Por Sheila Sacks
publicado no portal "Observatório da Imprensa"
publicado no portal "Observatório da Imprensa"
“Ninguém faz nosso papel de seleção e de conexão da informação” (José Roberto de Toledo, presidente da Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo)
Em uma década iniciada sob o impacto da divulgação pela mídia de
documentos e
e-mails confidenciais do governo americano na sua prática de monitoramento cibernético a governos, políticos e cidadãos, os espiões e aqueles que revelam segredos militares e de Estado continuam sendo o lado mais vulnerável da relação fonte-jornalista em reportagens de fundo investigativo.
e-mails confidenciais do governo americano na sua prática de monitoramento cibernético a governos, políticos e cidadãos, os espiões e aqueles que revelam segredos militares e de Estado continuam sendo o lado mais vulnerável da relação fonte-jornalista em reportagens de fundo investigativo.
Os exemplos mais recentes são o do soldado Bradley Manning, informante
do site WikiLeaks de Julian Assenge, condenado pela justiça americana a 35 anos
de prisão por vazar documentos secretos em 2010; e do ex-analista da Agência
Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) Edward Snowden, indiciado por
espionagem nos EUA e asilado na Rússia por transmitir dados confidenciais ao
jornalista Glenn Greenwald, que os publicou no jornal britânico The
Guardian, em junho de 2013. Considerado
traidor, Snowden pode ser sentenciado a 30 anos de prisão se retornar aos EUA.
O caso Pollard
No início deste ano, os jornais The New York Times e The
Guardian pediram, em seus editoriais, clemência para Snowden alegando
que a sua atitude de denunciar a vigilância global excessiva exercida pela NSA não
mereceria condenação. Semanas antes, ambos os jornais haviam publicado novos
documentos repassados pelo ex-técnico da agência com revelações de que o órgão
estatal em cooperação com os serviços de inteligência britânicos espionou
e-mails de políticos israelenses e do então premiê Ehud Olmert e do ministro de
Defesa Ehud Barak, principalmente em 2008 e 2009. A notícia também foi
publicada simultaneamente no jornal alemão Der Spiegel, em
20.12.2013.
Imediatamente, na esteira das revelações de Snowden a mídia israelense
engatou um tema que há quase três décadas incomoda e constrange autoridades
governamentais, lideranças comunitárias e religiosas, políticos e diplomatas de
Israel e dos Estados Unidos. Trata-se do caso de Jonathan Pollard, um
ex-funcionário da marinha americana que vazou documentos sigilosos para Israel
sobre as atividades de espionagem dos Estados Unidos no mundo
árabe. Preso em 1985 e condenado em 1987, Pollard cumpre a pena em
uma penitenciária federal na Carolina do Norte.
Entrevista agravou pena
Apesar de se considerar culpado e ter feito um acordo judicial com o
Ministério Público, Pollard foi condenado à prisão perpétua. Na época, seus
advogados disseram que o ex-analista cooperou com as autoridades, mas recebeu
uma sentença mais dura do que a imposta àqueles que espionam para países
inimigos.
O real motivo da decisão só viria a ser conhecido décadas depois, em
2012, quando documentos da CIA (Central Intelligence Agency) foram liberados
pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington. O
agravamento da sentença estava relacionado ao conteúdo de uma entrevista dada
por Pollard ao jornalista Wolf Blitzer,
âncora da rede americana de TV CNN (Cable News Network) e um dos profissionais
mais conhecidos da imprensa americana. A matéria publicada no Jerusalem
Post teve grande repercussão na mídia americana. Do interior de sua
cela, Pollard culpou os EUA por não compartilhar informações vitais à segurança
de Israel e disse que entregou fotos da sede da OLP na Tunísia e dados sobre a capacidade
bélica de países árabes como a Líbia de Kadhafi.
