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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Araguaia, meu amor - Da série Histórias que Mamãe Contava

/ Sheila Sacks /



O e-mail dizia pouco: “Cara Aniela. Foi bom revê-la. Me perdoe os dez anos de silêncio. Lino.” O homem de tez morena, cabelo grisalho e porte ereto fechou o notebook. A mensagem o remetia a um tempo que teimava em voltar nos momentos mais inoportunos. Em poucas horas estaria com a família no casamento da sobrinha, na aprazível costa espanhola. Tão diferente e tão longe daquelas matas molhadas e do chão de barro de Xambioá. Uma vila sertaneja, nos idos de 1974, que na semana do carnaval mudava de humor e de roupa, em animados bailes e blocos de rua.

 

E foi naqueles dias perdidos no tempo que o tenente Lino conheceu Aniela, menina de 17 anos, franzina, cabelo escorrido, rosto de anjo, gestos delicados e voz baixa. Ela chegara à localidade para passar o carnaval com os avós, o seu Zé e dona Maria, donos do armazém-bar que vendia fiado para o povo da região. Tenente Lino tinha 30 anos e estava noivo de uma professora no Rio de Janeiro. Mas ficou fascinado por Aniela logo que a viu. Os avós tentaram escondê-la, mas o tenente ia ao armazém várias vezes ao dia e se convidou para jantar na casa do seu Zé na terça-feira de carnaval.

 

Por sua vez Aniela também não conseguia esconder a atração que sentia pelo tenente. Conversavam no balcão do armazém e na varanda da casa sob os olhares preocupados de seu Zé e dona Maria. Finda a semana, Aniela partiu e o tenente deixou com ela um número de telefone. Esperou semanas, meses, pela ligação. Entretanto, isso jamais ocorreu.

 

2

 

Em Jerusalém, a noite quente e abafada levou Aniela a abrir a janela. Em pé olhava o céu escuro, sem estrelas, que ameaçava desabar em sua cabeça. Há pouco havia recebido a mensagem do general em meio a um repentino mal-estar. A ansiedade que vez ou outra comprimia seu peito como uma dura couraça mostrou as garras e a fez ofegar. Lembrou do evento, há quase dez anos, no início dos anos 2000, e do militar empertigado a sua frente, meia-idade, rosto magro, com sulcos profundos na testa e na face. A intensidade de seu olhar não deixava dúvidas quanto a descoberta. Por um momento Aniela sentiu vergonha dos cabelos tingidos e da maquiagem esmerada. Em um gesto mecânico de cumprimento suas mãos se tocaram e antes que alguma conversa pudesse ser iniciada ela pediu licença e se afastou.


3

 

No amplo salão da representação diplomática o grupo de militares se despedia de seus anfitriões após alguns dias de visita à feira de armamentos em Tel Aviv. O chefe da delegação, um austero coronel do exército, mostrava-se impaciente desde que a assessora de um dos adidos sul-americanos presentes à recepção passou por ele apressada. A mulher esplêndida, de pernas bem torneadas e vestido justo orientava os garçons, do outro lado da sala. Pouco antes, ao ser apresentada ao coronel, ela pareceu constrangida e não conversou. Apartou-se do grupo e desapareceu por um das portas do salão. Agora o militar percebia que ela vinha em sua direção e estranhamente a vista começou a embaçar. Embaralhando sentidos e sentimentos se deu conta que Aniela sorria, rosto de menina, pés soltos nas gastas sandálias japonesas, cabelos escorridos em um mal-amarrado rabo de cavalo. Respirou fundo e sentiu um fio de suor resvalar pela nuca. Bem perto, seus corpos quase se tocando, ela estendeu um papelzinho dobrado. Surpreso, magoado, desamparado, sussurrou pra si mesmo: Aniela do Araguaia.


4

 


Estudar no colégio Pedro II deu a Aniela Rubinstein uma outra visão do mundo. Filha de uma chapeleira da comunidade judaica do Rio, ela e o irmão viviam meio que apartados de sua origem. Dona Eva, mãe de Aniela, evitava falar do passado. Dos pais, avós, irmãos e tios reduzidos a cinzas nos crematórios da Polônia. Escondida no porão da casa da professora de ginásio, Eva sobreviveu por milagre e pode dar à filha o nome de quem a acolheu. Anos depois, no navio norueguês que a transportou para a América do Sul, ela conheceu um violinista do campo de Dachau. Desembarcaram no Rio, casaram e foram morar no Estácio. Mas a tuberculose a deixou viúva e com duas crianças para alimentar.

 

Assim, quando Wilsão pediu a Aniela para que o ajudasse naquela missão, a resposta veio imediata. Sua idolatria juvenil por Che e Fidel e o gosto pela aventura levaram Aniela a mentir. Contou para a mãe que iria trabalhar como monitora em uma colônia de férias em Sacra Família e partiu para a região do Araguaia.

