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quarta-feira, 27 de junho de 2018

O conselheiro do rei de Marrocos


 Sheila Sacks /

Em um convênio inédito, o Museu do Holocausto de Washington e a instituição pública “Arquivos de Marrocos”, de Rabat, vão compartilhar documentos sobre os judeus do norte da África no período da Segunda Guerra. O objetivo é expandir o acervo do museu americano e propiciar a pesquisadores ocidentais melhores condições para conduzir os seus estudos sobre o tema.

A assinatura do acordo, no início de maio, teve a presença do conselheiro do rei Mohammed VI, o judeu marroquino André Azoulay, de 77 anos, grande incentivador do convênio. Desde 1991, ainda no reinado de Hassan II, Azoulay atua como Conselheiro real para assuntos econômicos e financeiros nos diversos programas de reformas estruturais e de revitalização daquele país árabe.

Prédios judaicos restaurados 
                             
Um dos projetos reais, também bastante incomum em se tratando de um país árabe, visa preservar a herança judaica do Marrocos, onde viviam, antes da fundação do estado de Israel, mais de 250 mil judeus (atualmente são 3 mil).
Estão sendo investidos 20 milhões de dólares para restaurar sinagogas, escolas, cemitérios e até placas de rua com os nomes judaicos originais, nos bairros judeus (mellah) das cidades de Casablanca, Marrakech,  Essaouira (antiga Mogador) e Fez.

O Museu de Judaísmo Marroquino, criado pela comunidade judaica de Casablanca, em 1997, é um exemplo notável. Foi totalmente reformado com o apoio da Fundação do Patrimônio Cultural Judaico-Marroquino (FPJM, na sigla em francês). O espaço abriga objetos de culto e de valor cultural que lembram a história, a religião, as tradições e a vida cotidiana dos judeus na civilização marroquina.

Azoulay explica que em 1995 o Conselho das Comunidades Judaicas do Marrocos resolveu instituir uma fundação específica para preservar o legado judaico no país. A “Fédération du Patrimoine Culturel Juif Marocain” (FPJM) tem a missão de reabilitar e restauras sinagogas e demais construções judaicas, sendo reconhecida pelo governo marroquino como uma organização de utilidade pública.

Desde então, com a cooperação do governo, também foram reformados 167 cemitérios judaicos em todo o país, com a restauração de 12 mil sepulturas.

 Congraçamento das religiões

Azoulay, que também é conselheiro da “Aliança de Civilizações das Nações Unidas” (UNAOC), presidente da “Fundação Três Culturas”, em Sevilha, na Espanha, e comanda a “Anna Lidh Foundation”, com sede em Alexandria, no Egito, foi agraciado em março deste ano com o prêmio “Líder Judeu Sefardita” , ofertado pela “Fundação de Preservação da História Visual do Povo Judeu”  (PJVH, na sigla em inglês), em Nova York, que destacou seu trabalho em prol do congraçamento das religiões e da preservação da história e cultura judaicas no Marrocos.

Um dos resultados pode ser observado na alteração da constituição do país, que em 2011 inseriu um inciso em que afirma que o Marrocos “foi nutrido e enriquecido por influências hebraicas.” Ainda assim, por ser membro da Liga Árabe, o Marrocos desde 2001 não mantém laços diplomáticos oficiais com Israel, o que não impede que mais de 50 mil israelenses visitem o país, a cada ano.

Ano passado foi inaugurada uma rota Tel Aviv-Casablanca, com conexão na Ilha de Malta.


Em abril, na competição internacional de Judô que ocorreu em Marrocos, a judoca israelense Timna Nelson-Levy teve a emoção de subiu ao pódio e escutar o hino “hatikva”, tendo ao fundo a bandeira de Israel. Ela conquistou a medalha de ouro no “Agadir Grand Prix” e a execução do hino israelense neste país muçulmano foi um fato inédito que provocou orgulho em Israel, mas que gerou uma forte polêmica entre os marroquinos.


