/ Sheila Sacks /
Apesar
do forte comércio bilateral entre os dois países, que em 2020 cresceu 20% e
atingiu 17,5 bilhões de dólares, Israel seguiu os Estados Unidos em seu voto no
Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC, na sigla em inglês), em junho
último, que condenou a China por abusos contra muçulmanos que vivem na Região
Autônoma Uigur de Xinjiang, no noroeste do país.
A
região, anexada pela China em 1949,
abriga os uigures, de origem turcomana, maior grupo étnico local que professa o islamismo. De acordo com o
Departamento de Estado dos EUA, acredita-se que até dois milhões de uigures e
outras minorias muçulmanas foram colocados em uma ampla rede de centros de
detenção em toda a região. Ex-prisioneiros relatam que foram sujeitos à
doutrinação, tortura e até esterilização.
Recentemente,
em 9 de julho, milhares de uigures exilados se reuniram em várias capitais para
protestar contra a manutenção desses campos, as prisões arbitrárias, a
repressão e perseguições violentas, a internação em massa e o desaparecimento
de cidadãos civis. Eles também lembraram
o conflito ocorrido há doze anos, em Xinjiang, que resultou em centenas de
mortos e feridos.
Em
Londres, além de clamar por justiça e pela ajuda das nações ocidentais, a
manifestação foi liderada por Rahima Mahmut, diretora do Congresso Mundial Uigur,
e Sheldon Storne, conselheiro da mesma
organização que luta pelos direitos humanos e
pela liberdade religiosa em Xinjiang ( ou Turquestão Oriental para os
uigures).
Storne
é um médico judeu britânico de 65 anos que dirige a campanha STOPUYGHURGENOCIDE, em Londres. A
mobilização também está ativa nos Estados Unidos e por ocasião da semana de
Pessach ( a Páscoa judaica), em 30 de
março, a organização Jewish World Watch
(JWW) promoveu um Seder ( cerimônia religiosa) em prol do povo uigur. A JWW tem
como foco denunciar e advogar contra o genocídio e atrocidades em massa nas
áreas de conflito da China, Sudão, Congo, Síria e Birmânia.
Crime de genocídio
Relatório independente divulgado em março pela ONG Newlines
Institute for Strategy and Policy, sediada em Washington, também faz graves acusações à China e afirma que “ o
governo chinês tem a responsabilidade de estado por um genocídio em curso
contra os uigures em violação à Convenção da ONU para a Prevenção e a Repressão
do Crime do Genocídio “.
De
acordo com a plataforma digital da rede de notícias americana CNN (9/3/2021), o
documento contou com a participação de uma equipe de 50 especialistas em
direitos humanos que analisou milhares de depoimentos de testemunhas oculares
de exilados uigures e documentos oficiais do governo chinês.
A
assessora jurídica do Raoul Wallenberg Center for Human Rights, Yonah Diamond,
que também contribuiu com o relatório, alerta para o real entendimento sobre o
que é genocídio. Ela explica que não é preciso ter provas de assassinato em
massa ou extermínio físico de um povo, sendo suficiente ter evidências claras e
convincentes de que há uma intenção deliberada de destruir um grupo tal como
ele é. A ONG, sediada em Montreal, leva
o nome do diplomata sueco que salvou do genocídio nazista cerca de 100 mil
judeus na Hungria.
Instituída
pela Assembleia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1948, a convenção destaca em
seu artigo 2, como crime de
genocídio, a intenção deliberada, por
parte do Estado, de eliminar grupos
étnicos, religiosos, nacionais ou raciais. Por sua vez, a China nega as
acusações de violação de direitos humanos e afirma “que os centros são
necessários para prevenir o extremismo religioso e o terrorismo”. Intitulados
por Pequim de “centros de treinamento vocacional”, esses campos são descritos
pelo governo como locais de reeducação, visando a desradicalização em massa e com ensino
obrigatório de mandarim.