A reportagem divulgada três meses antes do
veredicto provocou irritação nos promotores do caso que consideraram a matéria uma
violação dos termos do acordo judicial assinado pelo acusado. No julgamento, a
promotoria denunciou Pollard por divulgar dados sigilosos na mídia
comprometendo fontes e métodos da comunidade de inteligência, apesar da
contestação dos advogados de que o departamento de Justiça tinha autorizado a
entrevista.
Pouco a perder
Em artigo no Washington Post, traduzido e veiculado
pelo site Observatório da Imprensa (11.06.2013), a jornalista Sara
Chayes, que trabalhou como repórter de rádio e assessora no Estado-Maior
Conjunto dos Estados Unidos, questiona a aparente imputabilidade dos
profissionais da mídia, ainda que considere “indiscutível” para a democracia “o
valor de uma imprensa corajosa e sem restrições”.
Ela observa que os repórteres têm pouco a perder quando divulgam
documentos secretos e que jamais um jornalista americano foi processado por
publicar informações confidenciais. Para Chayes, os jornalistas muitas vezes
estimulam suas fontes a vazar informações confidenciais porque “não compartem
parte da responsabilidade pelas transgressões”, ou seja, o risco para eles é
mínimo (“Os dois lados do jogo” – edição 750).
Porém, o mais revelador da matéria de Chayes é a denúncia de que haveria
um “duplo padrão” nas investigações sobre veiculação de dados sigilosos. Segundo
a jornalista, as acusações feitas pelos órgãos de segurança do governo Obama
até então tinham sido todas dirigidas a funcionários governamentais da raia
miúda, permanecendo impunes os funcionários do alto escalão que autorizam ou
mesmo vazam documentos.
Ponto de equilíbrio
A respeito do tema, o presidente Barack Obama, em palestra na
Universidade de Defesa Nacional, em Fort McNair, no ano passado, falou da
necessidade de se estabelecer um “equilíbrio certo” entre a segurança da nação
e a sociedade aberta. Disse que como comandante em chefe, ele acredita que é
preciso manter em sigilo informações que protegem as operações e o pessoal de
campo, impondo consequências para quem viola a lei e rompe o compromisso de
proteger informações sigilosas.
O presidente americano mostrou-se a favor de uma mídia sem cerceamentos
legais que possam inibi-la. “Os jornalistas não devem correr riscos legais por
fazer o seu trabalho”, afirmou. E acrescentou: “Uma imprensa livre também é
essencial à democracia. É isso o que somos. E estou preocupado com a
possibilidade de que as investigações sobre vazamentos possam desestimular o
jornalismo investigativo que faz o governo prestar contas.”
Entretanto, Obama foi taxativo em relação às fontes que transmitem
material confidencial, equiparando-as aos espiões que revelam dados do governo
a países inimigos e que são julgados como traidores: “Nosso foco deve ser
naqueles que violam a lei.” Enfatizando a necessidade de haver um controle para
que as ameaças não se elevem, ele listou atos terroristas sofridos por cidadãos
e militares dos EUA nas últimas décadas em várias cidades do mundo, culminando
com o ataque de 11/9 ocorrido em solo americano (“Sobre o futuro da nossa luta
contra o terrorismo”, em 23.05.2013).
Apesar do apoio presidencial a uma imprensa livre, relatório do Comitê
para Proteção dos Jornalistas (Committee to Protect Journalists - CPJ), com
sede em Nova York, mostrou que os jornalistas americanos têm enfrentado
dificuldade no acesso às informações porque suas fontes se sentem inseguras e
intimidadas com a ofensiva do governo Obama contra vazamentos. Em 2012, mais de
100 repórteres e escritórios da agência de notícias Associated Press tiveram
suas chamadas telefônicas entre abril e maio vasculhadas pelo governo americano
por ordem do Departamento de Justiça. A causa foi a publicação de uma
reportagem revelando detalhes da operação da CIA no Iêmen que frustrou o plano
de um grupo ligado à Al Qaeda para explodir bombas em aviões dos EUA.