 

5

 

Sob o codinome Selma foi apresentada ao seu Zé e dona Maria, donos de uma vendinha naquele fim de mundo. Trazia um documento em linguagem cifrada para ser entregue ao grupo que lutava na selva. O trato era ficar alguns dias na casa do comerciante, aguardando a resposta, e depois sumir. Porém o tenente bonitão do destacamento da região não arredava o pé das redondezas do balcão. Puxava conversa com Selma a troco de nada. Ao seu Zé e dona Maria elogiou a beleza e a doçura de Selma e como ela falava bem e entendia de tudo.  A casa ficava nos fundos do armazém e quando no início da noite a figura alta, fardada, assomou na varanda, todos engoliram em seco. Seu Zé se apressou a apresentar o rapaz barbudo que comia com eles como um sobrinho da capital que estava de passagem pelo local. De bom humor, o tenente cumprimentou o estranho e pediu licença para participar da janta. Pegou sem cerimônia o banquinho na cozinha e se sentou ao lado de Selma. Nestas alturas, os dois já estavam apaixonados.

 


Em cinco dias veio a resposta e Selma foi embora. Horas antes, o tenente deu um número de telefone e pediu para que Selma ligasse. Estaria no Rio em seis meses para uma licença. Selma prometeu telefonar. Na despedida chorou ao abraçar seu Zé e dona Maria. Semanas depois, em conversa com Wilsão em uma rua da Tijuca, vem a saber da morte do casal de Xambioá e do rapaz barbudo, encontrados amordaçado e com tiros na cabeça. Atordoado, Wilsão diz que vai fugir do país e aconselha Aniela a fazer o mesmo.


6

 

A ordem superior era poupar os adolescentes. O tenente Lino pediu a seu informante para que seguisse os passos de Aniela no Rio. Após trinta dias, chegou o primeiro relatório: “A pessoa em questão pertence a um grupo de judeus que usam camisas de brim azul e se reúnem em uma casa de Botafogo. Fiz amizade com o vigia e soube que são comunas, mas não atuam no Brasil. Todo ano um punhado deles vai embora para a Palestina, onde vivem e trabalham em fazendas coletivas iguais às da Cortina de Ferro. A pessoa investigada também vai deixar o país. Em anexo estão as fotocópias dos passaportes dos comunas que viajam no meio do ano.”

 

O tenente leu duas vezes o documento com carimbo de confidencial antes de guardá-lo na pasta. Sentia-se traído pelos sentimentos. No fundo da alma tinha a convicção de que Aniela o amava e que iria telefonar. Esperava vê-la no Rio e talvez, com o tempo, abrir o jogo. Contar que sabia de sua missão e de sua falsa identidade. Explicar a bobagem em que se meteu por pura infantilidade.

 

Os dois meses seguintes foram difíceis para o tenente. Infectado pela malária teve que ser hospitalizado em Belém. De volta ao destacamento, um novo relatório com carimbo de urgente já o esperava. Leu avidamente o seu conteúdo, da primeira à última palavra: “Pegamos o Wilsão... e finalizando, os comunas judeus estão de partida. Preciso de uma diretriz. Quais são as ordens, tenente?”.

No dia seguinte, após uma noite mal dormida, o tenente despachava a resposta: “Trabalho encerrado.”


7

 


O casamento da sobrinha na igrejinha medieval fez a esposa do general chorar. Padrinhos dos noivos, o enlace pegou a família de surpresa. Estudante de artes em Paris, a jovem namorava um colega espanhol. A gravidez inesperada acelerou a decisão de ambos de casar e conhecer a Malásia.

 

Depois da cerimônia, o general seguiu para a boate onde os recém-casados foram saudados por amigos alegres e poliglotas. O som vibrante da música empurrou os convidados para o centro da pista. O general, no canto do bar, imaginou Aniela lendo o email, depois de tanto tempo. Estaria viva? Talvez em Tel Aviv, Jerusalém ou qualquer outra cidade daquela terra estrangeira. Sentiu uma vontade incontrolável de fumar. Na parafernália eletrônica de cores e ruídos ao seu redor, o general só ouvia mesmo o grito da angústia e da solidão que o mantinham cativo em suas teias satânicas. Pôs uma pastilha de hortelã na boca e saiu da boate. Lá dentro, a música do final da década de 1970 explodia estridente, repetindo-se em um coro de vozes cambaleantes: Please don’t go, don’t go, don’t go away, please don’t go, don’t go...


8

 

Amanhecia em Jerusalém e Aniela entrou na sala de trabalho entulhada de folhetos, cartazes e recortes de jornais. Na parede, a folhinha estampava o ano 2009 em relevo. Estava sozinha e resolveu responder ao e-mail do general, recebido há mais de um mês: “Certos encontros, ainda que breves, sobrevivem ao tempo e a lógica. Tive a certeza disso na festa do consulado. Compreendi que a minha vida sempre esteve em suas mãos, general Lino Sotero. No Araguaia, quando não me delatou. No Rio, quando me deixou partir. Em Tel Aviv, quando me viu e permaneceu em silêncio. De alguma forma, general, devo a você a minha história.” Yafa Navon, da ONG World No Wars – Mundo sem Guerras.
P.S. Ainda guardo o número de telefone. Que bobagem!


Conto vencedor do Concurso literário Moacyr Scliar 2009, do Centro Cultural Mordechai Anilevitch/RJ, e publicado no livro Escritos Revelados.