Um povoado ao pé da Cordilheira entra na rota Chabad
/ Sheila Scks /
A 70 quilômetros de Machu Pichu,
principal destino turístico do Peru, a pequena vila de Pisac se situa no
chamado Vale Sagrado dos Incas. Com 10 mil habitantes tem três atrações conhecidas: as ruínas do seu
sítio arqueológico, o mercado aos domingos e os chás de ervas “medicinais” como
huachuma (San Pedro) e Ayahuasca, usadas em cerimônias e retiros espirituais orientados
por curandeiros e xamãs locais.
Recentemente foi observado o
crescimento de turistas israelenses para a região, principalmente de jovens que
depois do serviço militar obrigatório e antes do ingresso em universidades,
praticam esse tipo de turismo mochileiro. Também dezenas de israelenses já se
instalaram na pequena cidade e abriram negócios. De olho no fato, em abril foi
aberta a terceira comunidade Chabad no país, justamente em Pisac, depois da
capital Lima (9,2 milhões de habitantes) e da cidade de Cusco (428 mil), bastante procurada pelos viajantes pela chamada medicina dos Incas.
Em reportagem assinada por Jacob
Kessler, correspondente da Jewish Telegraphic Agency (JTA), uma plataforma de
notícias judaicas com sede em Nova York, somos informados que em média o Chabad de Pisac recebe de 50 a 100 jovens israelenses para o jantar de shabat.
Localizada na principal praça do povoado, onde
artesãos vendem seus produtos e uma igreja há muitos anos faz parte da
paisagem, um prédio de dois andares ladeando a praça agora se destaca com uma
bandeira estendida a partir da sacada com o desenho de uma coroa azul no fundo
amarelo, e a inscrição “Mashiach”
(Messias, em hebraico)em letras hebraicas.
Residentes
Kesller entrevistou dois israelenses, de 30 e 36
anos, ambos vivendo em Pisac, proprietários de pequenos restaurantes. Nitzan Levy veio de Jerusalém em busca de uma comunidade
alternativa porque o cotidiano é menos estressante,justifica, lembrando que os
traumas de guerra fazem parte da sociedade israelense. Aminadav Shvat,
descendente de uma família de rabinos, escolheu Pisac pela espiritualidade do
lugar e suas plantas medicinais com efeitos psicodélicos. Abriu o restaurante
para servir de ponto de encontro de visitantes judeus.
Para o rabino Ariel Kadosh, do Chabad de Pisac, a
procura pela espiritualidade através de ervas com efeito de LSD não é positiva
e nem é esse o caminho. Segundo o Lubavitcher
Rebe, o “caminho judaico” é atingir as alturas espirituais por meio de grande
esforço, reitera.
Mas, nem tudo é tão zen em Pisac e manifestações
individuais de antissemitismo e contra Israel acontecem. Adesivos da bandeira palestina são encontrados
em toda a cidade e um desses adesivos já foi colado no tripé de madeira que
anuncia em hebraico as refeições do restaurante de Aminadav.
Outro incidente relatado na reportagem chegou a
repercutir nas redes sociais, com opiniões de conotação anti-israelense. De
acordo com Chabad um casal bêbado entrou no prédio de madrugada e começou a
fazer comentários antissemitas e o estudante que lá estava procurou se
defender. Mas, nas redes sociais a
versão do episódio era que o estudante atacou uma mulher e a ameaçou com uma lâmina,
gerando controvérsia entre os internautas.
Em 2019, o guia israelense Tuvia Book esteve por uma
temporada no Chabad de Cusco e comentou em seu blog – associado à plataforma de
notícias Times of Israel - sobre a inexistência
de segurança no local. “Qualquer pessoa pode entrar na casa durante o dia, no
shabat ou feriado “, escreveu. Ele lembrou o atentado terrorista ocorrido em
Mumbai, na Índia, em novembro de 2008, quando sete pessoas foram mortas na Nariman
Chabad House, incluindo o rabino Gabriel Holzberg e sua esposa grávida Rifka. “A
infeliz realidade do mundo em que vivemos, onde os judeus são perseguidos
simplesmente por causa de sua religião, é um fato”, observou.
