Sheila
Sacks /
Em um convênio inédito,
o Museu do Holocausto de Washington e a instituição pública “Arquivos de
Marrocos”, de Rabat, vão compartilhar documentos sobre os judeus do norte da
África no período da Segunda Guerra. O objetivo é expandir o acervo do
museu americano e propiciar a pesquisadores ocidentais melhores condições para
conduzir os seus estudos sobre o tema.
A assinatura do
acordo, no início de maio, teve a presença do conselheiro do rei Mohammed VI, o
judeu marroquino André Azoulay, de 77 anos, grande incentivador do convênio.
Desde 1991, ainda no reinado de Hassan II, Azoulay atua como Conselheiro real
para assuntos econômicos e financeiros nos diversos programas de reformas
estruturais e de revitalização daquele país árabe.
Prédios judaicos
restaurados
Um dos projetos reais,
também bastante incomum em se tratando de um país árabe, visa preservar a herança judaica do Marrocos, onde viviam, antes da
fundação do estado de Israel, mais de 250 mil judeus (atualmente são 3 mil).
Estão sendo investidos
20 milhões de dólares para restaurar sinagogas, escolas, cemitérios e até
placas de rua com os nomes judaicos originais, nos bairros judeus (mellah) das
cidades de Casablanca, Marrakech, Essaouira (antiga Mogador) e Fez.
O Museu de Judaísmo
Marroquino, criado pela comunidade judaica de Casablanca, em 1997, é um exemplo
notável. Foi totalmente reformado com o apoio da Fundação do Patrimônio
Cultural Judaico-Marroquino (FPJM, na sigla em francês). O espaço abriga
objetos de culto e de valor cultural que lembram a história, a religião, as tradições
e a vida cotidiana dos judeus na civilização marroquina.
Azoulay explica que em
1995 o Conselho das Comunidades Judaicas do Marrocos resolveu instituir uma
fundação específica para preservar o legado judaico no país. A “Fédération du
Patrimoine Culturel Juif Marocain” (FPJM) tem a missão de reabilitar e
restauras sinagogas e demais construções judaicas, sendo reconhecida pelo
governo marroquino como uma organização de utilidade pública.
Desde então, com a
cooperação do governo, também foram reformados 167 cemitérios judaicos em todo
o país, com a restauração de 12 mil sepulturas.
Congraçamento
das religiões
Azoulay, que
também é conselheiro da “Aliança de Civilizações das Nações Unidas” (UNAOC),
presidente da “Fundação Três Culturas”, em Sevilha, na Espanha, e comanda
a “Anna Lidh Foundation”, com sede em Alexandria, no Egito, foi agraciado
em março deste ano com o prêmio “Líder Judeu Sefardita” , ofertado pela “Fundação de
Preservação da História Visual do Povo Judeu” (PJVH, na sigla em
inglês), em Nova York, que destacou seu trabalho em prol do congraçamento das
religiões e da preservação da história e cultura judaicas no Marrocos.
Um dos resultados pode
ser observado na alteração da constituição do país, que em 2011 inseriu um
inciso em que afirma que o Marrocos “foi nutrido e enriquecido por influências
hebraicas.” Ainda assim, por ser membro da Liga Árabe, o Marrocos desde 2001
não mantém laços diplomáticos oficiais com Israel, o que não impede que mais de
50 mil israelenses visitem o país, a cada ano.
Ano passado foi
inaugurada uma rota Tel Aviv-Casablanca, com conexão na Ilha de Malta.
Em abril, na competição internacional de Judô que ocorreu em Marrocos, a judoca israelense Timna Nelson-Levy teve a emoção de subiu ao pódio e escutar o hino “hatikva”, tendo ao fundo a bandeira de Israel. Ela conquistou a medalha de ouro no “Agadir Grand Prix” e a execução do hino israelense neste país muçulmano foi um fato inédito que provocou orgulho em Israel, mas que gerou uma forte polêmica entre os marroquinos.
