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quinta-feira, 25 de julho de 2019

A batalha do Museu Judaico de Lisboa

Sheila Sacks /

 
Há três anos, por ocasião da cerimônia da formalização da criação do Museu Judaico de Lisboa, a historiadora, escritora e fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos, Ester Muznik, assinalou a força simbólica do local onde seria construído o museu: o Largo de São Miguel, no bairro de Alfama, o mais tradicional e antigo de Lisboa.

Isso porque bem perto ficava a chamada Judiaria de Alfama, um dos quatro guetos antigos de Lisboa, fundada em 1373 e da qual constava uma sinagoga.

Porém, o que parecia em setembro de 2016 uma empreitada cultural e histórica das mais tranquilas e harmoniosas, dados os vários acordos de colaboração - incluindo investimentos de recursos e doações de entidades internacionais - e o apoio oficial da Câmara Municipal de Lisboa (CML), em pouco tempo se mostrou uma proposição difícil e embaraçosa, alvo de uma batalha nos tribunais de Justiça, ainda longe de uma solução.

Moradores são contra 
                                         
Desde o lançamento do projeto, associações de defesa do patrimônio, moradores e comerciantes se posicionaram contra a construção do museu no local, considerando que a obra iria desfavorecer o plano urbanístico do bairro.


Em setembro de 2017, a Associação do Patrimônio e População de Alfama (APPA) apresentou uma ação popular na Justiça para sustar a construção do museu. 

Meses antes, representantes da associação reclamaram, em um encontro com membros da CML, tanto da localização quanto da arquitetura contemporânea da obra, um projeto da arquiteta portuguesa Graça Bachmann, autora do monumento construído no Largo de São Domingos em homenagem aos judeus mortos em Lisboa no massacre de 1506.

A ação da APPA inicialmente recebeu uma decisão desfavorável da Justiça, mas a associação recorreu e conseguiu interromper parte da demolição das casas onde seria construído o museu. Por sua vez, a CML apresentou recurso para a liberação das obras, mas, no início deste ano, o Supremo Tribunal Administrativo rejeitou o pedido de revisão da decisão judicial e manteve suspensa a construção do museu e a demolição das casas.

Em abril, novamente a APPA interpôs uma ação judicial contra a implantação do museu, desta vez advogando a construção de habitações no Largo de São Miguel “para estancar a expulsão de moradores e trazer habitantes para Alfama”, segundo a associação. Três meses antes, uma petição intitulada “Queremos casas no Largo de São Miguel”, com 1.200 assinaturas foi encaminhada pela organização para a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) com idêntica reivindicação.

Outro local


Enquanto não sai uma decisão judicial definitiva, o projeto do museu tem sido alvo de um desgaste continuado até porque a imprensa tem noticiado com frequência cada embate judicial assim como o posicionamento e as diversas manifestações promovidas por moradores e integrantes da APPA, que contam com o apoio do Movimento Fórum Cidade de Lisboa, que em seu blog -Cidadania Lx - afirma que a preocupação do grupo é com “uma Lisboa pelos lisboetas e para os lisboetas”.

Para esses grupos o museu deveria ser instalado na Rua do Jardim do Tabaco, junto ao Rio Tejo, ainda dentro dos limites do histórico bairro de Alfama, local turístico onde já está instalado o museu do Fado e com “vários edifícios devolutos”, segundo alegam.

A presidente da APPA, Lurdes Pinheiro, esteve no início de julho no plenário da AML, integrado por 75 deputados, defendendo a petição para a construção de habitações no espaço onde estaria o museu. Ela recorreu a esta estância depois de ter ciência que a CML, composta de 17 vereadores, continua em sua posição de construir o museu judaico no Largo de São Miguel e que aguarda a finalização do processo judicial para emitir parecer sobre a questão.

