegido por um balcão arredondado onde ficava a imponente máquina registradora de metal, abrigava uma escrivaninha com tampo de vidro, um armário, a pequena geladeira e duas cadeiras, uma delas maior, de madeira clara envernizada, com apoio para os braços. Sobre a mesa ficavam o bloco de notas e o telefone preto que a primeira chamada papai já atendia de forma elegante com a voz singular que todos elogiavam.  – Casa Carlos, boa tarde!

A mesa também comportava um pote bojudo de couro no qual estavam três lápis pretos de meticulosas pontas finas e duas borrachas parecendo goma de mascar, em suas cores laranja e azul, e mais o xodó de papai, o estojo de camurça marrom forrado em seu interior de seda bege, onde era guardada a caneta-tinteiro Parker usada para assinar documentos e recibos.

A loja tinha duas portas altas geminadas na entrada e uma vitrine na qual eram exibidos panelas e faqueiros na parte de baixo, e nas prateleiras superiores a “prata da casa”: jogos de pratos, xícaras e sopeiras de porcelana inglesa; copos e taças de cristal lapidado da Boêmia; vasos coloridos de vidro Murano; e, para o meu prazer infinito, os incríveis bibelôs de porcelana alemã de Dresden, explicava papai, que reproduziam cenas galantes do tempo de Luiz XV, quando os casais dançavam em jardins monumentais, as damas de vestidos rendados e seus pares de jaquetas e coletes bordados.

No lado direito da loja onde armazenavam os materiais de construção, as gavetinhas com os mais variados tamanhos de pregos me mantinham fascinada. Observava “seu Silva” examinando com rigorosa atenção o comprimento e as dimensões certas de cada preguinho conforme os pedidos dos clientes e depois pesá-los na pequena balança de pratos de metal, um deles para colocar a mercadoria e no outro os pesos de diversos tamanhos.   

No balcão do lado esquerdo, papai comandava as vendas das louças, sempre gentil no atendimento e distinto em suas camisas sociais de algodão de cores claras e calças de linho. Os meus amados bibelôs, ao lado de outros enfeites de porcelana e cristal, ficavam expostos aleatoriamente nas compridas prateleiras no centro da loja. Ao fundo, no galpão, as folhas de madeira ficavam empilhadas por tamanho e espessura, e uma enorme balança de ferro servia para pesar os volumosos sacos de cimento e outros materiais ensacados.

Meu irmão passava todo o tempo nessa área da loja. Ele acompanhava o encarregado subir nas pilhas de madeira, escolher a que considerava mais adequada e depois descer para serrar na medida certa. E, compenetrado, ajudava a arrumar os sacos menores de pó de gesso que ficavam a alguns metros de um pequeno banheiro.  

Algumas tardes, depois da escola, nós visitávamos papai na loja. Essa atividade contava como um passeio especial, apesar de morarmos na mesma rua. Tínhamos que atravessar a avenida principal onde passavam o bonde e as lotações para alcançar a loja que ficava próxima à estação de trem.

Adorávamos esse passeio e na nossa chegada papai largava o que estava fazendo e nos abraçava, sem esquecer, porém, de apontar para o enorme relógio redondo na parede, perto do galpão. − Crianças, quando marcar 4 horas, vocês se despedem e voltam para casa. Combinado?

Balançávamos as cabeças concordando com o veredito, já esperando a recomendação que viria logo em seguida. − Com as mãozinhas comportadas. Não mexam em nada, dizia, olhando para nós com aqueles olhos cor do céu por trás dos óculos redondos de aros dourados.

Mas, diante da formosura e graciosidade dos bibelôs, essa assertiva era difícil de cumprir. Só os olhos não davam conta de tanta doçura. Desejava tê-los para mim, tocá-los, acariciá-los em seus contornos emoldurados por flores, passarinhos e querubins.

