Sheila Sacks /
A extradição de Assange, fundador do
WikiLeaks, pedida pelos Estados Unidos em função da divulgação ilegal de
documentos sigilosos do governo americano
e as conversas hackeadas publicadas por Greenwald no The Intercept
Brasil , envolvendo o ex-juiz Moro e o procurador Deltan Dallagnol, da Lava
Jato, são faces da mesma moeda: a de um jornalismo de risco que está na mira
dos órgãos de segurança nacional.
publicado no "Observatório da Imprensa"
Em um
artigo instigante veiculado pelo site de notícias políticas “Real Clear
Politics” (RCP), o jornalista Lee Smith, especializado em Oriente Médio e autor
de dois livros sobre o tema (‘Strong Horse’ e ‘The Consequences of
Syria’) alerta para as mudanças que vêm ocorrendo no jornalismo
americano, notadamente quando envolvem temas políticos e de segurança nacional.
No
texto “Spies Are the New Journalists” (Espiões são os novos jornalistas),
publicado no início de junho, o autor cita nominalmente ex-agentes do FBI
(Federal Bureau of Investigation), CIA (Central Intelligence Agency) e de
outros órgãos de segurança e inteligência que migraram para as grandes redes de
comunicação, como a CNN (Cable News Network) e NBC (National Broadcasting
Company), e também compõem o staff dos jornais New York Times e Washington
Post.

Para o
autor, “a mídia está hoje abertamente entrelaçada com o establishment da
segurança nacional de uma maneira que seria inimaginável antes do advento da
era do dossiê”. O que se observa, continua Smith, é a criação de um cânone de
privilégios desfrutado por esses grupos que não se aplica, por exemplo, a
maioria dos cidadãos. Estes estão atados à força da lei que se faz cumprir
integralmente, sem nichos facilitadores.
No artigo
em questão, o jornalista - que é membro do “Hudson Institute”, uma organização
em Washington que promove estudos e pesquisas sobre políticas públicas - afirma
que a mídia e a inteligência forjaram um relacionamento no qual os dois
parceiros buscam interesses profissionais e políticos conjuntos. “Eles visam
adversários compartilhados e protegem amigos em comum.”
Tratamento diferenciado
Um
exemplo desse tratamento diferenciado em relação aos ex-agentes e hoje
jornalistas, segundo Smith, seria o que vem ocorrendo com Julian Assange,
fundador do WikiLeaks. Acusado pelo Departamento de Justiça americano de
espionagem e conspiração por publicar, em 2010, documentos secretos vazados
pelo ex- analista militar transexual Bradley/Chelsea Manning, os EUA já pediram formalmente a extradição do
australiano, após o Equador revogar o seu asilo político, em abril. O ativista
estava abrigado na embaixada daquele país, em Londres, há sete anos.
O procurador-geral da Segurança Nacional, John
Demers, já havia adiantado, uma semana antes do pedido oficial de extradição,
ocorrido em 11 de junho, que a situação de Assange não se encaixaria na
Primeira Emenda da constituição americana, que versa sobre liberdade de
imprensa. “Ele não é jornalista”, disse em entrevista coletiva.
Afirmação
rebatida pelo editor do WikiLeaks, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsso, ao
garantir que Assange tem carteira
profissional de jornalista. Presente no 30º Congresso da Federação
Internacional de Jornalistas (IFJ, na sigla em inglês), ocorrido entre 11 e 14
de junho em Túnis, Hrafnsso atesta que Assange é membro da associação de
jornalistas australianos e que escreve na imprensa europeia.
Porém, o
entendimento de Demers sobre a situação de Assange, ressalta Smith, tem
encontrado amplo apoio na mídia americana e tem sido defendido pelos tais
ex-agentes que rebatizados de jornalistas se apresentam nas telinhas dos
noticiosos como comentaristas políticos e de segurança nacional. A analista
jurídica e de segurança nacional da rede CNN, Asha Rangappa (ex- FBI), repetiu
Demers em sua justificativa: “Assange não é jornalista. Ele não está ligado a
nenhum órgão de comunicação.”
Para
esses ex-espiões, a eventual exposição de documentos sigilosos requer de quem
divulga uma ligação formal de trabalho com a mídia impressa ou televisiva.
