por Sheila Sacks
Cresce o radicalismo no cartoon made in Brasil
publicado no Rio Total
http://www.riototal.com.br/coojornal/sheilasacks039.htm
No que já está se tornando fato corriqueiro, o site Brazil Cartoon abre mais uma vez espaço para promover a arte armada contra Israel, disponibilizando a veiculação de um catálago de charges maniqueístas e manipuladoras sobre a situação política no Oriente Médio. Organizado pelo Ministério de Informação da Síria e intitulado “Gaza em Chamas” (Gaza in fire), o álbum artificioso de cunho ideológico e focado na demonização do estado judeu, resulta de um tipo de estratagema espertamente utilizado pelos países muçulmanos autocráticos (que não permitem a liberdade de expressão sob o seu jugo), nesses tempos de hipocrisia e subversão da realidade: o da organização de concursos e exposições internacionais de “arte engajada”, reunindo “artistas” sensíveis à problemática mundial da pobreza, do meio ambiente, das injustiças e de outros senões sociais.
Para isso monta-se um júri de experts de países “amigos”, tais como o Irã, Brasil, Egito, China, Turquia e Itália, para citar alguns; despacham-se emails para as associações de cartunistas, principalmente para aquelas insanamente aferradas a conceitos e movimentos terceiro-mundistas que congregam tribos inquietas e sedentas por reconhecimento e prêmios; e grafitam-se algumas palavras de fúria, em tinta vermelha, do tipo “all for palestine” e “NO to israeli aggression” nos folhetos, cartazes e demais peças de propaganda. O resultado logo aparece: 303 cartunistas de 67 países prontos para sujeitarem a sua imaginação, talento e criatividade às amarras de um embuste ardilosamente preparado com uma única finalidade, o de transformar Israel em vilão do planeta.
Aliás, em relação a esse certame ocorrido em 2009, Brasil e Irã se destacaram pelo surpreendente número de cartunistas participantes – o primeiro com 39 e o outro com 42 – sobrepujando a China, a países africanos, árabes e do leste europeu, e a própria Síria, organizadora do evento. Uma enxurrada de “artistas” brasileiros teleguiados em sua indignação pela visão astuta e preconceituosa de uma mídia superficial e parcial em sua condenação a priori ao estado de Israel.
Mas, se o prêmio do melhor cartoon contra Israel não coube a um brasileiro, passou bem perto, premiando um cartunista argentino e sua charge-clichê: um keffiyeh (lenço branco e preto usado pelos palestinos) manchado de sangue. Percebe-se que a crescente proliferação desses eventos que supostamente visam estimular a criatividade e a arte são instrumentos dos mais engenhosos utilizados pela propaganda dos países árabes no sentido de inserir talentos dispersos e muitas vezes insatisfeitos pela limitação profissional em seus países de origem, no insensato jogo de brutalidade e ódio a Israel e aos judeus.
Ainda em 2009, no 17º Salão Universitário de Humor ocorrido em Piracicaba, interior de São Paulo, a charge vencedora teve como tema o Holocausto. No desenho muito bem elaborado, o papa está de costas e ajoelhado em frente a um quadro-negro, sendo obrigado pela professora, a ministra da Alemanha vestida de guarda nazista, a escrever dezenas de vezes a frase “Holocaust is real”. A ideia por trás da charge é abominável porque induz o espectador a acreditar que a civilização cristã representada pelo papa está de joelhos, subjugada à pressão do lobby judaico que na charge é comparável à coerção nazista.
Diante de mais essa faceta do antissemitismo, desta vez instalada no que se convencionou chamar de cartoon político, entrevistei em setembro de 2008 o professor Luiz Nazario, profundo conhecedor do assunto.
Cartoon: uma arte armada contra Israel
Publicado no site do Núcleo de Estudos Judaicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
No limiar do ano judaico de 5769 cresce a legião de cartunistas brasileiros aliciada por regimes extremistas, beligerantes e antissemitas que utilizam a arte da caricatura e da charge como armas de incitação e convencimento. O “cartoon político” virou um campo de guerra, uma terra de ninguém onde artistas-milicianos se valem de todos os artifícios enganosos da propaganda e do imaginário racistas para degradar a identidade judaica e o estado de Israel. Eventos macabros como o concurso “Caricaturas do Holocausto” (2006) organizado pela Casa do Cartum do Irã, ou belicistas como o “Internacional Gaza Cartoon” (maio de 2008), com o tema “Morte em Gaza”, ganharam participação significativa de cartunistas brasileiros, alguns premiados em ambos os certames.
