Por Sheila Sacks
“Quando as portas
da prisão se abrem, o verdadeiro dragão sai voando” (Ho Chi Min, líder
comunista vietnamita, falecido em 1969)
Prisões europeias estão transformando jovens que assaltam e roubam em
futuros terroristas. A doutrina da guerra santa se infiltrou entre as grades e
deu sentido aos seus históricos de violência.
publicado no Correio do Brasil
Em mais
uma de suas pesquisas focadas no extremismo político, o Centro Internacional de
Estudo da Radicalização e Violência Política (ICSR, na sigla em inglês),
do King’s College London, divulgou relatório em que aponta a
crescente adesão de criminosos comuns e ex-presidiários a grupos religiosos
fanáticos como o Estado Islâmico (EI), a rede al-Qaida e a milícia síria Jabhat
al-Nusra que pregam a Jihad - guerra santa - contra aqueles que não estejam alinhados com o
ideário de um Islã fundamentalista. Segundo o estudo, a conexão entre o
terrorismo e a deliquência tem aumentado na Europa e para isso concorre o
próprio sistema prisional que abriga centenas de “jovens revoltados” que acabam
se radicalizando de forma mais rápida nas prisões do que quando doutrinados nos
centros religiosos ou guetos.
Na
apresentação do trabalho, em outubro deste ano, o diretor do ICSR e co-autor da
pesquisa, Peter Neumann, observou que jovens detidos por crimes violentos são
mais propensos ao extremismo bárbaro. “O Estado Islâmico representa a
brutalidade, a força e o poder que esses jovens, frequentemente ex-integrantes
de gangues, buscam.” Neumann, nascido na Alemanha, é mestre em Ciência
Política, especialista em segurança e terrorismo, professor do King’s
College London e autor de vários livros sobre o tema, sendo o mais
recente “Radicalized: New Jihadists and the Threat against the West” (“Radicalizados:
Novos Jihadistas e a ameaça contra o Ocidente”, em tradução livre).
Recrutamento
nas prisões
Com 52
páginas, o documento “Criminal Pasts, Terrorist Futures: European Jihadists and
the New Crime-Terror Nexus” analisa os perfis de 79 extremistas que a partir de
2011 se deslocaram para o exterior para combater no Iraque e na Síria ou participaram
de atentados na Europa. Eram originários da Bélgica, Dinamarca, França,
Alemanha, Holanda e Reino Unido, alguns com descendência árabe.
O
documento elaborado pelo ICSR descobriu que mais da metade deles, cerca
de 57%, tinham antecedentes criminais, tendo passado um período presos antes de
aderir ao jihadismo. Desse grupo, 27% dos detidos se radicalizaram na prisão
contrariando o senso comum de que são as mesquitas e os centros religiosos os
locais dessa prática de aglutinação, conforme o foco e as ações dos serviços de
segurança.
Para
Newmann a familiaridade de ex-presidiários com armas, drogas e ilícitos em
geral – como o acesso a documentos falsos e a circuitos ocultos de
financiamento - promove uma funesta interação entre o crime e o terror, agora
pretensamente justificados sob o manto da religião. Se antes eram
considerados criminosos comuns, a partir de seu recrutamento pela jihad ganham
uma espécie de aval para cometer crimes ainda maiores com a salvaguarda de uma
suposta redenção e ascensão ao paraíso.
O
relatório reproduz um pôster de um grupo jihadista que estampa o slogan: “Sometimes
people with the worst pasts create the best futures” (“Às vezes pessoas com os
piores passados criam os melhores futuros”, em tradução livre). A
propaganda apresenta um jovem de costas, de botinas e roupa preta, empunhando
um fuzil kalashnikov, de fabricação russa, tendo ao fundo uma luz fulgurante. O
cartaz foi compartilhado no facebook pelo grupo britânico jihadista Rayat
al-Tawheed que alicia para o EI jovens envolvidos com gangues criminosas,
prometendo a salvação de suas almas pela jihad. Algo bem diferente de tempos
atrás quando os movimentos islâmicos enfatizavam o valor da crença e o fervor
religioso absoluto à causa.
Pouco
conhecimento teológico
Em
entrevista ao “The Independent”, jornal britânico on-line, o professor Newman
explica que com o surgimento do EI o perfil dos extremistas islâmicos tem
mudado. ”Muitos analistas continuam dizendo que os terroristas são oriundos das
classes média e alta, recordando, por exemplo, que Osama Bin Laden era filho de
um milionário e o ataque de 11 de setembro foi praticado por estudantes. Mas
essas afirmações não refletem a realidade que temos hoje com o Estado
Islâmico”.