Assim, os próprios “novos jornalistas” oriundos da comunidade de inteligência
estariam agora abrigados no oportuno guarda-chuva da mídia e protegidos pela
Primeira Emenda.
Jornalismo tradicional
Smith
pondera que, ao contrário dos “novos jornalistas”, Assange atende à definição
tradicional do autêntico jornalista. Aquele disposto a assumir riscos pessoais
para publicar informações sobre instituições e pessoas poderosas que
rotineiramente mentem para a sociedade a fim de avançar em suas agendas
políticas e particulares.
Porém,
para o ex-diretor da CIA e ex-secretário de Defesa, Robert Gates, a maneira
como foram disseminadas as informações sigilosas, sem qualquer consideração
pelas consequências que poderiam atingir manobras militares no Afeganistão e no
Iraque, a política externa americana e os próprios informantes, tornam Assange
moralmente culpado.
Opinião
compartilhada pelo procurador-geral que acusa Assange de atacar a democracia
americana. “Nenhum profissional responsável, jornalista ou não, publicaria
propositalmente nomes de pessoas que seriam fontes confidenciais em uma zona de
guerra.” O fato se refere ao vazamento de uma lista de informantes (2011) que o
WikiLeaks alega ter sido acidental.
No final
de maio, os Estados Unidos apresentaram 17 novas acusações contra Assange,
sendo 16 delas no âmbito da lei de espionagem que trata da obtenção e difusão
de informação sigilosa. Em 2010, o WikiLeaks vazou cerca de 250 mil telegramas
diplomáticos confidenciais e meio milhão de documentos secretos.
Assange
também é acusado de pirataria informática e “conspiração” por supostamente ter
“ajudado” e “estimulado” o então soldado Manning a violar a senha de um computador
do Departamento de Defesa para obter informações confidenciais que poderiam
trazer risco ao país. Essa acusação invocada pela Justiça americana, segundo
Hrafnsson, revela a natureza da denúncia que se vale de uma legislação
específica antiga, datada de 1917, e jamais usada contra uma publicação ou um
jornalista. Se for condenado em todas as acusações, o australiano pode ser
sentenciado em até 175 anos de prisão.
“Era do dossiê”
Mas, na
visão de Smith as acusações contra Assange confirmam ainda mais a degradação do
que chama a “era do dossiê” na esfera pública americana, onde os ex-espiões se
encarregam de dar forma às notícias com o objetivo de avançar nas suas próprias
agendas institucionais, processar acertos políticos e manter a si mesmos e a
seus patrões fora do alcance das leis que se aplicam aos cidadãos comuns.

A
natureza desses vazamentos, para Smith, é tão sensível que deveria ter
provocado uma investigação imediata das autoridades americanas visto que muitas
das 20 reportagens premiadas parecem ter origem em vazamentos de informações
confidenciais. O jornalista faz uma comparação com as informações divulgadas
pelo WikiLeaks, assinalando que a metade
dos 250 mil telegramas diplomáticos vazados não tinha o carimbo de
“classified”. O restante estava nominado como “confidential” e 11 mil como
“secret”. Nenhum deles, nem os documentos sobre o Afeganistão, Iraque e a baía
de Guantánamo estavam nominados como “Top Secret”.
A
percepção de que a imprensa rotulada como livre possa manter relações ocultas
de conluio com órgãos de espionagem e similares no tocante a reportagens
investigativas, principalmente quando o foco são instituições e autoridades
públicas, é o aspecto mais chocante da “era do dossiê”. Muitas vezes, quando
surgem insinuações e até denúncias de que determinadas reportagens
investigativas estejam atreladas a comportamentos profissionais duvidosos, a
atitude de seus autores e dos meios de comunicação envolvidos é minimizada
porquanto não ameaça diretamente o establisment.
Smith
cita o comentarista de segurança nacional Ken Dilanian, da rede NBC, que
trabalhou como repórter investigativo em veículos importantes como a Associated
Press e o Los Angeles Times. Uma reportagem da plataforma HuffPost, em 2014,
revelou que o jornalista enviava seus artigos, antes de serem publicados, para
a sede da CIA para checagem dos fatos.
