/ Sheila Sacks /
O e-mail dizia pouco: “Cara Aniela. Foi bom revê-la. Me perdoe os dez
anos de silêncio. Lino.” O homem de tez morena, cabelo grisalho e porte ereto
fechou o notebook. A mensagem o remetia a um tempo que teimava em voltar nos
momentos mais inoportunos. Em poucas horas estaria com a família no casamento
da sobrinha, na aprazível costa espanhola. Tão diferente e tão longe daquelas
matas molhadas e do chão de barro de Xambioá. Uma vila sertaneja, nos idos de
1974, que na semana do carnaval mudava de humor e de roupa, em animados bailes
e blocos de rua.
E foi naqueles dias perdidos no tempo que o tenente Lino conheceu Aniela,
menina de 17 anos, franzina, cabelo escorrido, rosto de anjo, gestos delicados
e voz baixa. Ela chegara à localidade para passar o carnaval com os avós, o seu
Zé e dona Maria, donos do armazém-bar que vendia fiado para o povo da região.
Tenente Lino tinha 30 anos e estava noivo de uma professora no Rio de Janeiro.
Mas ficou fascinado por Aniela logo que a viu. Os avós tentaram escondê-la, mas
o tenente ia ao armazém várias vezes ao dia e se convidou para jantar na casa
do seu Zé na terça-feira de carnaval.
Por sua vez Aniela também não conseguia esconder a atração que sentia
pelo tenente. Conversavam no balcão do armazém e na varanda da casa sob os
olhares preocupados de seu Zé e dona Maria. Finda a semana, Aniela partiu e o
tenente deixou com ela um número de telefone. Esperou semanas, meses, pela
ligação. Entretanto, isso jamais ocorreu.
2
Em Jerusalém, a noite quente e abafada levou Aniela a abrir a janela. Em
pé olhava o céu escuro, sem estrelas, que ameaçava desabar em sua cabeça. Há
pouco havia recebido a mensagem do general em meio a um repentino mal-estar. A
ansiedade que vez ou outra comprimia seu peito como uma dura couraça mostrou as
garras e a fez ofegar. Lembrou do evento, há quase dez anos, no início dos anos
2000, e do militar empertigado a sua frente, meia-idade, rosto magro, com
sulcos profundos na testa e na face. A intensidade de seu olhar não deixava
dúvidas quanto a descoberta. Por um momento Aniela sentiu vergonha dos cabelos
tingidos e da maquiagem esmerada. Em um gesto mecânico de cumprimento suas mãos
se tocaram e antes que alguma conversa pudesse ser iniciada ela pediu licença e
se afastou.
3
No amplo salão da representação diplomática o grupo de militares se
despedia de seus anfitriões após alguns dias de visita à feira de armamentos em
Tel Aviv. O chefe da delegação, um austero coronel do exército, mostrava-se
impaciente desde que a assessora de um dos adidos sul-americanos presentes à
recepção passou por ele apressada. A mulher esplêndida, de pernas bem torneadas
e vestido justo orientava os garçons, do outro lado da sala. Pouco antes, ao
ser apresentada ao coronel, ela pareceu constrangida e não conversou.
Apartou-se do grupo e desapareceu por um das portas do salão. Agora o militar
percebia que ela vinha em sua direção e estranhamente a vista começou a
embaçar. Embaralhando sentidos e sentimentos se deu conta que Aniela sorria,
rosto de menina, pés soltos nas gastas sandálias japonesas, cabelos escorridos
em um mal-amarrado rabo de cavalo. Respirou fundo e sentiu um fio de suor
resvalar pela nuca. Bem perto, seus corpos quase se tocando, ela estendeu um
papelzinho dobrado. Surpreso, magoado, desamparado, sussurrou pra si mesmo:
Aniela do Araguaia.
4
Estudar no colégio Pedro II deu a Aniela Rubinstein uma outra visão do
mundo. Filha de uma chapeleira da comunidade judaica do Rio, ela e o irmão
viviam meio que apartados de sua origem. Dona Eva, mãe de Aniela, evitava falar
do passado. Dos pais, avós, irmãos e tios reduzidos a cinzas nos crematórios da
Polônia. Escondida no porão da casa da professora de ginásio, Eva sobreviveu
por milagre e pode dar à filha o nome de quem a acolheu. Anos depois, no navio
norueguês que a transportou para a América do Sul, ela conheceu um violinista
do campo de Dachau. Desembarcaram no Rio, casaram e foram morar no Estácio. Mas
a tuberculose a deixou viúva e com duas crianças para alimentar.
Assim, quando Wilsão pediu a Aniela para que o ajudasse naquela missão,
a resposta veio imediata. Sua idolatria juvenil por Che e Fidel e o gosto pela
aventura levaram Aniela a mentir. Contou para a mãe que iria trabalhar como
monitora em uma colônia de férias em Sacra Família e partiu para a região do
Araguaia.