Uma noite, na volta para a casa, papai trouxe uma caixinha de música de madeira escura e a colocou sobre o buffet. Após o jantar, abriu com cuidado a tampa e uma mimosa bailarina de saiote rosa surgiu em meio a um forro de cetim escarlate e um espelho redondo ao fundo. Papai girou várias vezes a pequena manivela dando corda como fazia todas as manhãs no relógio que usava no pulso. Como por encanto a bailarina começou a girar suavemente  sob um fundo musical que muitos anos depois descobri ser uma canção de ninar do compositor Johannes Brahms.

A meu pedido, papai acomodou a caixinha de música aberta, com a bailarina à vista, ao lado dos três bibelôs que ele trouxera para a casa devido a pequenos defeitos. O conjunto ficou ainda mais destacado na majestosa cristaleira da sala, um móvel alto de madeira maciça com ornamentos entalhados e portas de vidro. Lá estavam o aparelho de porcelana de doze pratos e xícaras hexagonais com bordas prateadas, e os copos, taças e cálices com desenhos em alto relevo usados na páscoa e ano novo judaicos.

Uma noite acordei com um som que, a princípio, pensei vir da rua. Pulei da cama e pela janela do quarto vi uma lua cheia, redonda e brilhante no céu noturno. Percebi então que o som vinha da caixinha de música e corri para a sala. Uma claridade prateada iluminava a cristaleira onde a pequena bailarina dançava rodeada pelos alegres bibelôs. Estes se movimentavam graciosamente ao som da música e as damas e os cavalheiros de louça pareciam felizes com a novidade. Permaneci extasiada com aquela visão e me senti transportada para uma esfera mágica além do real.

De manhã contei ao papai o que aconteceu à noite. Estava radiante e ofegante. Ele me ouviu em silêncio e logo achou uma explicação, com sua voz mansa e pausada. A corda deve ter se soltado e a trepidação fez os bibelôs se mexerem, argumentou. – Mais tarde dou uma olhadinha na engrenagem, disse, balançando minhas trancinhas arrumadas para ida à escola.   

Os anos se passaram, trocamos de casa e de bairro, o mobiliário antigo substituído por outro mais contemporâneo. Uma tarde, vendo papai em sua poltrona preferida, absorto nas páginas de um livro, me lembrei dos bibelôs que dançavam e compreendi como papai foi sábio e generoso. Isso porque em nenhum momento ele questionou minha história, opinando que poderia ser fruto da minha imaginação ou simplesmente um sonho. Nem tampouco considerou que fosse um engano ou uma bobagem de criança.  Eu tinha oito anos, era uma menina tagarela e inquieta. Papai ouviu o que eu disse e atencioso procurou uma resposta dentro da lógica de um adulto.

Apesar disso, durante um bom tempo eu tive a grata sensação de que os bibelôs encantados, de maneira extraordinária e inexplicável, talvez sentindo o imenso amor que eu tinha por eles, ganharam um breve sopro de vida e, sob a noite enluarada, dançaram radiantes na cristaleira. Dois anos depois, para meu desalento, os três ornamentos não resistiram às mãos pesadas dos carregadores do caminhão de mudanças. Papai ainda tentou colar as pequenas figuras, mas sem sucesso porque alguns pedacinhos se perderam.

Restou solitária a dançarina na caixinha de música que sobreviveu mais alguns anos até que a ferrugem corroeu o mecanismo da corda e os pinos que a sustentavam. Da loja, enfim, não sobrou nenhum bibelô para dar vida à nova cristaleira, agora de madeira em tom vinho e embutida na parede.  

