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quinta-feira, 23 de maio de 2013

Cativeiro de soldado israelense inspira séries de TV

Por Sheila Sacks


Histórias reais muitas vezes tornam-se incríveis enredos para fantásticos roteiros cinematográficos ou mesmo séries de televisão. O escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) na introdução do seu livro “O imaginário Coletivo” destaca que por trás de muitas notícias esconde-se uma história pedindo para ser contada. “É a história virtual que complementa ou amplia a história real”, assinala Scliar que por mais de 15 anos escreveu textos ficcionais para o caderno “Cotidiano” da Folha de São Paulo tendo como base as reportagens do jornal.

Fonte de inspiração para a série de TV israelense Hatufim (“Sequestrado”, em hebraico), a história de Gilad Shalit, capturado pelo grupo radical Hamas que o manteve prisioneiro por mais de cinco anos, traz ingredientes psicológicos interessantes capazes de provocar desdobramentos e mudanças de ordem pessoal, religiosa e política nos principais envolvidos no episódio.

Shalit era um soldado israelense de 19 anos quando em 25 de junho de 2006 militantes palestinos ligados ao Hamas atacaram o posto militar onde servia na fronteira com a Faixa de Gaza e o levaram. Durante o tempo em que esteve desaparecido a incerteza sobre o seu destino – se estava morto, ferido ou continuava vivo – não impediu que sucessivas campanhas por seu regresso ganhassem espaço e força em Israel e em outras partes do mundo.

Em 2010, os pais de Shalit acompanhados por ativistas empreenderam uma marcha de 12 dias, da Galileia a Jerusalém, onde permaneceram acampados por mais de um ano em frente à residência do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu para pressionar o governo a assumir um acordo que trouxesse o soldado de volta.

A libertação de Shalit ocorreu em 18 de outubro de 2011, no Egito, após um acordo entre o governo de Israel e o Hamas. Foram soltos 1.027 prisioneiros palestinos, 280 deles condenados à prisão perpétua pela morte de civis israelenses. Falando à TV egípcia, pouco antes de retornar a Israel, Shalit mostrou-se confiante de que a libertação de centenas de prisioneiros em troca de sua vida pudesse contribuir para a paz entre israelenses e palestinos.

Seriado antecipa desfecho que comoveu a nação

Levando a assinatura de Gideon Raff – um roteirista e diretor de filmes de 40 anos, nascido em Jerusalém e que estudou cinema em Los Angeles -, o seriado Hatufim ou Prisioners of War (“Prisioneiros de Guerra”, título em inglês) teve seus primeiros 10 episódios exibidos pela TV israelense em 2010, entre março e maio. No mesmo ano foi escolhida como a melhor série dramática pela Israeli Academy of Film and Television, instituição que reúne 750 representantes da indústria de TV e cinema do país.

Curiosamente, apesar do sucesso e das críticas positivas, a segunda temporada da série, com 14 capítulos, só foi produzida e apresentada dois anos depois, nos últimos meses de 2012, a reboque do seriado norte-americano Homeland, baseado na criação do próprio Raff, e que arrebatou os mais importantes prêmios da TV americana: os troféus Emmy (2012) e Globo de Ouro (2013), ambos como a melhor série dramática.

Embora explorando o tema do retorno à pátria de militares capturados pelo inimigo, as séries Hatufim e Homeland têm histórias e personagens diferentes. Na primeira, são dois os soldados que regressam a Israel após 17 anos de cativeiro no Líbano em mãos de extremistas islâmicos. A série se inicia com a troca dos soldados por terroristas presos em Israel acusados de um atentado a bomba que matou dezenas de pessoas. Os israelenses voltam com os restos mortais de um terceiro militar morto em uma sessão de tortura e a partir daí a história gira em torno das dificuldades dos personagens em superarem o trauma do cativeiro e se adaptarem a um novo cotidiano. Também avaliações psicológicas revelam discrepâncias em seus relatos e uma investigação é iniciada para descobrir o que eles possam estar escondendo.

No roteiro desenvolvido por Howard Gordon e Alex Gansa para a plateia norte-americana, o protagonista é um oficial dos EUA que se acredita morto no Iraque, após ser capturado pela al Qaeda, e que retorna ao país oito anos depois de seu sumiço. Resgatado do cativeiro é saudado como herói pela população, mas surgem suspeitas em órgãos de segurança de que ele faça parte de uma célula terrorista que planeja um ataque em solo americano.