A petição da APPA pede que a CML, dona do terreno, venha a “tomar medidas adequadas para que os edifícios até agora destinados ao Museu Judaico de Lisboa sejam recuperados para habitação de longo prazo” e que também possa “contribuir para que seja encontrada outra localização para o museu no bairro de Alfama”.

Segundo a APPA, “o Museu Judaico de Lisboa é importante para a cidade, mas não menos importante é preservar a cidade que o próprio povo judaico ajudou a construir”. Para a associação, “a construção do Museu Judaico no Largo de São Miguel iria lesar o equilíbrio, a escala, a estética e toda a malha urbana, arquitetônica e histórica do Largo de São Miguel”. 

Daí o pedido para que a CML não aguarde a decisão judicial e por decisão própria anule a licença de construção do museu, “respeitando os objetivos declarados e os regulamentos que a própria Câmara aprovou para esta zona histórica”.

“Dever de memória”


Quando da assinatura do protocolo para a criação do museu judaico, em 2016, o então ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, diplomata e escritor, enalteceu a instalação do museu lembrando que existe “um dever de memória para com o passado judaico de Portugal” e que o museu “será esse lugar de memória”.

O presidente da CML, vereador Fernando Medina, também destacou, na ocasião, a importância da iniciativa, afirmando que o museu será “um marco sobre a presença judaica em Portugal e, acima de tudo, um instrumento de futuro para a cidade”. Ele avaliou em 5 milhões de euros o total de investimentos, com as parcerias do Fundo de Desenvolvimento Turístico (através das receitas da taxa turística), da Rede de Judiarias de Portugal e da Fundação Lina e Patrick Drahi.

De acordo com o protocolo,  um milhão de dólares será disponibilizado pela CML que cederia o espaço (que reúne quatro imóveis) para erguer o museu, e mais 1,2 milhão de euros doado por Patrick Drahi, o bilionário dono da Altice Portugal (antiga Portugal Telecom), um francês nascido no Marrocos, com cidadanias portuguesa e israelense, gestor da citada fundação. Somente para a construção do museu estão previstos a aplicação de 2,9 milhões de euros.

Outro parceiro será o fundo norueguês EEA Grants, que financia a Rede Portuguesa de Judiarias (Rede Sefarad), colaborando com 312,8 mil euros. Também ficou acertado que a Associação de Turismo de Lisboa (ATL) daria uma contrapartida de 55,2 mil euros para as obras, assumindo a gestão do espaço, e a Comunidade Israelita de Lisboa contribuiria com documentos e peças históricas.

A expectativa era de o museu atrair 60 mil visitantes por ano, principalmente os de origem judaica, com bilhetes de entrada individuais no valor de 3,80 euros.

Zona de proteção


Projeto questionado pela APPA, o espaço do museu teve um dos imóveis demolido e atualmente as demais demolições estão embargadas pela Justiça.

Em entrevista aos jornais locais, moradores criticam as “caixilharias” das fachadas em alumínio, o tamanho do museu formado por dois prédios (quatro andares acima do nível da rua), com duas fachadas distintas, “uma delas com uma Estrela de David em baixo relevo e pedra lioz (tipo de calcário) virada para o largo e a Rua de São Miguel”, elementos que, segundo eles, vão descaracterizar o lugar.

Do mesmo modo se dizem preocupados com a construção do museu no sentido em que este venha acabar com o pouco estacionamento no bairro, impossibilite as cargas e descargas para os comerciantes e afaste as tradicionais barraquinhas que se espalham no largo, principalmente durante as festas juninas.

Uma das representantes do “Fórum Patrimônio 2017” ocorrido em Lisboa, a arquiteta Soraya Genin, lembra que o Largo de São Miguel está inserido na zona de proteção da Igreja de São Miguel, um imóvel classificado de “Interesse Público” e é parte do núcleo histórico de Alfama e Colina do Castelo. Por essa razão, afirma, tudo que for construído no local precisa respeitar as características arquitetônicas do local.