Porém, afortunadamente, a sensação de magia, acompanhada da alegria e entusiasmo tão próprios do mundo infantil, não se perdeu nos intrincados ramais do tempo. Muitas noites, quando o vagão da memória me leva à singular figura de meu pai e à extraordinária loja de bibelôs encantados, fecho os olhos devagar e me entrego, em devaneio, a esses felizes instantes de fantasia, saudade e gratidão. 



domingo, 27 de julho de 2025

AK-47: um ícone sinistro a serviço do crime e do terror

 / Sheila Sacks /

No livro Gomorra, sobre a máfia napolitana, o jornalista italiano Roberto Saviano reserva um capítulo de 31 páginas para dissertar sobre o fuzil russo Avtomat Kalasnikova, mais conhecido como AK-47. Diz que a arma matou mais do que a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, do que o vírus HIV, mais do que todos os atentados terroristas e todos os terremotos. Assinala que dezenas de países usaram o fuzil em guerras civis na Argélia, Angola, Bósnia, Burundi, Camboja, Chechênia, Colômbia, Congo, Haiti, Caxemira, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.

Saviano lembra os dois presidentes que morreram sob o fogo do Kalashnikov: o chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, no palácio presidencial de La Moneda, em Santiago, no golpe militar que instaurou o regime ditatorial do general Augusto Pinochet; e o egípcio Anwar Sadat, em 6 de outubro de 1981, no Cairo, durante uma parada militar, três anos depois de ter assinado dois importantes acordos de paz com Israel, em Camp David. Mortes que se somam a de outros políticos, como a do general italiano Dalla Chiesa, que foi prefeito de Palermo, assassinado em 1982, e a do ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu, fuzilado em 1989. “Mortes de excelência” que segundo Saviano garantiram “uma verdadeira publicidade histórica” ao AK-47.

Concebido pelo general Mikhail Kalashnikov, que morreu em 2013, aos 94 anos, e incorporado ao exército soviético em 1947, o AK-47 é o fuzil mais popular da terra e estima-se que 250 mil pessoas são mortas anualmente baleadas pela arma. Em 2017, para comemorar os 70 anos de sua invenção, foi inaugurada em uma praça de Moscou, em 19 de setembro, a estátua de Kalashnikov empunhando o célebre fuzil que, há décadas, é um dos maiores sucessos russos de exportação, igualando-se a Coca-Cola, talvez a marca americana mais conhecida do mundo.

Símbolo do liberalismo

Com mais de 200 milhões de exemplares espalhados pelo mundo, segundo Michael Hodges, autor de AK47: A História da Arma do Povo, o fuzil está nas bandeiras de Moçambique e do grupo terrorista xiita Hezbollah; nos brasões do Timor Leste e do Zimbábue; em centenas de emblemas de grupos políticos e nos vídeos de Osama Bin Laden. “É um símbolo do liberalismo, um ícone absoluto”, abaliza Saviano. E explica: “A invenção desta arma permitiu a todos os grupos de poder e de micropoder ter um instrumento militar. Ninguém, depois da AK-47 pode dizer que foi vencido porque não tinha acesso a armas.”

Se na África Ocidental, o fuzil russo pode custar 50 dólares, no Iêmen é possível encontrar um AK-47 usado de segunda e terceira mãos por seis dólares. É o que afirma Saviano em seu livro. “O kalashnikov permite que todos se tornem soldados, todos, até crianças esquálidas, e transformou em generais das Forças Armadas pessoas que não conseguiriam guiar um rebanho de ovelhas”, ironiza.

O jornalista revela que as drogas sustentam as compras dos AK-47 por grupos armados. Sejam de guerrilheiros, terroristas, paramilitares, milícias ou traficantes. “Coca em troca de armas”, enfatiza. Destaca o exemplo do ETA, o grupo separatista basco considerado terrorista pela União Europeia, que enviava cocaína através de seus militantes para receber, em troca, armas da Camorra, a máfia napolitana. Não somente kalashnikov, mas explosivos e lança-mísseis. Conhecido pelo seu histórico de quatro décadas de violência e mortes, resultando em mais de 800 vítimas fatais, o ETA obtinha a cocaína através de seus contatos com grupos guerrilheiros colombianos.