Esse fenômeno perturbador tem sido detectado pelo pesquisador, escritor e professor Luiz Nazario, 50 anos, doutor em História pela Universidade de São Paulo ( com a tese “O Papel do Cinema na preparação do Holocausto”) e profundo estudioso de temas que envolvem o nazismo, o antissemitismo e o terrorismo contextualizados nas áreas da propaganda, do cinema e da animação.
De família italiana, foi bolsista na Alemanha e em Israel, somando mais de 100 artigos publicados em jornais e revistas especializadas. É autor de 19 livros (o mais recente intitulado “Todos os Corpos de Pasolini”), ensina Cinema na Universidade Federal de Minas Gerais e coordenou o Grupo de pesquisa da Discriminação que desde 1997 coleta dados de atitudes e atividades de cunhos racista, antissemita e neonazista no país, para o relatório mundial “Anti-Semitism Worldwide”, publicado anualmente pela Universidade de Tel Aviv.
. A arte, como expressão imaginativa e criativa, estaria conceitualmente imune às amarras da ética filosófica tradicional (e suas normatizações em relação ao bem e ao mal)?
- Tenho me batido, em meus escritos sobre arte e ideologia, contra a ideia corrente de que o artista é um ser divino, acima do Bem e do Mal. Naturalmente, talentos específicos distinguem um artista de outros cidadãos que não possuem os mesmos talentos, mas esse privilégio não isenta o privilegiado da responsabilidade por suas ações. Se o artista é capaz de sintetizar numa imagem toda uma situação, sua síntese possui um poder de impacto que deve ser considerado. Ao engajar sua arte numa causa, o artista sabe – ou deveria saber – exatamente o que está em jogo. Nenhum artista é obrigado a engajar sua arte. Mas se ele engaja sua arte numa causa justa, por mais liberdade, paz, progresso, verdade, ele deve ser recompensado por prestar voluntariamente um serviço à humanidade. Da mesma forma, se ele engaja sua arte numa causa criminosa, por mais terror, guerra, miséria, mentira, ele deve ser punido por contribuir voluntariamente com a desumanidade. A forma dessa punição deve ser estabelecida pela sociedade. Claro que certas sociedades podem aproveitar-se dessa medida para punir os artistas que as incomodem, estabelecendo uma nova censura, um novo totalitarismo etc. Daí o receio de se estabelecer critérios de punição para artistas. Os artistas alemães contribuíram em massa com o regime nazista, desempenhando muito bem a parte que lhes coube na execução nacional do Holocausto. Nenhum deles foi punido por isso. E mesmo Leni Riefenstahl, tão próxima de Hitler, glorificando o regime nazista com seus filmes de propaganda, foi enfim reabilitada.
. É crível ao artista/cartunista no ato da criação sublimar suas ideologias e preconceitos?
- Como disse, o engajamento da arte é uma opção política do artista. Se um cartunista como Carlos Latuff dispõe-se a diabolizar os israelenses para tornar aos olhos do mundo a causa dos palestinos, que ele adotou, mais humana, ele sabe exatamente a que processos e técnicas sua arte precisa recorrer. Tendo o domínio de sua arte, ele expressa exatamente o que deseja expressar. Não pode alegar posteriormente inocência quanto a isso. Naturalmente, tal artista não quer ser visto como racista, e por isso ele se diz de esquerda, deprecia neonazistas e sustenta condenar, em sua arte, apenas um Estado imperialista que massacra palestinos. Mas ao concentrar a humanidade em apenas um dos lados do conflito, diabolizando o outro lado, assume, em sua arte, que todos os crimes podem ser cometidos contra o lado diabolizado.
. De que forma a arte do cartoon tem sido usada como uma arma subreptícia de guerra?