A notícia sobre a coleta secreta dos registros telefônicos dos aparelhos
fixos e celulares dos jornalistas só veio à tona um ano depois, em maio de
2013. Uma das representantes da ONG “União Americana pelas Liberdades Civis”
(ACLU, na sigla em inglês), Laura Murphy, que atua em Washington, classificou o
episódio de “padrão” na atual administração. “O governo Obama tem sido um dos
mais agressivos no que se refere à perseguição dos denunciantes e esta é uma
conduta altamente perturbadora.”
Por sua vez, o relatório do CPJ também destaca a intensificação da Lei
de Espionagem de 1917 que pune os que entregam dados aos jornalistas. A lei
federal criada para julgar espiões e traidores foi aprovada pouco depois dos
EUA entrarem na 1ª Guerra Mundial e vem sendo aplicada pelo governo Obama com
mais regularidade do que as presidências anteriores. O soldado Bradley Manning
foi considerado culpado pela justiça militar de violar a citada lei porque
transmitiu dados relativos às guerras do Iraque e do Afeganistão e outros
documentos secretos ao portal WikiLeaks. O ex-analista Snowden que relatou à
mídia sobre o programa secreto de monitoramento de dados da NSA também está
enquadrado pela lei, acusado de fornecer informações não autorizadas de defesa
nacional.
O especialista jurídico de segurança nacional Stephen Vladeck, em
entrevista ao portal Deutsche Welle explicou que a Lei de
Espionagem não faz distinção entre espiões e fontes: “Quer se fale de
vazamentos de informações, delação ou espionagem clássica, a lei trata todos os
três como o mesmo crime, por isso o governo tende, compreensivelmente, a
recorrer a ela, sempre que pode.”
Identidades protegidas
No início de 2013, um ex-agente da CIA foi condenado pela Justiça
americana a 30 meses de prisão por ter fornecido a um repórter o nome de um
colega envolvido em tortura contra presos da base de Guantánamo. Entrevistado
pela TV ABC News, em 2007, John Kiriakou denunciou práticas de tortura usadas
por agentes da CIA fora dos EUA. Tempos depois, ele confirmou ao jornalista
Scott Shane, do New York Times, o nome de um dos agentes envolvidos. O
indiciamento de Kiriakou ocorreu em abril de 2012 após uma longa investigação e
a juíza federal responsável pelo caso, Leonie Brinkema, manifestou seu
desagrado pelo tamanho da pena. Mas um acordo feito entre a defesa e os
promotores - com Kiriakou admitindo sua culpa pela violação da identidade do
agente da CIA - reduziu o tempo de sua condenação.
Anos antes, em 2003, outro caso rumoroso e polêmico, também envolvendo a
divulgação da identidade de uma agente da CIA, ensejou um incidente político
com o comprometimento de membros da Casa Branca e do governo George W. Bush. Em
uma investigação que durou perto de quatro anos descobriu-se que o chefe de
gabinete do vice Dick Cheney foi o autor da informação de que a mulher do
ex-embaixador Joseph C. Wilson, que serviu no Iraque e em países da África, era
funcionária da CIA.
Com base na Lei de Proteção de Identidades de funcionários ativos da
Inteligência, instituída em 1982, o assessor Lewis Libby foi condenado em 2007
a 30 meses de prisão pelo vazamento para a imprensa da identidade da espiã
Valerie Plame, revelada em um artigo no Washington Post, semanas
depois que o ex-diplomata acusou a Casa Branca de utilizar argumentos falsos
para justificar a Guerra do Iraque. Mas Libby teve a pena perdoada pelo
presidente Bush, uma prerrogativa que o sistema americano concede aos
presidentes dos EUA.