Em janeiro de 2013, ao receber o prêmio de melhor atriz por seu trabalho em Homeland, a novaiorquina Claire Danes, que protagoniza uma agente da CIA, declarou que a série é uma das favoritas do presidente Barack Obama. “Isso deixa claro a relevância do trabalho. A história fala da ansiedade e do desassossego que vivemos como sociedade, em uma nova era onde não está claro quem é o inimigo”, disse. Dentro dessa percepção, o atentado ocorrido na maratona de Boston, em 15 de abril, que resultou na morte de 3 pessoas e teve 264 feridos, muitos deles com mutilações e queimaduras, é um exemplo trágico dessa nova realidade. Os autores do crime, os irmãos Tsarnaev nascidos na Chechênia, viviam nos EUA e eram cidadãos americanos.

Esse tema, aliás, do inimigo que está entre nós, em nossa casa, tem mexido com a cabeça de roteiristas mundo afora. Em 2013, a franquia de Hatufim ganhou novos espaços e o seriado vai ser produzido na Rússia e no México, com histórias adaptadas as suas realidades.

No cativeiro, Shalit ouviu rádio e assistiu TV

Mas, voltando a Shalit, seis meses depois de sua volta ele se desligou oficialmente do exército israelense e logo em seguida tornou-se colunista esportivo do jornal Yediot Aharanot, o mais lido do país. Em seu primeiro artigo, Shalit contou que o amor pelos esportes o ajudou a suportar os anos de cativeiro e foi capaz de prover alguma conexão pessoal com seus captores. Fã de futebol e basquete, ele acompanhava os jogos dos times israelenses através da rádio e os campeonatos das ligas europeias nos canais de TV árabes. “Engajar-me no esporte me deu força para não desistir”, escreveu. Era uma espécie de pausa temporária da realidade ao meu redor.” E acrescenta: “Nas conversas acerca dos jogos, o denominador comum era o esporte. Sobre política eu nunca concordei em falar com eles.”

Em outubro de 2012, para marcar um ano da libertação do ex-refém, a TV israelense (Canal 10) exibiu um documentário a partir de alguns relatos pinçados na imprensa. A correspondente para o Oriente Médio da BBC, Yolande Knell, comentando o conteúdo do documentário, observou: “Em um trecho, Shalit revela que para lidar com a ansiedade e o tédio do cativeiro ele desenhava mapas de sua cidade natal Mitzpe Hilla, para lembrar, imaginar os lugares. Disse que tentava ser otimista e se focar nas pequenas e boas coisas que tinha, e que seus sequestradores o alimentavam bem, jogavam xadrez e dominó e quase nunca o agrediam. Podia assistir a notícias na televisão em árabe, e depois acabou ganhando um rádio onde podia ouvir estações israelenses. E que, às vezes, assistia junto aos sequestradores os programas de esportes e filmes na TV.”

Operação militar matou planejador do sequestro

Um mês depois da apresentação do documentário, em 14 de novembro, o comandante das Brigadas Izz el-Deen al-Qassam (braço armado do Hamas), Ahmed al-Jabari, 52 anos, morreu durante uma operação militar israelense na cidade de Gaza. O carro que dirigia foi atingido por um projétil seletivo e se incendiou. Jabari foi o carcereiro de Shalit e gerenciou toda a operação de custódia do prisioneiro, transportando-o por cinco anos para diferentes esconderijos até a sua libertação. Inclusive esteve presente na entrega de Shalit para os intermediários egípcios em Rafah, na fronteira com o Sinai, em uma das poucas vezes em que apareceu em público.