5
Sob o codinome Selma foi apresentada ao seu Zé e dona Maria, donos de
uma vendinha naquele fim de mundo. Trazia um documento em linguagem cifrada
para ser entregue ao grupo que lutava na selva. O trato era ficar alguns dias
na casa do comerciante, aguardando a resposta, e depois sumir. Porém o
tenente bonitão do destacamento da região não arredava o pé das redondezas do
balcão. Puxava conversa com Selma a troco de nada. Ao seu Zé e dona Maria elogiou
a beleza e a doçura de Selma e como ela falava bem e entendia de tudo. A casa ficava nos fundos do armazém e quando
no início da noite a figura alta, fardada, assomou na varanda, todos engoliram
em seco. Seu Zé se apressou a apresentar o rapaz barbudo que comia com eles
como um sobrinho da capital que estava de passagem pelo local. De bom humor, o
tenente cumprimentou o estranho e pediu licença para participar da janta. Pegou
sem cerimônia o banquinho na cozinha e se sentou ao lado de Selma. Nestas
alturas, os dois já estavam apaixonados.
Em cinco dias veio a resposta e Selma foi embora. Horas antes, o tenente
deu um número de telefone e pediu para que Selma ligasse. Estaria no Rio em
seis meses para uma licença. Selma prometeu telefonar. Na despedida chorou ao
abraçar seu Zé e dona Maria. Semanas depois, em conversa com Wilsão em uma rua
da Tijuca, vem a saber da morte do casal de Xambioá e do rapaz barbudo, encontrados amordaçado e com tiros na cabeça. Atordoado, Wilsão diz que vai
fugir do país e aconselha Aniela a fazer o mesmo.
6
A ordem superior era poupar os adolescentes. O tenente Lino pediu a seu
informante para que seguisse os passos de Aniela no Rio. Após trinta dias,
chegou o primeiro relatório: “A pessoa em questão pertence a um grupo de judeus
que usam camisas de brim azul e se reúnem em uma casa de Botafogo. Fiz amizade
com o vigia e soube que são comunas, mas não atuam no Brasil. Todo ano um
punhado deles vai embora para a Palestina, onde vivem e trabalham em fazendas
coletivas iguais às da Cortina de Ferro. A pessoa investigada também vai deixar
o país. Em anexo estão as fotocópias dos passaportes dos comunas que viajam no meio do ano.”
O tenente leu duas vezes o documento com carimbo de confidencial antes de
guardá-lo na pasta. Sentia-se traído pelos sentimentos. No fundo da alma tinha
a convicção de que Aniela o amava e que iria telefonar. Esperava vê-la no Rio e
talvez, com o tempo, abrir o jogo. Contar que sabia de sua missão e de sua
falsa identidade. Explicar a bobagem em que se meteu por pura infantilidade.
Os dois meses seguintes foram difíceis para o tenente. Infectado pela
malária teve que ser hospitalizado em Belém. De volta ao destacamento, um novo
relatório com carimbo de urgente já o esperava. Leu avidamente o seu conteúdo,
da primeira à última palavra: “Pegamos o Wilsão... e finalizando, os comunas
judeus estão de partida. Preciso de uma diretriz. Quais são as ordens,
tenente?”.
No dia seguinte, após uma noite mal dormida, o tenente despachava a
resposta: “Trabalho encerrado.”
7
O casamento da sobrinha na igrejinha medieval fez a esposa do general
chorar. Padrinhos dos noivos, o enlace pegou a família de surpresa. Estudante
de artes em Paris, a jovem namorava um colega espanhol. A gravidez inesperada
acelerou a decisão de ambos de casar e conhecer a Malásia.
Depois da cerimônia, o general seguiu para a boate onde os recém-casados
foram saudados por amigos alegres e poliglotas. O som vibrante da música
empurrou os convidados para o centro da pista. O general, no canto do bar,
imaginou Aniela lendo o email, depois de tanto tempo. Estaria viva? Talvez em
Tel Aviv, Jerusalém ou qualquer outra cidade daquela terra estrangeira. Sentiu
uma vontade incontrolável de fumar. Na parafernália eletrônica de cores e
ruídos ao seu redor, o general só ouvia mesmo o grito da angústia e da solidão
que o mantinham cativo em suas teias satânicas. Pôs uma pastilha de hortelã na
boca e saiu da boate. Lá dentro, a música do final da década de 1970 explodia
estridente, repetindo-se em um coro de vozes cambaleantes: Please don’t go,
don’t go, don’t go away, please don’t go, don’t go...
8
Amanhecia em Jerusalém e Aniela entrou na sala de trabalho entulhada de
folhetos, cartazes e recortes de jornais. Na parede, a folhinha estampava o ano
2009 em relevo. Estava sozinha e resolveu responder ao e-mail do general,
recebido há mais de um mês: “Certos encontros, ainda que breves, sobrevivem ao
tempo e a lógica. Tive a certeza disso na festa do consulado. Compreendi que a
minha vida sempre esteve em suas mãos, general Lino Sotero. No Araguaia, quando
não me delatou. No Rio, quando me deixou partir. Em Tel Aviv, quando me
viu e permaneceu em silêncio. De alguma forma, general, devo a você a
minha história.” Yafa Navon, da ONG World No Wars – Mundo sem Guerras.
P.S. Ainda guardo o número de telefone. Que bobagem!
Conto vencedor do Concurso literário Moacyr Scliar 2009, do Centro Cultural Mordechai Anilevitch/RJ, e publicado no livro Escritos Revelados.