Por Sheila Sacks
“Eu
fui enviado pela revista ‘Placar’ para contar histórias e o número de medalhas
conquistadas pelos brasileiros. E, de repente, me vi contando o número de
mortos.” (Michel Laurence, jornalista esportivo falecido em 2014)
Publicado no Observatório da Imprensa
Em outubro de 2016, encerrados os
Jogos Olímpicos do Rio (de 5 a 21 de agosto), uma solenidade marcará o
engajamento da Alemanha e do Comitê Olímpico Internacional (COI) ao projeto
memorial que insere os 11 desportistas israelenses (cinco atletas e seis
treinadores) assassinados durante a Olimpíada de Munique, em 1972, no panteão
histórico dos mártires olímpicos. A construção de 2,3 milhões de dólares está
sendo erguida entre a Vila Olímpica, local do atentado, e o estádio olímpico de
Munique, e sua instalação contou com o apoio financeiro do governo alemão, do COI,
da Confederação alemã de Esportes Olímpicos (DOSB, na sigla em alemão), da
Fundação para o Desenvolvimento Global de Esportes (GSD, na sigla em inglês) e
de outras organizações internacionais.
Passaram-se mais de quatro décadas para que o COI e seus dirigentes
reconhecessem efetivamente o tamanho da tragédia que se abateu em Munique e o
peso de seu legado em termos de responsabilidade moral e pública. Desde então,
a mensagem é clara: aos governos de países que sediam os Jogos não é dada a
possibilidade de falhar ou se omitir, sobretudo no quesito da segurança, sob
pena de comprometer, de forma indelével, o ideal olímpico que anima milhares de
atletas e visitantes nesse que é o maior espetáculo contemporâneo de
confraternização entre povos e nações.
Por isso, entende-se a manifesta
preocupação do diretor do Departamento de Contraterrorismo da Agência
Brasileira de Inteligência (ABIN), Luiz Alberto Sallaberry, diante do aumento
de brasileiros seguidores do Estado Islâmico (EI). Ele atribui o fato ao “mecanismo
da internet” e “às facilidades migratórias do Brasil”. Em meados de abril, em
uma Feira Internacional de Segurança Pública ocorrida no Rio de Janeiro,
Sallaberry confirmou que a probabilidade do Brasil ser alvo de ataques
terroristas foi elevada nos últimos meses e que medidas de segurança estão
sendo tomadas visando às Olimpíadas. Sessenta e sete mil homens das Forças
Armadas e da Polícia Federal estão destacados para o evento na cidade do Rio.
Terrorista
é entrevistado em documentário
Muito antes do curta (29 minutos) “Munique
72 e Além” (Munich’72 and beyond), de 2015 – que irá integrar o acervo do
Memorial de Munique -, dirigido pelo diretor de programas da TV americana,
Stephen Crisman, e apresentado em abril deste ano no festival “É Tudo Verdade”,
no Rio e São Paulo, outro documentário já abordava o sequestro e massacre dos
atletas israelenses sob uma ótica jornalística mais investigativa. Produzido em
1999, “Um dia em setembro” (On Day in September), do escocês Kevin Macdonald,
traz uma entrevista inédita com Jamal Al-Gashey, o único dos oito terroristas
que provavelmente ainda continua vivo, escondido em algum lugar da Jordânia. Com
o rosto encoberto, Al-Gashey diz: “Estou orgulhoso do que fiz em Munique porque
ajudou bastante a causa palestina. Antes de Munique o mundo não tinha ideia de
nossa luta. Mas naquele dia a palavra Palestina foi repetida em todo o mundo.” Os
terroristas exigiam a libertação de 234 presos em Israel.
Premiado com o Oscar de melhor
documentário de 2000, o filme reúne entrevistas com membros do Mossad, o
serviço secreto de Israel, e com os parentes dos atletas mortos. Também
apresenta depoimentos de funcionários do Comitê Olímpico e de policiais alemães
diretamente envolvidos nas negociações com os terroristas. Na ocasião da
premiação, Macdonald justificou de maneira contundente o
motivo que o levou a realizar o filme: “De alguma forma o massacre de Munique
foi uma transgressão inominável, a destruição de um ideal de paz e
fraternidade”. Seu produtor, John Battsek, foi mais adiante: “A investigação
para o documentário revelou uma história de mistério, conspiração, tragédia,
inépcia e terror”.