Queda do comunismo ajudou

Com a queda da Cortina de Ferro – expressão usada por Winston Churchill, em 1946, para definir as áreas na Europa sob o domínio da União Soviética – e o fim da chamada Guerra Fria, países como Romênia, Polônia e a ex-Iugoslávia ficaram com os seus arsenais abarrotados de armas russas e precisando se reestruturar. O desmantelamento da União Soviética em 1991, precedido pela queda do Muro de Berlim, em 1989, criou um novo cenário geopolítico na Europa e abriu as fronteiras para o mercado ilícito das armas, dirigido principalmente para grupos políticos armados da África, América Latina e do próprio Balcãs, como a Bósnia e a Sérvia.

De acordo com Saviano, a máfia napolitana pagava informalmente a dirigentes comunistas em decadência a manutenção desses depósitos de armas estocadas nos próprios países de origem. Dependendo da conveniência, essas armas eram retiradas e levadas para a Itália para serem negociadas. “Os fuzis vinham empilhados em caminhões militares que ostentavam o símbolo da OTAN ( Organização do Tratado do Atlântico Norte). Eram grandes carretas roubadas das garagens americanas da base da OTAN, em Nápoles, que graças àquela inscrição, podiam rodar tranquilamente pela Itália.”

Antes, na década de 1980, durante o conflito entre a Argentina e a Inglaterra na Ilha das Malvinas, no Atlântico Sul, a Camorra também entrou no circuito para a venda informal de armas para a defesa argentina. O jornalista afirma que devido ao isolamento econômico do país à época, “ninguém teria lhe vendido oficialmente”. A chamada Guerra das Malvinas durou dois meses e foi um fiasco para a máfia. “Poucos tiros, poucos mortos, pouco consumo.” Ele conta que no mesmo dia que foi decretado o fim do conflito, o serviço secreto inglês interceptou um telefonema intercontinental entre a Argentina e uma localidade em Nápoles. “Aqui a guerra acabou”, falavam da Argentina. “Não se preocupe, haverá outras...”, responderam do outro lado do Atlântico.

Saviano é categórico ao ressaltar o poder de fogo dos clãs da região da Campânia, no sul da Itália, e de sua capital Nápoles e arredores, nas décadas de 1980 e 1990: “As guerras, da América do Sul aos Bálcãs, são feitas com as garras das famílias da Campânia. Em Nápoles, a Camorra já fez 3.600 mortos nos últimos 30 anos”, afirma no livro.

Fuzis com a marginalidade

No Rio de Janeiro, em junho de 2017, a polícia civil carioca descobriu no terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro uma grande leva de armamentos escondidos em aquecedores de piscinas dentro de containers vindos de Miami. Foram apreendidos 45 fuzis AK-47 que iriam abastecer os traficantes nas favelas, no valor de R$ 1,6 milhão. Na ocasião a secretaria de Segurança informou que desde o início do anho  250 fuzis já tinham sido retirados das mãos de bandidos. “No Rio de Janeiro, traficante só tira onda de macho por conta disso, de ter o fuzil. A hora que tiver uma pistola, ele vai dar meia volta”, comentou o titular da Segurança na ocasião, delegado Roberto Sá, repetindo com outras palavras as observações de Saviano acerca da portabilidade do AK-47.

Pelas contas da polícia do Rio de Janeiro, cada fuzil vendido aos traficantes no mercado negro teria um custo de 20 mil reais (em torno de 6,6 mil dólares, valor de 2017). Saviano escreve em Gomorra que o valor de um AK-47 está diretamente ligado à violação dos direitos humanos. Quanto mais barato o fuzil, pior são as condições de civilidade e cidadania.

Preocupado com a disseminação dessas armas de alta letalidade, contrabandeadas principalmente do Paraguai e da Bolívia, o governo brasileiro sancionou a Lei Nº 13.497 (26/10/2017) que torna crime hediondo, com prisão imediata e sem direito à fiança, o porte ilegal de fuzis e outros armamentos restritos às áreas militares. Em junho deste ano (2025), projeto aprovado pela Câmara dos Deputados prevê o aumento da pena para até 12 anos de reclusão no caso de porte de arma de fogo de uso proibido, como os fuzis. 