Na
reportagem “Isis recruiting violent criminals and
gang members across Europe in dangerous new crime-terror nexus”, veiculada em
10.10.2016, Newman revela que a pesquisa constatou que os
atuais extremistas recrutados pelo EI não apresentam um conhecimento teológico
profundo da Shaaria (conjunto de leis baseado no Alcorão, o livro sagrado do
Islamismo, e na vida do profeta Maomé) e continuam a fumar, beber e a usar
drogas até a partida para o local do combate. Diferentes dos terroristas da
al-Qaida - indivíduos radicalizados para a violência em função de uma
interpretação extremista do Islã - , os novos militantes do terror são pessoas
de comportamento violento que encontraram no radicalismo islâmico uma maneira
de prosseguir no submundo do crime sob uma pretensa justificativa religiosa.
A
propaganda de recrutamento é bem explícita, analisa Newman. “Basicamente diz
que você pode se inscrever para a missão mesmo sem conhecer o verdadeiro Islã.
A ideologia do EI enfatiza menos o conhecimento teológico e mais a absoluta
obediência a sua própria interpretação da luta jihadista. O estudioso acredita
que em muitos casos é bem mais difícil convencer algum ativista
estudantil que passa a apoiar a ideologia jihadista a praticar um ataque com
mortes do que um outro com um passado de atos de violência.
O
relatório do ICSR cita alguns exemplos de criminosos que aderiram à jihad. Um deles é Abderrozak Benarabe,
nascido na Dinamarca, perigoso traficante de drogas, conhecido como “Big A”,
dono de um extenso prontuário criminal em Copenhague e que decidiu se voltar
para o jihadismo e lutar na Síria depois que seu irmão foi diagnosticado com
câncer. “Não basta apenas rezar, com tanta coisa errada que eu fiz”,
justificou. O britânico de descendência síria, Ali Almanasfi, também viajou à
Síria e se juntou à milícia Jabhat al-Nusra, em 2013. Envolvido com drogas e
roubos, ele passou um longo período na prisão após participar de um violento
assalto a um idoso. Ao explicar a um amigo a razão de seu engajamento à jihad, Almanasfi, que morreu cinco meses
depois, aos 22 anos, na cidade síria de Idlib, confessou: “Pelo menos uma vez eu quero fazer alguma coisa boa. Alguma
coisa pura.”
Fortalecendo
a tese, o antropólogo francês Alain Bertho, professor da Universidade Paris 8,
atribui o sucesso do Estado Islâmico entre os jovens desestabilizados ao fato
de o grupo terrorista oferecer um sentido ao mundo e às suas vidas. “O Estado
Islâmico lhes dá até uma missão”, acentua. Respondendo às perguntas do
jornalista Ivan Du Roy, do site alternativo “Basta!”, focado em problemas
sociais, econômicos e ambientais, o antropólogo culpa as sociedades em geral de
não investirem no futuro dos jovens, na sua educação e nas universidades. “Será
que refletimos bem sobre como seria a revolta sem esperança?”, provoca.
Segundo
Bertho, para combater de forma eficaz o Estado Islâmico e sua oferta política
de morte e desespero “é preciso refletir sobre a revolta que está na raiz
desses crimes”. Ele observa que “uma sociedade que já não consegue se reinventar
leva as pessoas a manifestações de desespero e de raiva’, e que “o século 21
abandonou o futuro em nome da gestão do risco e da probabilidade, indiferente à
ira das gerações mais jovens”.
Autor do
livro “Les enfants du chaos” ( “Os filhos do Caos” ), Bertho acusa a
globalização e a crise generalizada da representação política de aumentarem a
violência e os motins, provocando uma onda de desilusão, desesperança e “fúria
radical” nas novas gerações. “Gerencia-se o cotidiano através de políticos que
manipulam o risco e o medo como meios de governo, seja o risco à segurança ou o
risco cambial, que falam muito de aquecimento global, mas são incapazes de
antecipar a catástrofe anunciada.” De acordo com o antropólogo, essas revoltas
radicais encontram-se hoje diante de tamanhos impasses que o Estado Islâmico
surge como uma opção de ira, martírio e libertação.