Reação adversa

Apesar a singularidade do Marrocos em relação ao mundo árabe, também neste país existe considerável oposição a Israel, principalmente vinda de alguns setores políticos. O partido da Justiça e Desenvolvimento (PJD, na sigla em francês), muçulmano conservador, que governa o país desde 2011, protestou publicamente contra a exibição da bandeira de Israel e a execução do hino israelense que foi tocado pela primeira vez na história do reino de Marrocos.

Qualificou o ato de “inaceitável e provocador para com os sentimentos dos cidadãos marroquinos”, exortando a “expulsão” da comitiva israelense. Na nota, o PJD propôs a punição dos promotores do evento pela “profanação do solo marroquino” e concluiu afirmando que “Jerusalém foi e sempre será a capital da Palestina”.

A repercussão nas redes sociais foi intensa e os ânimos ficaram acirrados, com os usuários insistindo para que os organizadores da competição fossem processados.

Obstáculos e boicotes

Durante anos, atletas israelenses têm enfrentado obstáculos e boicotes em eventos esportivos realizados em países árabes com maioria muçulmana.

Em novembro de 2017, o próprio Marrocos inicialmente ameaçou não conceder os vistos para a equipe israelense de Judô participar do Campeonato Mundial de Judô, em Marrakech. Várias organizações ligadas ao partido que governa o país realizaram um ato de protesto contra a presença da delegação israelense. Mas, ao final, os atletas israelenses puderam usar as insígnias israelenses nos uniformes.


No mês anterior, em outra competição, judocas israelenses conquistaram cinco medalhas, no “Grand Slam” de Abu Dhabi, mas as autoridades dos Emirados Árabes não permitiram que a equipe de 12 atletas exibisse o distintivo de Israel (ISR) nos uniformes, nem portassem bandeiras ou que o hino fosse executado.

E para culminar, atletas de Marrocos e dos Emirados se recusaram a cumprimentar os israelenses que os derrotaram.

Festival une judeus e muçulmanos

Ainda que não faltem dificuldades no relacionamento de Israel com Marrocos, recentemente duas delegações daquele país visitaram Israel. Uma composta por empresários marroquinos,cineastas e escritores, e a outra formada de mulheres que participaram de palestras sobre a emancipação feminina.

Outro fato a destacar que contribui para uma melhor relação entre judeus e muçulmanos é o Festival de Música Andaluz que acontece todos os anos na cidade de Essaouira (antiga Mogador), na costa Atlântica de Marrocos.

 Por iniciativa de Azoulay, desde 2003 esta cidade portuária, de 70 mil habitantes, abriga o “Festival des Andalousies Atlantiques” que atrai milhares de admiradores e reúne músicos e cantores judeus e muçulmanos especializados nesse tipo de música medieval nascida na região da Andaluzia, na Península Ibérica, também conhecida como Al-Andalus (denominação árabe) e Sefarad (nome em hebraico).

Durante oito séculos, a partir de 711, quando os mouros dominaram esta parte da Espanha atual, floresceu uma cultura única, de raízes árabe-judaica-andaluz, até hoje lembrada e cultivada.

O evento de 2017 contou com as apresentações conjuntas do rabino e cantor de origem marroquina Haim Louk  e do tenor muçulmano Abderrahim Souiri, acompanhados da orquestra de músicos árabes “Tetouan Mohamed Larbi Temsamani”, regida pelo maestro Mohamed El-Amine Akrami.

O rabino Louk, que vive nos Estados Unidos, já gravou mais de 100 CDs e se apresenta regularmente em recitais de música clássica andaluz em Israel, Espanha, França, Bélgica, Canadá e Polônia. Ele canta textos da Torá em hebraico embalados pela melodia andaluz sefardita.

Em geral, o festival se desenvolve em 3 dias, com apresentação de concertos instrumentais, espetáculos de canto e dança, além de seminários e debates em torno da riqueza das diversidades culturais que compõe a cultura andaluz. Em 2017, foi feita uma homenagem especial ao rabino e poeta marroquino David Elkaïm (1865-1942).

Para Azoulay - pai de Audrey Azoulay, ex-ministra da Cultura da França e atual diretora geral da UNESCO - Essaouira é o que o Oriente Médio já foi e que ainda pode ser.