Estima-se que 900 milhões de pessoas
em mais de 100 países assistiram pela TV o ataque ao alojamento dos atletas, na
Vila Olímpica, na madrugada de 5 de setembro de 1972, e o seu desenrolar
trágico que durou 18 horas. Cinco dos oito integrantes do grupo terrorista Setembro Negro invadiram o quarto onde
dormia a equipe israelense e assassinaram dois atletas no confronto inicial,
sendo que o halterofilista Yossef Romano foi torturado e castrado. Os outros
nove desportistas foram levados pelos terroristas como reféns para um aeroporto
militar nos arredores de Munique e perderam a vida em uma tentativa fracassada
de resgate conduzida pela polícia alemã. Um policial e cinco terroristas também
morreram. Três terroristas foram detidos e em pouco menos de dois meses foram
libertados em uma troca que envolveu o sequestro de um avião da Lufthansa.
Para Steven Ungerleider, membro do
Comitê Olímpico dos EUA e um dos produtores de “Munique 72 e Além”, o atentado
de Munique “foi o primeiro ato de terror moderno e não se justifica que esse
trauma horrendo seja relegado a uma simples notinha histórica de rodapé”.
Amigo
de Hitler era presidente do Comitê Olímpico Internacional
Frente
a tal enunciado, comecemos com a performace do Comitê Olímpico
Internacional. A entidade era presidida, em 1972, pelo norte-americano Avery
Brundage (1887-1975), o mesmo que na Olimpíada Nazista de Berlim, em 1936,
havia rejeitado a proposta dos Estados Unidos de boicotarem a competição, em
razão dos atletas judeus alemães estarem proibidos de participar. Brundage tinha
sido presidente do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, era um entusiasta do
regime nazista e amigo de Hitler.
Nascido
em Detroit, esse engenheiro e desportista que foi o único norte-americano a
presidir o Comitê Olímpico Internacional, convenceu os seus compatriotas a
participarem da competição em Berlim, e em troca, a sua empresa de engenharia
recebeu um cheque em branco para construir a embaixada da Alemanha em
Washington. Mais de três décadas depois, em uma dessas coincidências
lamentáveis, esse mesmo Brundage, agora como presidente do COI, preferiu se
calar sobre o assassinato dos atletas israelenses na cerimônia realizada no dia
seguinte à tragédia. Em seu discurso apenas exaltou o espírito olímpico e
anunciou que “os Jogos devem continuar”.
A
Olimpíada de Munique teve a participação de mais de 7 mil atletas de 121 países
e ocorreu entre os dias 26 de agosto e 11 de setembro de 1972.
Abu
Mazen, da Autoridade Palestina, recolheu recursos para o massacre
Em 1999, uma autobiografia intitulada
“Palestine: From Jerusalém to Munich” revelou novos detalhes do ataque à Vila
Olímpica. Publicada na França, seu autor é Mohammed Oudeh, codinome Abu Daoud
(falecido na Síria em 2010), ex-comandante militar do Fatah (grupo paramilitar criada por Yasser
Arafat em 1959 e que atua como partido político, desde 1994, na Cisjordânia) e
mentor intelectual confesso da ação terrorista. No livro ele admite que o Setembro Negro era o
nome-fantasia adotado pelos membros do Fatah que atuou como o braço armado da
OLP (Organização para a Libertação da Palestina, criada em 1964) quando dos
ataques terroristas. Daound também descreve como Arafat e o atual presidente da
Autoridade Palestina Mahmoud Abbas (Abu Mazen) - o
homem encarregado de levantar os recursos para viabilizar a operação –
desejaram-lhe boa sorte e o beijaram no momento em que ele finalizou os
preparativos para o ataque, que vitimou um total de 17 pessoas.
Sobre Mahmoud Abbas, vale reproduzir
um item de seu histórico escolar: em 1982, dez anos depois do atentado de
Munique, ele concluiu seus estudos na Universidade de Moscou, obtendo o título
de PhD em História Oriental. A tese de seu doutorado questiona e nega os
números do Holocausto e inclui uma suposta aliança entre nazistas e líderes
sionistas durante a 2ª Grande Guerra para exterminar todos os judeus da Europa.
A fantasia mal intencionada travestida de investigação histórica intitula-se “O
Outro Lado: As secretas relações entre o Nazismo e o Movimento Sionista”.