O Peru recebe mais de um milhão de turistas por ano e as regiões de Cusco e Machu Picchu têm um movimento de 4 mil visitantes diários.
Comunidade
reduzida
Lar do grupo de guerrilha Sendero Luminoso do
Partido Comunista Peruano (PCP-SL) que teve atuação terrorista intensa na
década de 1980, com sequestros e assassinatos ( e ainda tem fações atuando no país), o Peru chegou a abrigar uma comunidade judaica de seis mil
membros, mas devido à insegurança política e econômica atualmente são 2.500
judeus, a maioria residindo na capital. O país também foi palco de golpes
militares, como os que conduziram ao poder os generais Alvarado (1968-1975) e Bermudez (1975-1980), que instituíram
ditaduras e a censura no país. De 1990 a 2002, o Peru foi governado por Alberto
Fujimori que implantou um governo autoritário, dissolvendo o Congresso. Ele
cumpre pena de 25 anos de reclusão em prisão da capital.
Curioso é que o país foi governado, de 2016 a 2018, por um presidente filho de refugiado judeu, Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou após dois processos de impeachment. O Ministério Público agora está pedindo 30 anos de prisão por suspeita de corrupção. Também teve uma primeira dama de ascendência judaica, Eliane Karp, casada com o ex-presidente Alejandro Toledo (2001-2006), extraditado dos Estados Unidos e preso. Ela se transferiu para Israel usando passaporte israelense. E vale citar Efrain Goldenberg Schreiber, que foi ministro das finanças e primeiro-ministro no governo de Fujimori.
Desde dezembro de 2022, o Peru está sendo governado
pela vice-presidente Dina Boluarte, depois que o presidente eleito Pedro
Castillo, professor e sindicalista eleito em meados de 2021, sofreu impeachment
e foi preso, após anunciar a dissolução do Congresso. Desde então já houve
seguidas manifestações violentas de protesto com feridos e mortes nos embates
com a polícia.
Em meio à crise interna, em fevereiro um veterano
jornalista judeu peruano, Gustavo Gorriti, teve sua casa cercada por membros do
movimento da extrema direita La Resistencia que aos gritos e empunhando
cartazes o ameaçaram com slogans antissemitas. O jornalista é fundador e editor-chefe
do site investigativo IDL-Reporteros e denunciou a violência policial que
resultou em mortes na cidade de Ayacucho.
Em um artigo relatando o ocorrido, Kessler cita o depoimento do advogado Jeffrey Radzinsky, também consultor político, sobre o antissemitismo no país. Ele afirma que tanto a extrema direita quanto a esquerda compartilham o mesmo preconceito antissemita e dá como exemplo o líder da esquerda e fundador do partido Peru Libre, Vladimir Cerrón, que em 2019, antes das eleições gerais, anunciou em seu twitter “uma cruzada contra as potências judaico-peruanas": “Se a esquerda articular bem sua unidade”, disse ele, “enfrentará com sucesso as potências judaico-peruanas nas próximas eleições gerais”.
A organização CPJ (Committee to Protect Journalists),
com sede em Nova York, protestou formalmente junto ao governo contra o cerco à
casa de Gorriti, assim como a Associação Judaica do Peru emitiu um comunicado
público rechaçando as ameaças e o “racismo antissemita” contra o jornalista que
favorece o clima de polarização que vive o país.
Atividades
religiosas e culturais
O Beit Chabad de Lima foi fundado em 1987 e por mais
de 30 anos teve como diretor o rabino Schneur Zalman Blumenfeld, do Rio de
Janeiro, que faleceu precocemente em outubro de 2021. Ele criou uma publicação
semanal, organizou estudos de Torá, promoveu refeições coletivas no shabat e
nas festas judaicas, e instalou padaria, restaurante e loja kasher na cidade.
Também incentivou a colocação de mezuzás nas casas e ergueu menorás em espaços
públicos para celebrar Chanucá. Mas seu trabalho espiritual foi mais além e se
estendeu na ajuda aos necessitados e as pessoas em apuros. Uma vez ele visitou
um israelense preso, com uma condenação de dez anos, e o convenceu a colocar
tefilin diariamente. Alguns dias depois, o homem apareceu no Chabad contando
que ao colocar o tefilin pela primeira vez, no dia seguinte foi solto. E que ia
continuar com esse ritual regularmente em Israel.