Desde
2014, mais de 1.400 centros foram instalados em Xinjiang, onde segundo relatos
de ex-presos uigures os detidos são submetidos à tortura psicológica, lavagem
cerebral e cultural, agressões sexuais, privação de comida por longos períodos e
confinamento solitário. Em documentos
oficiais pesquisados, o relatório aponta que os uigures e outras minorias
muçulmanas são chamados de “ervas daninhas” e “tumores”.
Essa
política estatal se consolidou a partir de um ataque extremista praticado por separatistas
uigures, em 2014. Naquela ocasião, o presidente chinês Xi Jinping visitou a região e, segundo documentos revelados pelo
jornal New York Times, determinou às
autoridades locais que combatessem o radicalismo “sem misericórdia”. A região
faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão e autoridades chinesas alegam que
os uigures têm ligações com a Al-Qaeda.
A reportagem da CNN informa
ainda que “no penúltimo dia na presidência dos Estados Unidos, em 19 de
janeiro, o governo de Donald Trump declarou que o governo chinês estava
cometendo genocídio em Xinjiang. Um mês depois, os parlamentos da Holanda e do
Canadá aprovaram moções apontando o crime, apesar da oposição de seus líderes”.
Relatos brutais
Majoritariamente
muçulmanos, os uigures chegam a 11 milhões em Xinjiang, região vizinha ao
Cazaquistão, berço das etnias cazaques. A rede britânica de notícias BBC News
ouviu o relato de mulheres uigures que foram presas e passaram meses detidas
nos chamados campos de “reeducação”.
Já no início da reportagem,
um aviso incomum aos leitores: “Alerta:
você pode considerar perturbadores alguns dos detalhes desta reportagem.” Isso porque são narradas histórias brutais de
estupros, choques elétricos, ingestão acentuada
de remédios, tortura, confissões forçadas e esterilização massiva. As ex-detentas, que atualmente residem em outros países,
também revelam que tiveram seus cabelos cortados e eram obrigadas a cantar
canções patrióticas e assistir programas
doutrinários da TV estatal (‘Uigures em campos de reeducação na China relatam estupros sistemáticos’, em 5/2/2021).
Uma das presas, Tursunay
Ziawudun, ficou nove meses detida e depois de libertada fugiu para os Estados
Unidos. Ela conta que devidos aos abusos sexuais muitas mulheres se tornam
alcoólatras e têm problemas mentais. "Dizem que as pessoas são libertadas,
mas na minha opinião todos os que deixam os campos estão acabados”, afirma.
Devido à sucessão de estupros, Ziawudun teve que retirar o útero.
Outros tipos de violência contra os uigures também
têm sido denunciados por estudiosos e ativistas na mídia ocidental. O sociólogo
italiano Massimo Introvigne, autor de um livro sobre as perseguições religiosas
na China (‘Il libro nero della persecuzione religiosa in Cina’), de 2019,
denuncia que cópias do Alcorão têm sido confiscadas e queimadas pela polícia em
Xinjiang. Para fugir da ação dos agentes policiais, livros de rezas são
enterrados ou mesmo colocados nos rios
pela vítimas, embrulhados em plástico, na tentativa de evitar que sejam
profanados
Fundador
do Centro de Estudos sobre Novas Religiões (CESNUR, na sigla em inglês), Introvigne
lembra que em dezembro do ano passado (2020) entrou em vigor um novo
regulamento que limita com rigor a peregrinação anual dos muçulmanos à Meca,
com o estabelecimento de cotas e a avaliação investigativa dos proponentes à
peregrinação. O documento editado pela “Administração Estatal de Assuntos
Religiosos “ impõe um controle mais rígido às viagens. Peregrinações “não
oficiais”, sem o aval do governo chinês, são consideradas atitudes criminosas e
severamente punidas.
Investimentos em
Israel
A
plataforma de notícias japonesa Nikkei
Asia, especializada em assuntos sobre o continente asiático, chama a
atenção para o fato de que os EUA e a China serem os maiores parceiros
comerciais de Israel e que ambos são vitais para a prosperidade do país.