- O cartoon sempre foi usado como arma de guerra, desde a Primeira Guerra Mundial. Veja-se a animação O afundamento do Lusitânia (The Sinking of Lusitania, EUA, 1918), do cartunista Winsor McCay, com mais de 25 mil desenhos numa animação realista, enfatizando o peso dramático da mensagem dirigida contra a Alemanha, cujos submarinos haviam torpedeado e afundado aquele navio de passageiros, resultando em 1.195 vítimas civis, das quais 128 eram cidadãos norte-americanos. Na Segunda Guerra o uso do cartoon na propaganda contra o inimigo foi intensificado, tanto pelo Eixo quanto pelos Aliados. Mas nem toda propaganda de guerra (caricaturas, animações, filmes, etc.) é condenável. É preciso distinguir as propagandas que expressam pontos de vista humanos de solidariedade, amor à liberdade e defesa de uma causa justa das que expressam pontos de vista desumanos, ódio à liberdade, defesa de uma causa injusta. Há propagandas aliadas que, ao combater o racismo e a agressão do Eixo também se mostraram racistas e agressoras. Nenhuma causa deve servir de pretexto para o artista desafogar a própria bestialidade. O que ocorre atualmente no conflito Israel-Palestina é o uso internacional do repertório de clichês antissemitas da caricatura antissemita tradicional (dos séculos XIV-XIX), cujas fontes são os sermões da Igreja católica; e nazista (dos anos de 1920-1940), cujas fontes são Os protocolos dos sábios do Sião. Este uso não se faz mais contra o Judeu (isto é, contra o povo judeu), mas contra o Estado Judeu (isto é, contra todos os judeus que se identificam com este Estado). É como se o antissemitismo, após a criação de Israel, redimensionasse seu ódio ao Judeu para o ódio ao Estado Judeu. Nesta operação, os “antissionistas” esperam dividir o povo judeu entre sionistas e não-sionistas e ainda conquistar uma parcela deles para a causa da destruição da Israel. Algumas técnicas imagéticas dessas caricaturas: 1. Animalização dos judeus ortodoxos (pintados sob a forma de ratos, aranhas, serpentes, dragões etc.); 2. Diabolização das autoridades israelenses (Primeiros-Ministros com chifres e caudas de diabo, cercado de chamas do inferno; renomeação de Israel como “Israelixo” ou “Israhell” etc.); 3. Negação do Holocausto (associação de Auschwitz a um parque de diversões com inserção de uma roda gigante, por exemplo); 4. Dessacralização da Estrela de Davi (sistematicamente associada a suásticas, crimes, opressões e massacres); 5. Troca histórica de papéis em situações históricas diversas (substituição das tropas SS por soldados israelis, da suástica pela Estrela de Davi, de judeus vitimados no Holocausto por palestinos vitimados por Israel); 6. Pacifismo (associação da causa da destruição da Israel à Pomba da Paz, sempre ferida, mutilada, esmagada e morta por Israel, o “eterno perturbador da paz”, como Hitler, causador da guerra mais mortífera de toda a História, chamava os judeus); etc.
. Qual é o papel da globalização nesse contexto?
- A globalização deu à História a dimensão do tempo real, ou seja, tudo acontece em todo lugar ao mesmo tempo. O mundo, que sempre foi um, agora é mais um que nunca. Todos os internautas têm acesso a todas as informações de todos os lugares o tempo todo. Mas algumas verdades horríveis não são assimiladas e a má-fé cresce na mesma medida. Numa disciplina que leciono, Cinema e História, um aluno meu escolheu analisar o filme Paradise Now. Como poucos, ele percebeu que o homem-bomba palestino era santificado na cena do banquete, construída como na Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Mas ao mesmo tempo, recusou-se a perceber o sentido dessa santificação. Ele sabia o que eu pensava a respeito. Mas se ele concordasse comigo precisaria recusar a santidade da causa palestina, o que ele não estava preparado a aceitar, pois se os terroristas palestinos não forem santos, Israel não seria mais tão detestável. E ele precisava odiar Israel, precisava que Israel fosse o Mal para manter funcionando sua visão de mundo, inteiramente baseada na má-fé.
. Quais os fatores que favorecem, na sociedade brasileira atual, a disseminação do preconceito e a demonização de Israel?
- A ideia de que para ser cool, in, fashion, basta odiar os Estados Unidos (o Grande Satã) e Israel (o Pequeno Satã), e de que todo o resto virá automaticamente. Pensar dá muito trabalho, é mais fácil seguir o rebanho. E se a nova onda é um novo tipo de fascismo, é o que se terá no Brasil. Aliás, é o que já temos. Um novo fascismo de esquerda, com discriminação total a Israel e aos EUA. Escritores e artistas como Gore Vidal, José Saramago, John Le Carré, Jean Ziegler e Mikos Theodorakis ajudaram a dar, através de declarações raivosas contra Israel nas mídias de consumo, prestígio intelectual ao pathos antissemita. Mesmo escritores e artistas judeus precisam, agora, para fazer sucesso junto às mídias, mostrar-se contra Israel em certa medida, como o fez Susan Sontag, cujos ensaios admiro, em seus discursos políticos, incluindo o de agradecimento ao Prêmio Jerusalém, coletados recentemente em Ao mesmo tempo. Cineastas israelenses devem fazer como Amos Gitai: criticar Israel em filmes e entrevistas, ou não ganharão prêmios e retrospectivas em festivais internacionais de cinema. A obrigação de atacar os EUA e Israel generalizou-se. Não que os EUA e Israel sejam inatacáveis, mas quando se atacam apenas EUA e Israel, e não se atacam os Estados que efetivamente suprimem liberdades civis, acobertam terroristas, doutrinam crianças, perseguem minorias, inferiorizam mulheres, etc. então não se trata de críticas exprimindo uma visão humanista, mas de difamações propagando uma visão desumana.