Nascido em Gaza, Jabari foi do grupo palestino Fatah e depois se ligou ao Hamas, financiando e dirigindo atentados terroristas contra Israel. Ele planejou o ataque suicida a um ônibus em Kfar Darom, na faixa de Gaza, que matou 7 soldados israelenses e um civil, em 1995. Por ocasião da Segunda Intifada, o período de 2000 a 2006 marcado por sucessivos confrontos entre militantes palestinos e forças israelenses na Cisjordânia e Faixa de Gaza, Jabari direcionou vários ataques a bomba contra Israel, matando centenas de civis. Foi também o responsável pela escalada de ataques com foguetes de forte poder destrutivo às cidades israelenses densamente povoadas como Ashkelon, Ashdod e Beersheva, no sul do país. Somente em 2012, mais de 800 foguetes de médio e longo alcances foram disparados pelo Hamas contra o território israelense e a operação militar “Pilar Defensivo”, na qual Jabari foi morto, teve o propósito de eliminar os locais de treinamento e de lançamentos desses foguetes.

Sem sentimento de vingança

Com a morte de Jabari, o semanário alemão Der Spigel – um dos mais importantes da Europa com circulação semanal de 900 mil exemplares – enviou seu jornalista político Dieter Bednarz para uma entrevista com Shalit em Israel. O encontro se deu na Galileia, na casa de dois pavimentos onde o ex-prisioneiro reside com os pais. O repórter alemão conta que Shalit disse não ter percebido a presença de Jabari ao seu lado no dia da libertação. “Eu só olhava para frente, não para o lado ou para trás”, justificou. Contudo, fotos publicadas na mídia mundial mostram Jabari e Shalit juntos, lado a lado, de uma forma que fica difícil supor que ambos jamais se comunicaram.

Sobre os anos de cativeiro, segundo o repórter, Shalit se mostrou hesitante, parecendo lutar com cada frase que pronunciava. Ele revelou que não sentiu satisfação quando soube da morte de Jabari porque nem mesmo conhecia a pessoa. Mais adiante, o repórter assinala uma frase dita por Shalit que o impressionou: “The killing has to stop” (“a matança tem que parar”, em tradução livre).

Na reportagem, Bednarz destaca que após essa mensagem a conversa foi interrompida pelo pai de Shalit, com a alegação de que o filho precisava ser deixado em paz, pois não é uma figura pública (“the boy needs to be left alone. Gilad isn”t a public figure”). Para o jornalista, Shalit não demonstrou sentimentos de vingança, apesar dos anos de cativeiro e da provação pela qual passou. No dia da entrevista, destacou Bednarz, sua ansiedade era para assistir na TV uma partida de futebol entre os times ingleses do Arsenal e Tottenham.

Meses antes, Shalit tinha estado no set de Homeland, em Jaffa, cuja produção filmou algumas cenas em Israel, sendo fotografado ao lado de Claire Danes.

Biografia inédita a caminho

Mas, ainda que Shalit procure se manter afastado das questões políticas e tente viver uma vida normal, situações ocorrem em que ele se vê envolvido de alguma forma com seu passado. Foi o que ocorreu na Catalunha, em 2012, quando resolveu assistir a um jogo entre os times do Barcelona e do Real Madri e houve manifestações contra a sua presença no estádio. Segundo Shalit, ele foi acompanhado por uma equipe de segurança em função das ameaças de protesto por grupos pró-palestinos.

O incidente causou constrangimento ao clube e a direção do Barcelona emitiu uma nota afirmando que não convidou Shalit para o jogo, apenas aceitou seu pedido para ver uma partida durante a visita que faria a cidade. O clube ainda informou que esse procedimento foi estendido a três representantes palestinos.

Enfim, vai ser difícil Shalit se desprender de um passado que mobilizou uma nação durante meia década e que envolveu decisões políticas delicadas e embaraçosas, como a libertação de mais de mil presos palestinos, muitos deles autores confessos de crimes de terrorismo que resultaram em mortes de civis.

Em outubro próximo, por ocasião do segundo aniversário de sua libertação, três jornalistas investigativos prometem lançar um livro sobre o ex-prisioneiro do Hamas, com base em documentos e material inédito. As pesquisas foram iniciadas no ano passado e vão incluir informações até então não publicadas por questões de segurança, gravações e depoimentos dos pais e do próprio Shalit. Um indício de que a história de Shalit ainda guarda muitos segredos que talvez não se revelem totalmente nesse primeiro livro. De qualquer maneira, o tema já se mostrou um prato cheio em se tratando de tensão psicológica, conflitos morais e situações-limite, componentes dramáticos que acompanham um militar em seu retorno à pátria após um punhado de anos convivendo com a realidade e a verdade do inimigo.