Ainda acerca do líder
palestino, em 2003, a organização israelense de direitos humanos “Shurat Hadin
Israel Law Center” - que dá assistência jurídica aos judeus vítimas de atos
terroristas e os representa nos fóruns internacionais - enviou cartas ao então
presidente George Bush e ao Chanceler Gerhard Schroeder, conclamando as
autoridades americanas e alemãs a abrirem uma investigação em seus territórios
contra Mahmoud Abbas por suas comprovadas ligações com o Setembro Negro, principalmente na função de recolhedor de fundos
para prover atos terroristas, como o de Munique. A ação teria consistência
jurídica já que um dos atletas assassinados também tinha cidadania americana e
um dos mortos era um policial alemão.
Mais recente,
em 2014, o movimento estudantil “Students for Israel Movement” encaminhou uma carta
ao ministro da Defesa israelense para que o governo reconheça a participação do
presidente da Autoridade Palestina no massacre de Munique. O representante dos
estudantes, Elyahu Nissim, considera que o estado de Israel tem o dever moral
de declarar oficialmente que Abbas exerceu um papel fundamental na ação
terrorista e responsabilizá-lo pelas mortes.
Terroristas se abrigavam no centro islâmico de Munique
Em um longo artigo no “Wall Street Jornal”, em 2005, o
jornalista e escritor americano Ian Jonhson, após consultas em arquivos oficias
nos Estados Unidos, Inglaterra, Suíça e Alemanha, revelou que a cidade de
Munique, há várias décadas, era o centro irradiador de uma organização radical
denominada Irmandade Muçulmana (Muslim
Brotherhood), fundada no Egito em 1928 e banida de seu território em 1954 por
Gamal Abdel Nasser (que presidiu o país de 1956 a 1970), pivô de uma tentativa
de assassinato mal sucedida. O grupo retornou à legalidade em 2011, após a
queda do presidente Hosni Mubarak.
Repórter premiado com o
Pulitzer e autor da obra “A
Mosque in Munich” (2010), Jonhson usou as pesquisas realizadas para a
reportagem “How a Mosque for Ex-Nazis became Center of Radical Islam” (De que
maneira uma mesquita para ex-nazistas tornou-se centro do islamismo radical, em
tradução livre) como ponto de partida para o desenvolvimento de seu livro. O
interesse pelo tema surgiu acidentalmente quando ao entrar em uma livraria em
Londres, em 2003, folheou um livro sobre as mais importantes mesquitas do
mundo. Ao lado dos templos islâmicos de Meca, Jerusalém e Istambul, aparecia
curiosamente o de Munique (na tradução alemã, o livro ganhou o título de ‘A
quarta mesquita’).
Jonhson observa que muitos dos acusados
de atos terroristas na Europa e nos ataques de 11 de setembro nos Estados
Unidos, em algum período de suas vidas transitaram por Munique e pelo seu
centro islâmico. Essa intimidade entre a cidade alemã e os muçulmanos, segundo
Jonhson, começou à época de Hitler, depois da invasão à União Soviética, quando
o regime nazista deu uma guinada das mais espertas transformando um milhão de
soldados muçulmanos dos países da Cortina de Ferro, aprisionados em combate, em
aliados e amigos do Reich. Inclusive uma dessas brigadas formada por muçulmanos
foi destacada para a Polônia, onde teve participação ativa na aniquilação do
Gueto de Varsóvia, em 1943.
Depois
da guerra, esses combatentes nazistas se instalaram em Munique e acolheram a
organização Irmandade Muçulmana de braços abertos, sendo responsáveis pela
fundação, em 1958, do Centro Islâmico de Munique. Um ano depois, participantes
do Congresso Muçulmano Europeu selaram o pacto de tornar a capital da Baviera
um polo de convergência para todos os muçulmanos residentes na Europa. Um dos
cléricos mais atuantes do Centro Islâmico de Munique foi Nurredin N.
Nammangani, nascido no Uzbakistão e que serviu nas fileiras de Hitler, mais
especificamente na temida tropa nazista SS (Schutzstaffel). Durante décadas (faleceu
na Turquia em 2002) ele mesclou a religião com antissemitismo em suas prédicas aos
milhares de colegiais e universitários muçulmanos de várias partes da Europa.