Mas, o poder da Justiça, as leis e suas penalidades não parecem amedrontar os criminosos. Reportagem recente sobre a ascensão  das organizações criminosas em ambientes urbanos no Rio de Janeiro, publicada no jornal O Globo (13/7/2025), afirma que, ao contrário de outros países, o fuzil por aqui “circula livremente em áreas sobre o domínio do crime” e “virou garantia para controlar comunidades inteiras”.

 Vida sob escolta

Desde a publicação de Gomorra (2006), que desvenda o crime organizado em Nápoles, Roberto Saviano vive sob escolta policial, devido a ameaças de morte da Camorra. Em julho deste ano, a agência britânica Reuters divulgou que juízes do Tribunal de Apelações de Roma mantiveram a condenação de um ex-chefão da máfia e de seu advogado por ameaças ao jornalista.

Em outro livro, Zero Zero Zero (2013), que aponta as rotas e o tráfico de cocaína no mundo, ele registra uma dedicatória especial, logo na primeira página: “Dedico este livro a todos os carebinieri da minha escolta. Às 38 mil horas vividas juntos. E àquelas que ainda viveremos. Onde quer que seja.”

O título da obra de 400 páginas se refere à gíria pela qual os traficantes europeus se referem à cocaína de melhor qualidade. O Brasil mereceu o capítulo intitulado Caldeirão do Diabo que trata das facções criminosas brasileiras e seu histórico. Escreve Saviano: “No Brasil, a prisão é muitas vezes um escritório a partir do qual os chefes dos maiores grupos criminosos podem comandar os próprios homens dentro e fora da penitenciária sem que a sua liderança seja questionada.”

Mas, quase duas décadas depois do seu livro de estreia – que foi transportado para as telas de cinema e depois transformado em série de TV com cinco temporadas – Saviano ainda passa a maior parte de seu tempo recluso, embora escrevendo nos meios de comunicação (El Pais, The Guardian, New York Times, L’Espresso) e publicando livros, como o romance La Paranza dei Bambini (O bando dos meninos), de 2016, sobre a deliquência juvenil em Nápoles; Vieni via con me (A máquina da lama: histórias da Itália de hoje - 2012); Sono ancora vivo (Ainda estou vivo -2021) ; Falcone: Los valientes están solos (edição espanhola -2024), entre outros.

Ele diz lamentar que Gomorra, escrito quando tinha 26 anos, tenha afetado drasticamente a vida de sua família, que teve de sair de Nápoles. “Minha mãe sofreu um infarto e me senti culpado. Estava vivendo nos Estados Unidos e vim correndo porque de alguma forma me senti como se lhe tivesse dado o golpe no coração (...). Com o meu irmão, a quem amo demais, acontece o mesmo. Ele diz que está comigo, mas sei que está cansado de aguentar tanto.”

As confissões foram feitas ao jornalista Daniel Verdú, do El Pais (29.08.2017), em um parque na cidade de Bolonha, sob os olhares atentos de cinco carabiniere. Apesar do enorme sucesso internacional – Gomorra vendeu 10 milhões de exemplares em mais de 50 idiomas - Saviano admite que hoje não teria escrito o livro da mesma maneira. Jurado de morte pela Camorra, ele tem pesadelos e passa por períodos de depressão. “Eu os desafiei, estava convencido de ser invencível.”

No entanto, um ano antes desse desabafo, Saviano  escreveu La Paranza dei Bambini  que retorna ao tema da máfia napolitana, focando em um grupo de adolescentes da Camorra, em Nápoles, que circulava pelas ruas e bairros em motos, atirando com seus fuzis AK-47, amedrontando e controlando seus moradores. Um enredo que desagradou à população e aos empresários da cidade que acusaram o jornalista de criminalizar Nápoles e espalhar para o mundo uma imagem negativa do lugar.