Além de
compartilhar as histórias, a CIA fornecia a sua visão/versão dos dados apurados
pelo jornalista, o que se supõe um comprometimento do uso do material
publicado. A troca de e-mails entre
Dilanian e a assessoria de imprensa da CIA, em 2012, foi apresentada pelo site
The Intercept, e Dilanian confirmou o envio dos textos para a CIA,
reconhecendo, anos depois, que a atitude não foi correta.
Lava Jato
No
Brasil, a divulgação de conversas privadas entre o ex-juiz e atual ministro da
Justiça e de Segurança Pública, Sérgio Moro, e o coordenador da força-tarefa da
Lava Jato, o procurador Deltan Dallagnol, pelo site The Intercept Brasil, no
início de junho, mobilizou a Polícia Federal que busca os autores das interceptações
ilegais.

O
ministro Moro nega qualquer interferência nos processos e considera naturais
que ocorram conversas entre juízes, promotores e advogados. Em audiência no
Senado, ele alertou ser alvo de um ataque hacker criminoso que mira as
instituições e que tem como objetivo anular as condenações por corrupção
levadas a efeito pela Lava Jato.
O editor
e fundador do The Intercept Brasil, o jornalista e advogado americano Glenn
Greenwald, em entrevista ao site “Pública” (Agência de Jornalismo
Investigativo), dois dias depois da publicação da troca de mensagens, acusou a
“grande mídia” de estar “trabalhando para a Lava Jato”. Segundo ele, “os
jornalistas pararam de investigar e questionar e simplesmente ficaram
aplaudindo, apoiando e ajudando”.
Premiado
com o Pulitzer, em 2014, pelas reportagens veiculadas no jornal britânico The
Guardian sobre as ações de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA, na
sigla em inglês) vazadas pelo ex-analista da CIA Eduardo Snowden, exilado na
Rússia desde agosto de 2013, Greenwald vive há 14 anos no Brasil e procura não
se ausentar do país com receio de ser alvo de represália do governo americano
pela divulgação desses documentos.
Snowden foi acusado de espionagem,
roubo e transferência de propriedade do governo por ter revelado o programa
secreto americano de vigilância eletrônica que obtinha dados privados de
milhões de pessoas, dentre elas políticos importantes.
As condenações relativas a essas
acusações geralmente não são aplicadas a jornalistas, pois estes estão
protegidos pela Primeira Emenda da constituição americana. Porém,
alternativamente, os promotores podem usar a lei de espionagem de 1917 que
torna crime disseminar informações prejudiciais ao país. Lei que serve de base
para as acusações contra Assange e abre um precedente que preocupa os
defensores da liberdade de imprensa.
“Eles estão acusando Assange de coisas
que todo o jornalista faz o tempo todo, eu inclusive”, observa Greenwald. Ou
seja: “encorajar uma fonte a conseguir mais documentos. Se isso é crime, todos
os jornalistas estão em perigo”, afirma.
Em 2016, na eleição presidencial
americana, novamente Greenwald e o The Intercept publicaram reportagens
polêmicas tendo como fonte e-mails hackeados, desta vez da então candidata
Hillary Clinton. Os documentos revelavam a estratégia da equipe de campanha de
Hillary para cooptar jornalistas e figuras da mídia “potencialmente amigáveis”;
o fornecimento de matérias já prontas para serem apresentadas por profissionais
“confiáveis”; e os pagamentos dirigidos a colunistas que apareciam regularmente
nos noticiários de TV por assinatura.
Interpretar a lei
Diante desse contexto, onde se
encaixaria o que se convencionou chamar de imprensa livre? A Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 220, inciso 1º registra: “Nenhuma lei conterá
dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no
art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.”
Então é preciso estar ciente de que é
vedado o anonimato em qualquer manifestação de pensamento (IV); que está
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização
por dano material, moral ou à imagem (V); e que são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação(X).
Por outro lado, é livre o exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer (XIII), sendo assegurado a todos o acesso à
informação, resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício
profissional (XIV).
Vale lembrar ainda o item XII que
garante a inviolabilidade de sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso,
por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal.