Fracasso
na educação
O
estudioso em Ciência das Religiões, professor Paulo Mendes Pinto, da Universidade
Lusófona de Lisboa, também credita ao sistema educacional uma forte dose de
responsabilidade no crescimento do extremismo na Europa. Ele denuncia o
fracasso do modelo educacional europeu como causa da adesão de jovens
ocidentais ao radicalismo do Estado Islâmico. "Os jovens, perante os desalentos
que a Europa lhes dá - desemprego, falta de valores, corrupção, luta cega por
riqueza -, optam por um modelo diferente”, critica o acadêmico, em depoimento à
agência de informação Lusa (“O que atrai os jovens ocidentais ao Estado
Islâmico?”, em 26.09.2014).
À
frente do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos, Mendes Pinto é editor da
revista “Cadernos de Estudos Sefarditas”, da Universidade de Lisboa e mantém
uma coluna sobre religião no jornal “Público”. Em sua opinião, o sistema de ensino
que deveria alimentar as ideias de liberdade, fraternidade e igualdade da
Revolução Francesa, que ainda continuam válidas, objetivamente não consegue
passar esses princípios. “Devemos pensar sobre o que é que a nossa sociedade
tem que faz com que, quando pensávamos que vivíamos em regimes onde a liberdade
nos tinha vacinado de radicalismos, acontece exatamente o contrário”, alerta o
especialista.
Um exemplo
dessa falha social pôde ser constatado com a prisão de Khalid Zerkani, em julho
de 2015. A justiça belga o condenou a 12 anos de prisão por difundir ideias
extremistas entre “jovens ingênuos, frágeis e agitados”. Com 42 anos, ele foi
acusado de participação em atividades de organização terrorista e considerado
“o arquétipo de um mentor subversivo”.
Doutrina de ódio
Morador do
bairro de Molenbeek, em Bruxelas, Zerkani manteve conexões diretas ou indiretas
com os jovens que participaram da série de ataques em Paris (o maior deles à
casa de show Bataclan), em 13 de novembro de 2015 - que matou 130 pessoas e
feriu 352 -, e nos atentados no metrô e no aeroporto de Bruxelas, em 22 de
março de 2016, com 32 mortes e 300 feridos. "Zerkani perverteu toda uma
geração de jovens, especialmente no bairro de Molenbeek" (de maioria
islâmica), afirmou o promotor belga Bernard Michel que acompanhou o caso. É o
que mostra a reportagem “Em Bruxelas, mentor jihadista
ensinava ‘islamismo bandido’ a jovens revoltados” (“The New York Times” e “UOL
internacional”, em 12.04.2016).
Segundo as autoridades de segurança da Bélgica,
por mais de uma década Zerkani foi um elemento central da rede terrorista que
abasteceu com conselhos, dinheiro, armas e explosivos jovens muçulmanos de
origem europeia ansiosos para combater na Síria e na Somália ou para causar
destruição na Europa. Investigadores citam Abdelhamid Abaaoud, 28 anos,
apontado como comandante operacional dos ataques em Paris (morto cinco dias
depois pelo polícia francesa) e Najim Laachraoui, 25, um dos homens-bomba
suicida nos atentados em Bruxelas e que igualmente esteve envolvido com o
massacre na capital francesa. Abaaoud já
tinha sido preso três vezes por assalto e outros delitos e Laachraoui - que
chegou a estudar engenharia na Universidade Livre de Bruxelas, mas não concluiu
o curso – esteve na Síria, em 2013, nas fileiras do Estado Islâmico lutando
contra o regime de Bashar al-Assad.
Outros
envolvidos com Zerkani seriam Mohamed Abrini, 31 anos, preso acusado de ter
participado dos ataques em Bruxelas e morador do distrito de Molenbeek, e Reda Kriket, um francês de 34 anos, preso em março deste ano pela
polícia francesa, suspeito de estar planejando um ataque iminente e “sem
precedentes”. Em seu apartamento foi apreendido documentos falsos, produtos químicos
e um arsenal de armas e explosivos semelhantes aos usados nos ataques em Paris
e Bruxelas.
Com 1,6
bilhão de praticantes (23% da população mundial), o islamismo tem maioria
religiosa em 49 nações. A previsão para os próximos 35 anos é que haja um
crescimento considerável desse grupo religioso, em virtude de sua maior taxa de
fertilidade e de população jovem. Um estudo demográfico realizado pelo “Pew
Reseach Center”, de Washington, em 2015, sobre o futuro das religiões (Global
Religious Futures) calcula que em
2050 o Islã terá 2,76 bilhões de seguidores (29,7%), aproximando-se dos 2,91
bilhões de cristãos que irão compor os 31,4% da população global.