Em
uma análise publicada no início de julho, a mídia destaca que “os EUA são
insubstituíveis para Israel em termos de ajuda militar, compartilhamento de
inteligência e inovação. Por outros
lado, “as empresas chinesas estão envolvidas em vários projetos importantes de
infraestrutura em Israel, e a China apresenta um mercado em crescimento e uma
fonte de investimento para empresas israelenses de tecnologia.”
No início deste ano, o Grupo Portuário Internacional de Xangai (Shanghai International Port Group) começou a administrar o novo porto de Haifa por um período de 25 anos. A concessão a uma empresa chinesa de um dos principais portos do país tem preocupado as autoridades americanas, principalmente porque é no porto de Haifa onde está localizada a base naval militar mais importante de Israel e onde também são feitos exercícios e simulações navais em parceria com os Estados Unidos. Pelo acordo entre Israel e China, serão investidos 2 bilhões de dólares em infraestrutura e modernização do porto.
À parte os
negócios, o Nikkei Asia enfoca
igualmente a posição da China durante o conflito armado entre Israel e o Hamas,
em maio, destacando que Pequim mostrou “um invulgar apoio ao grupo islâmico que
controla Gaza, condenando duramente as ações de Israel, redigindo declarações
ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e criticando repetidamente o apoio
dos EUA a Israel”.
Para
o analista do Instituto de Estratégia e Segurança de Jerusalém, (JISS, na sigla
em inglês) Tuvia Gering, neste caso
especial, “a China não só levou o Conselho de Segurança da ONU a realizar três reuniões contra Israel, mas
deu rédea solta à mídia afiliada, diplomatas e membros do Partido Comunista
para atacar Israel com comentários antissemitas e antissionistas”.
Em
entrevista ao Jewish News Syndicate (JNS), site israelense de notícias, Gering não poupou críticas ao país.
“A China tem falhado constantemente em ter empatia por Israel, em reconhecer suas preocupações com a
segurança e com o fato de que Israel é
um país ameaçado por organizações terroristas cínicas e assassinas, armadas
pelo Irã.”
No
final do ano passado, o embaixador israelense nos Estados Unidos e na ONU, Gilad
Erdan, já tinha enviado um aviso à China sobre esse posicionamento agressivo e solicitado ao seu homólogo chinês para que
parasse de apoiar resoluções contra Israel, caso contrário haveria
retaliações.
Acordo China-Irã
Em
outra manobra estratégica para ampliar a sua influência no Oriente Médio, a China
anunciou, em março último, um acordo bilateral de 25 anos com o Irã envolvendo cerca de 400 bilhões de dólares de
investimentos, não só em energia, transporte e agricultura, mas também em
inteligência, assuntos militares e treinamento.
Especialista
em relações China-Oriente Médio e pesquisador
do centro de assuntos políticos e
estratégicos Begin-Sadat Center for Strategic Studies, ligado à Universidade Bar-Ilan, Roie Yellinek avalia que a política externa
chinesa é bem "versátil" em suas abordagens nas áreas política e comercial. “A
China sabe como travar uma luta com os EUA e conduzir em paralelo um comércio
no valor de centenas de bilhões de dólares. Sabe como combater os uigures
muçulmanos em seu território e salvaguardar laços estreitos com os países
muçulmanos”, afirma.
Yellinek aponta que embora a China se oponha ao programa de
armas iraniano, não está ajudando a impedir o Irã de desenvolvê-lo. Por sua
vez, o Irã usa o poderio e a cooperação chinesa para neutralizar a pressão dos
Estados Unidos. De acordo com o estudioso israelense, “os chineses entendem que
o governo Biden não é o governo Trump e que podem ser mais agressivos”.
Já para o ex-chefe da Divisão estratégica do IDF (Israel
Defense Forces), general Assaf Orion, o acordo de cooperação
militar-tecnológico e de inteligência entre a China e o Irã está em oposição
aos objetivos de Israel. “Pequim é um importante parceiro econômico de Israel,
mas está cooperando com uma potência regional que é a principal e mais grave
ameaça externa ao estado e à população israelense”, alerta o militar.