Porém, o livro se baseia em fatos reais, a partir de uma investigação desenvolvida pelos promotores antimáfia Henry Woodstock e Francesco De Falco e que culminou, em 2015, com a prisão de dezenas de pessoas. Assim, mesmo sob protestos e ameaças, Saviano não tem como excluir o AK-47 de sua literatura. O que lembra uma situação semelhante tendo o Rio de Janeiro como cenário. Desta vez atingindo o premiado cineasta José Padilha. Seus filmes Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 – Agora o inimigo é outro (2010) que tratam das relações promíscuas entre policiais, traficantes e políticos, e onde não faltam AK-47, o levaram a sair do Brasil, em 2015, depois de se sentir ameaçado. Ele reside, desde então, em Los Angeles, na Califórnia.  

Arma de atentados e guerrilha

O AK-47 também atraiu a atenção de dois jornalistas americanos que se debruçaram sobre o tema: Larry Kahaner, que publicou em 2006 o livro AK-47, a Arma Que Transformou a Guerra (na edição em português), e CJ Chivers, ex-correspondente de guerra. Seu livro The Gun: The AK-47 and the Evolution of War é de 2010.

 Escrevendo para o jornal The New York Times, Chivers lembra que o AK-47 é pivô de crimes espetaculares que impactaram o mundo. “A lista remonta há décadas: a morte dos atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; a tomada de uma escola em Beslan, Rússia, em 2004; os ataques em Mumbai, Índia, em 2008; o ataque a um shopping center em Nairóbi”, destaca o jornalista. Ele afirma que a disseminação do fuzil mudou a guerra moderna. “À medida que os governos comunistas repassavam os kalashnikovs para aliados e terceiros, os rifles assumiram um papel inesperado: niveladores de campo de batalha.”

Entre os fatos históricos nos quais o AK-47 teve papel preponderante estão a Guerra do Vietnã, com os guerrilheiros vietcongues utilizando a arma na selva contra os americanos. “Guerrilheiros armados com kalashnikovs lutavam de igual para igual contra soldados de infantaria de uma superpotência”, assinala Chivers. Por sua vez, nos anos 1980, forças americanas e paquistanesas treinavam combatentes islâmicos a usar o AK-47 na guerra para expulsar as forças soviéticas do Afeganistão.

No campo do terrorismo moderno, coube ao AK-47 inaugurar “a era do terrorismo kalashnikov”.  Chievers cita como exemplo o atentado à Vila Olímpica de Munique onde estava a equipe israelense, assistido globalmente, ao vivo, pela TV. Alerta que os governos têm feito pouco para deter a proliferação desse tipo de arma, que escapou do controle das autoridades constituídas. “O kalasnikov deixou de ser uma ferramenta do estado ou da ideologia comunista. Criado para fortalecer estados autoritários, o AK-47 ganhou credibilidade fora da lei se transformando em símbolo de revolta, contragolpe, crime e jihad islâmico”, conclui.

O exemplo mais recente do uso do AK-47 foi o ataque do grupo terrorista Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, com 1.200 mortos e 251 sequestrados levados como reféns para Gaza. A plataforma de notícias CNN entrevistou especialistas em armamentos que identificaram o fuzil como uma das armas utilizadas no atentado (‘Foguetes caseiros e AK-47 modificados: uma visão do arsenal mortal do Hamas’, em 14.10.2023).

“Letal, fácil de usar e de encontrar, é o fuzil de assalto preferido dos grupos militantes” afirma a reportagem sobre o AK-47. Especialistas observam que muitos fuzis foram modificados, incluindo a remoção de equipamentos para tornar as armas mais leves e fáceis de usar.

A CNN também destaca um vídeo publicado no canal do Hamas no Telegram, onde terroristas invadem um posto militar israelense, a maioria portando fuzis AK-47. Segundo a matéria, eles disparam contra um tanque israelense e mantêm civis sob a mira de armas.