Apesar a singularidade
do Marrocos em relação ao mundo árabe, também neste país existe considerável
oposição a Israel, principalmente vinda de alguns setores políticos. O partido
da Justiça e Desenvolvimento (PJD, na sigla em francês), muçulmano conservador,
que governa o país desde 2011, protestou publicamente contra a exibição da
bandeira de Israel e a execução do hino israelense que foi tocado pela primeira
vez na história do reino de Marrocos.
Qualificou o ato de
“inaceitável e provocador para com os sentimentos dos cidadãos marroquinos”,
exortando a “expulsão” da comitiva israelense. Na nota, o PJD propôs a punição
dos promotores do evento pela “profanação do solo marroquino” e concluiu
afirmando que “Jerusalém foi e sempre será a capital da Palestina”.
A repercussão nas
redes sociais foi intensa e os ânimos ficaram acirrados, com os usuários
insistindo para que os organizadores da competição fossem processados.
Obstáculos e boicotes
Durante anos, atletas
israelenses têm enfrentado obstáculos e boicotes em eventos esportivos
realizados em países árabes com maioria muçulmana.
Em novembro de 2017, o
próprio Marrocos inicialmente ameaçou não conceder os vistos para a equipe
israelense de Judô participar do Campeonato Mundial de Judô, em Marrakech. Várias
organizações ligadas ao partido que governa o país realizaram um ato de
protesto contra a presença da delegação israelense. Mas, ao final, os atletas
israelenses puderam usar as insígnias israelenses nos uniformes.
No mês anterior, em outra
competição, judocas israelenses conquistaram cinco medalhas, no “Grand Slam” de
Abu Dhabi, mas as autoridades dos Emirados Árabes não permitiram que a equipe
de 12 atletas exibisse o distintivo de Israel (ISR) nos uniformes, nem
portassem bandeiras ou que o hino fosse executado.
E para culminar,
atletas de Marrocos e dos Emirados se recusaram a cumprimentar os israelenses
que os derrotaram.
Festival une judeus e muçulmanos
Ainda que não faltem
dificuldades no relacionamento de Israel com Marrocos, recentemente duas
delegações daquele país visitaram Israel. Uma composta por empresários
marroquinos,cineastas e escritores, e a outra formada de mulheres que
participaram de palestras sobre a emancipação feminina.
Outro fato a destacar
que contribui para uma melhor relação entre judeus e muçulmanos é o Festival de
Música Andaluz que acontece todos os anos na cidade de Essaouira (antiga
Mogador), na costa Atlântica de Marrocos.
Por iniciativa de Azoulay, desde 2003 esta
cidade portuária, de 70 mil habitantes, abriga o “Festival des Andalousies
Atlantiques” que atrai milhares de admiradores e reúne músicos e cantores
judeus e muçulmanos especializados nesse tipo de música medieval nascida na
região da Andaluzia, na Península Ibérica, também conhecida como Al-Andalus
(denominação árabe) e Sefarad (nome em hebraico).
Durante oito séculos,
a partir de 711, quando os mouros dominaram esta parte da Espanha atual, floresceu
uma cultura única, de raízes árabe-judaica-andaluz, até hoje lembrada e
cultivada.
O evento
de 2017 contou com as apresentações conjuntas do rabino e cantor de origem
marroquina Haim Louk e do tenor muçulmano Abderrahim Souiri,
acompanhados da orquestra de músicos árabes “Tetouan Mohamed Larbi Temsamani”,
regida pelo maestro Mohamed El-Amine Akrami.
O rabino Louk, que
vive nos Estados Unidos, já gravou mais de 100 CDs e se apresenta regularmente
em recitais de música clássica andaluz em Israel, Espanha, França, Bélgica,
Canadá e Polônia. Ele canta textos da Torá em hebraico embalados pela melodia
andaluz sefardita.
Em geral, o festival
se desenvolve em 3 dias, com apresentação de concertos instrumentais,
espetáculos de canto e dança, além de seminários e debates em torno da riqueza
das diversidades culturais que compõe a cultura andaluz. Em 2017, foi feita uma
homenagem especial ao rabino e poeta marroquino David Elkaïm (1865-1942).
Para Azoulay - pai de
Audrey Azoulay, ex-ministra da Cultura da França e atual diretora geral da
UNESCO - Essaouira é o que o Oriente Médio já foi e que ainda pode ser.