A arquiteta do Fórum cita o despacho da apreciação técnica do projeto feita pela própria CML em que a instituição reconhece que o edifício se “destacará da linguagem arquitetônica dos edifícios confinantes, dissonando das referências das composições arquitetônicas dominantes no conjunto do Largo”. 

Quanto à demolição dos quatro imóveis, segundo ela, não foi apresentada “uma justificação suficiente” do ponto de vista do estado de conservação das construções.

Duas edificações


Por sua vez, a arquiteta Graça Bachmann (que doou o projeto, no valor de 75 mil euros) defende o layout do museu explicando que a fachada de pedra lioz de cor clara e a “sobriedade de linhas e dos acabamentos adotados” respeitam a proximidade de “um imóvel classificado”, no caso a Igreja de São Miguel. Mas, admite que o museu terá um traçado distinto das características do local, maioritariamente residencial, e que o projeto, pela sua identidade e funcionalidade, deve balizar um novo tipo de ocupação.

No térreo ou piso zero do museu serão instaladas a recepção, uma loja e parte do espaço museológico. O primeiro piso, que será “semienterrado”, terá uma área para exposições temporárias que também poderá ser utilizada como sala polivalente com capacidade para 50 pessoas. Essa aplicabilidade também será repetida no segundo piso, ficando o terceiro piso reservado a uma cafeteria com terraço e à direção do museu.

O segundo prédio – o de documentação -, ao lado do primeiro e com fachada diversa (‘semelhante ao edificado residencial típico do bairro’) terá entrada pelo Beco da Cardosa e vai acolher as salas do Centro de Documentos nos pisos zero e um, ficando os serviços administrativos nos pisos dois e três.

O programa geral do museu foi desenvolvido pela historiadora Ester Mucznik e além de sua função pedagógica pretende contar a história dos 800 anos da presença judaica em Portugal, funcionando ainda como um centro de recolhimento, preservação e divulgação do patrimônio material e imaterial judaico-português. Afora as mostras temporárias, haverá uma exposição permanente baseada em dois componentes: o percurso temático e histórico.

A historiadora assinala que o percurso temático abordará a identidade religiosa através da exposição de objetos de culto, e o histórico focará na história dos judeus em Portugal, incluindo o regresso contemporâneo do judaísmo no país.

Memória


Em abril de 2017, frente à petição de moradores do local que questionavam a construção do museu – “Museu judaico em Alfama? Sim! No Largo de São Miguel? Não!” -  Mucznik falou aos deputados na Comissão Permanente de Cultura da AML sobre o sentido da escolha daquele espaço público. Ela lembrou que este é um lugar de grande simbolismo para o judaísmo português, pois lá existiu uma judiaria e também uma sinagoga.

A judiaria de Alfama começou a se formar em 1373 e a sua sinagoga foi construída entre 1373 e 1374. Era formada, basicamente, por uma rua, dois becos, dois pequenos largos e um arco que servia de porta para o gueto. 

Em 1496, por ordem do rei D.Manuel (1469-1521), todas as judiarias foram extintas, mas restou um registro da história daquela época na chamada Rua da Judiaria, “que vai do Arco do Rosário (antiga porta do gueto), no Terreiro do Trigo, até o Largo de São Rafael”. Junto a esse largo, segundo Mucznik, funcionava a sinagoga, no atual Beco das Barrelas, número 8.

Quanto as preocupações daqueles que temem que o dia-a-dia daquela zona seja afetada, a historiadora garante que o museu não vai impedir a vida no bairro nem as festas populares que ocorrem regularmente.

Mas, até que a Justiça bata o martelo, o sonho de um museu judaico no Largo de São Miguel terá que esperar, sujeito que está à pressão dos moradores e das organizações de conservação do patrimônio que se mostram frontalmente contrários ao projeto naquele local.

Em tempo: Na página do facebook criada pela Associação dos Amigos do Museu Judaico de Lisboa é possível acompanhar a mobilização da comunidade judaica em favor da implantação do museu.