Em relação às penalidades, além daquelas relacionadas
aos “crimes contra a honra” que abrangem “calúnia”, “difamação” e “injúria”
(artigos 138,139 e 140 do Código Penal brasileiro), a lei nº 12.737, de 2012,
incluiu no âmbito de “Divulgação de Segredo” o artigo 154-A que estabelece pena
de até dois anos de reclusão para quem “invadir dispositivo informático alheio,
conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de
mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou
informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou
instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”. E com agravante (inciso
3º) “se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas
privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim
definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido”.
Imprensa “transgressora”
Com tantos cerceamentos jurídicos rondando o
jornalismo, a pergunta que não quer calar é obvia: para a imprensa ser
efetivamente livre é preciso que seja “transgressora”? Desafiar permanentemente
as leis que em suas raízes são feitas para proteger a sociedade e os cidadãos
em suas individualidades, privacidade e liberdade?
É fato que o uso de agentes públicos que se escondem
no anonimato e de hackers solitários ou a serviço de determinadas ideologias como
fontes de informações confidenciais ou secretas pode mudar o rumo de eleições,
desmerecer políticos e figuras públicas, levar empresários para a cadeia,
revelar maracutaias e conchavos, escancarar casos de corrupção e trazer à luz
acertos e conluios espúrios. Mas igualmente afasta qualquer premissa ética a
corroborar o trabalho jornalístico, já a partir do comportamento delituoso das
fontes. Seria como carimbar que os meios justificam os fins.
Simultaneamente, o absoluto crédito dado a essas
fontes em relação à autenticidade e veracidade de documentos sigilosos vazados
ou de interceptações eletrônicas hackeadas torna-se a única afirmação da
verdade que se pretende transmitir. Um risco que o jornalismo de investigação
assume em sua narrativa fundamentada, identificada e comprometida, de forma
incondicional, com as verdades e, consequentemente, com as motivações e
intenções de seus informantes.
Um caminho instável, acidentado e de rumo incerto já
percorrido outras vezes por Greenwald , cuja visão da profissão incorpora o
conceito de imprensa “transgressora”, na medida que minimiza os possíveis
entraves legais e conjuga do mito do quarto poder independente e transformador
na estrutura do sistema ocidental democrático. Há poucos dias, em entrevista,
ele afirmou textualmente: “Se você não quer esses riscos, você não deve fazer
jornalismo.”
A respeito dessa compulsão pelo risco que envolve
espiões, hackers e a imprensa, o comentarista de segurança nacional da rede de
tevê MSNBC, o “novo jornalista” Naveed Jamali, ex-agente do FBI, autor do livro
“How to Catch a Russian Spy” e que se descrevia nas redes sociais como “agente
duplo” e “oficial de inteligência”, postou no twitter: “Uma vez que você cruzou
a linha pela primeira vez, a segunda fica mais fácil.”
Que o diga Assange, que iniciou aos 16 anos sua vida
de hacker em Melbourne e aos 20 foi acusado pela polícia federal australiana de
31 delitos, dentre eles de ter invadido o principal terminal da empresa de
telecomunicações canadense “Nortel”. Na época ele escapou de ser preso e apenas
pagou uma multa. Mas, a partir daí, nunca mais parou.
Em uma reportagem de 2010, na revista The New Yorker,
o jornalista investigativo Raffi Khatchadourian, autor de diversas reportagens
sobre Assange, seus companheiros e a dinâmica de suas atividades, classificou o
australiano de “traficante internacional” (‘No Secrets – Julian Assanges’s
mission for total transparency’). E
justificou: “Ele e seus colegas coletam documentos e imagens que os governos e
outras instituições consideram confidenciais e os publicam no site WikiLeaks.”
No seu mais recente artigo, em 11 de abril, logo após
a prisão de Assange, em Londres (‘Julian Assange versus the Trump
Administration’), Khatchadourian voltou ao tema e chamou a atenção para a
tentativa do governo Trump de redefinir o WikiLeaks como um “serviço de
inteligência hostil, não estatal - uma organização que não pertenceria ao
âmbito do jornalismo”. Uma artimanha engenhosa que poderá abrir espaço para
criminalizar jornalistas, sites, jornalismo de investigação e organizações de
imprensa que sistematicamente se utilizam de espiões, hackers e outras fontes
não lícitas como base de reportagens que afrontam políticas de governo, a
privacidade de autoridades públicas e o próprio eixo da segurança
nacional.