Dois anos antes da condenação de Libby, a jornalista do New York Times, Judith Miller, já tinha
sido chamada a testemunhar sobre o caso Valerie Plame recusando-se a fornecer o
nome da fonte de vazamento da Casa Branca. Ela ficou detida por três meses acusada
de “desacato ao tribunal”. Tanto Miller como Robert D. Novak, autor do artigo
“Mission Niger” (14.07.2003) que desencadeou a tempestade em Washington,
pertenciam ao seleto grupo de jornalistas simpáticos aos gabinetes palacianos.
Uma ex-assessora da vice-presidência, Cathie Martin, em depoimento, relatou a
rotina de favorecimento de acesso às informações privilegiadas aos jornalistas
“amigos”, aos quais se facilitavam entrevistas exclusivas e liberavam-se dados
e documentos, inclusive com a orientação quanto ao sigilo ou não das fontes
citadas.
Obediência à lei
Ainda que alguns jornalistas já tenham sido chamados a depor por
envolvimento em casos de vazamentos de documentação secreta, são as fontes que
“quebram” o sigilo – em sua maioria formada por funcionários a serviço do
Estado – as partes mais duramente atingidas pelo rigor da Justiça. Em 2009, um
juiz federal do estado da Virgínia, T.S.Ellis, incluiu 100 horas de serviço
comunitário à redução de sentença que favoreceu um alto funcionário do
Departamento de Defesa acusado de vazar informações a lobistas. O juiz decidiu
que Lawrence Franklin que trabalhou no Pentágono teria a tarefa de falar aos
jovens sobre a importância de os funcionários públicos obedecerem à lei. “Os
direitos protegidos pela Primeira Emenda, às vezes devem ceder à necessidade de
segurança nacional”, justificou T.S.Ellis (a Primeira Emenda da Constituição
americana garante a todos os cidadãos a liberdade de expressão e resguarda a
liberdade de imprensa no país).
Mas, para os defensores de John Kiriakou, o ex-agente da CIA devia ser
absolvido por denunciar o uso de tortura contra presos na base americana de
Guantánamo. Em relação a Jonathan Pollard, a defesa mais contundente partiu do
escritor e jornalista italiano Giulio Meotti para quem as informações do
ex-analista da marinha dos EUA ajudaram Israel a se preparar para os ataques de
mísseis iraquianos durante a Guerra do Golfo (1990-1991), quando foguetes Scud
de Saddam Hussein atingiram Tel Aviv e não houve vítimas (“J’accuse on Pollard
– The Jerusalem Post, em 22.06.2011).
O jornalista americano Gleen Greenwald, que ganhou status de celebridade
com as matérias sobre o programa de monitoramento da NSA, com base nos
documentos repassados por Edward Snowden, defende o trabalho investigativo da
imprensa. Para o profissional que reside no Brasil, “o jornalismo não é nem
deveria ser um crime nos Estados Unidos”. O comentário veio a propósito da
declaração do procurador-geral do país, Eric Holder, em novembro de 2013, de
que apesar de não concordar com as reportagens de Greenwald, o governo
americano não pretende processá-lo. De acordo com o procurador, “todo
jornalista envolvido em verdadeiras atividades jornalísticas não será
processado pelo Departamento de Justiça”.
Uma afirmação politicamente correta e que não fere os princípios do
Manual sobre a Lei de Comunicação Social elaborado pela professora Jane
Kirtley, titular da cadeira de Direito e Ética da Comunicação Social da
Faculdade do Minnesota. O texto, em edição digital, consta no link do Gabinete
de Programas de Informação Internacional do Departamento de Estado dos EUA
(portal IIP Digital). Em seu prólogo, a frase do filósofo e economista inglês
do século 19, John Stuart Mill: “O mal inerente a silenciar a expressão de uma
opinião é o de que tal constitui um roubo à humanidade, à posteridade e também
à geração atual; e àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles
que a apoiam.”
Uma assertiva onde vale trocar, no atual contexto do século 21, o vocábulo “opinião” por “informação”.
Uma assertiva onde vale trocar, no atual contexto do século 21, o vocábulo “opinião” por “informação”.