Islamismo antissemita tem origens nazistas
Nessa
mesma linha de pensamento, o historiador alemão Stefan Meining afirma que o
Centro Islâmico de Munique está na base de uma ampla rede que se ramificou
silenciosamente pelo resto do mundo, a partir do fim da 2ª Grande Guerra,
difundindo um radicalismo a favor da “guerra santa”, que simplesmente não
existia antes disso. O encontro da teoria nazista com o fundamentalismo
religioso da Irmandade Muçulmana foi o responsável pelo nascimento da figura
híbrida e aterradora do terrorismo moderno, uma das grandes tormentas que o
mundo ocidental tem enfrentado. “Se você quer entender a estrutura política do
Islã, você tem que se debruçar sobre o que aconteceu em Munique”, alerta o
historiador. Meining é autor do livro “Eine Moschee in Deutschland” (Uma
mesquita na Alemanha), que faz uma ponte entre os nazistas e a ascensão do
islamismo político no Ocidente.
Outro
estudioso alemão, o cientista político e professor universitário Matthias
Kuntzel, também relaciona a Irmandade Muçulmana com as ideologias extremistas
da jihad (guerra santa) dos grupos Fatah, Hamas, Hezbollah, al-Qaeda e do atual
Estado Islâmico (EI). No ensaio “Islamic Antisemitism and its Nazi Roots” (O
Islamismo antissemita e as suas origens nazistas), Kuntzel destaca que até 1930
a ideologia islâmica tradicional não pregava o ódio aos judeus e nem falava em
guerra santa. Posteriormente, a doutrina absorveu o marketing da propaganda
nazista e antissemita europeia e recebeu o apoio financeiro e estratégico de
Hitler, que financiou as lideranças islâmicas ligadas à Irmandade Muçulmana a
promoverem atos de perseguição e violência contra os judeus no Egito e na Palestina
sob o Mandato Britânico. Kuntzel reuniu suas pesquisas no livro “Jihad and
Jew-Hatred: Islamism, Nazism and the Roots of 9/11” (Jihad e o ódio aos judeus:
o islamismo, o nazismo e as raízes do 9/11), publicado originalmente em alemão,
em 2002, e traduzido para o inglês em 2007.
Vivendo
na cidade portuária de Hamburgo, Kuntzel tinha 17 anos quando aconteceu o
ataque terrorista em Munique. Ele conta que este foi um fato que o marcou de
tal forma que o obrigou a procurar uma explicação. “Eu era um jovem idealista e
queria acreditar no lado bom das pessoas e não entendia como poderia acontecer
um massacre daquele em uma Olimpíada.”
Minuto de silêncio negado por
quatro décadas
De
Munique à Rio-2016, lá se vão mais de 40 anos e dez Jogos nas cidades-sede de
Montreal (1976), Moscou (1980), Los Angeles (1984), Seul (1988), Barcelona
(1992), Atlanta (1996), Sydney (2000), Atenas (2004), Pequim (2008) e Londres
(2012). Durante esse tempo, pedidos foram feitos por familiares dos atletas
israelenses para que o COI promovesse um minuto de silêncio na abertura ou no encerramento
de uma das Olimpíadas para lembrar as vítimas. Porém, a alegação de que esse
tipo de homenagem poderia abalar os atletas ou provocar constrangimento às
delegações dos países árabes pontuou as negativas sucessivas emitidas pelo COI.
Mas,
para a Olimpíada do Rio – que vai receber 10.500 atletas de 206 países e será
vista por mais de 3 bilhões de espectadores ao redor do mundo - o atual presidente do COI, o alemão e
ex-esgrimista olímpico Thomas Bach, parece ter encontrado uma solução
diplomática. Ele anunciou que haverá um minuto de silêncio na solenidade de encerramento
dos Jogos, “para permitir que todos no estádio, bem como aqueles que estão
assistindo em casa, lembrem dos entes queridos que já faleceram.” Antes, no dia
14, em parceria com o Comitê Rio-2016, o COI finalmente irá homenagear os 11
atletas mortos em uma cerimônia na Vila Olímpica da Barra da Tijuca, sinalizando
um considerável diferencial de humanismo, generosidade, tolerância e boa
vontade que já distingue a Rio-2016 antes mesmo de seu início, das demais
Olimpíadas, e em especial da de Munique com a sua terrível história de
fanatismo e barbárie.