A comunidade judaica na capital tem ainda três
sinagogas, uma delas liderada pelo rabino carioca Simantob Rafael Nigri; o
clube Hebraica, o movimento juvenil HaNoar HaTzion, a organização de direitos
humanos B'nai B'rith, um cemitério na área de Baquijano, datado de 1875, e uma
única escola chamada León Pinelo, criada em 1946, que reúne a maioria dos
jovens descendentes de judeus do país.
Na cidade de Cuzco, onde residem dezenas de israelenses que abriram pequenos negócios na cidade, o Chabad foi fundado em 2006 para dar
apoio a grande quantidade de turistas de Israel que visitam os Andes
anualmente. Liderado pelo rabino Ofer Cripor, o seder de Pessach, em abril,
reuniu 1.500 pessoas, a maioria jovens, segundo informação da organização. A
casa Chabad está localizada em uma antiga mansão colonial na Calle Granada,
perto do centro da cidade. Atende, em média, 300 visitantes no seder de Shabat
em seu pátio central.
Em dezembro do ano passado, quando manifestações
contra a deposição do presidente Castillo começaram a tomar as ruas, dezenas de
turistas israelenses que estavam em Machu Picchu e lugarejos adjacentes tiveram
que ser resgatados e escoltados pela polícia até Cusco. Estradas foram
bloqueadas, o sistema ferroviário parou e aeroportos foram fechados.
Judeus
incas
O Peru também é o lar dos chamados judeus incas, os Bnei Moshe. A organização Shavei Israel que busca os “judeus perdidos” e procura conectá-los ao judaísmo, relata que em 1958, na cidade de Cajamarca, no norte do Peru, os irmãos católicos Alvaro e Sigundo Villanueva Correa fundaram um grupo de seguidores da Torá, expandindo para a cidade de Trujillo, com cerca de 500 seguidores. Eles descobriram uma Bíblia nos pertences do pai e a leitura lhes trouxe uma nova visão e entendimento. Na época, eles sofreram perseguição e ameaças da igreja local, mas não recuaram.
Villanueva é o primeiro à direita |
Depois de praticarem o judaísmo por décadas em
estrita observância aos mandamentos da Torá, os judeus incas foram abalizados e
convertidos pelo rabinato ortodoxo de Israel e fizeram aliá, a partir de 2004,
sob os auspícios do Shavei. Mas, uma década antes, em 1990, após cumprir todas
as etapas da conversão, Villanueva e o primeiro grupo de Bnei Moshe imigraram
para Israel. Em 2008, ao falecer com 81 anos, ele foi enterrado no cemitério do Monte das
Oliveiras, em Jerusalém, com o nome judaico de Zorobabel Zadkia. Um de seus
filhos é rabino em Israel.
Em visita ao Peru, em 1988, o rabino americano Chabad Myron Zuber ficou impressionado com a devoção dos judeus incas. “Essas pessoas são extremamente abnegadas e estão dispostas a oferecer todos os seus bens para praticarem o judaísmo adequadamente.” Ele contou que um dos membros da comunidade foi para o vizinho Equador trabalhar nas minas com o objetivo de obter recursos para comprar tefilin e um terno para o Bar Mitzvá do filho.
A partir do relato do rabino Zuber (‘Convertendo os índios incas do Peru’), a jornalista argentina Graciela Mochkofsky lançou no ano passado o livro “El profeta de los Andes: La improbable búsqueda de la Tierra Prometida” sobre a trajetória espiritual de Villanueva, sua luta e perseverança na fé que escolheu. Ela se aprofundou nas pesquisas e fez várias viagens ao Peru e Israel para entrevistar membros do Bnei Moshe. Falou com parentes de Villanueva e conheceu seus netos, que hoje são colonos israelenses perfeitamente integrados ao país e que já não falam o espanhol natal de seus pais e avós.