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terça-feira, 7 de setembro de 2010

A eterna primavera de Casimiro de Abreu



por Sheila Sacks

A uma hora e meia de carro do centro do Rio de Janeiro, na direção norte, existe um município que leva o nome de um poeta brasileiro. Trata-se de Casimiro de Abreu, uma pequena localidade na Baixada Litorânea, com 28 mil habitantes, e propícia para o ecoturismo e o esporte de aventura pelas suas belas e íngremes trilhas que atravessam a frondosa vegetação, as altas cachoeiras que deságuam nos vales floridos e os rios encrespados que correm em meio as rochas e as montanhas da Mata Atlântica.

Nesse cenário majestoso nasceu, há mais de 170 anos, aquele que seria o primeiro autor de um best-seller nacional no campo da poesia. Lançado em 7 de setembro de 1859, o livro intitulado “Primaveras” ganhou uma tiragem de mil exemplares (incomum à época, quando as cópias não chegavam a trezentos) e rapidamente se esgotou.

Os poemas do garoto de 20 anos, nascido às margens do Rio São João, no município fluminense que hoje leva o seu nome, encantaram leitores e arregimentou centenas de admiradores nos saraus literários que reuniam intelectuais e amantes das letras. Também a imprensa brasileira derramou-se em elogios ao poeta. Até em Portugal foram lançadas duas edições sucessivas, na década de 1860. Mas, a tuberculose que o levou à morte antes de completar 21 anos, privou o poeta de usufruir a consagração e a popularidade advindas de seus versos delicados.

Para toda a vida

Figura literária incluída na grade escolar, Casimiro de Abreu (1839-1860) apresenta-se a grande maioria dos estudantes de forma acadêmica e ilustrativa como um item a mais na pauta de estudos curriculares. Entretanto, muitos jovens tocados pelo lirismo dos versos acabam abrindo uma imperceptível fresta em sua memória emocional, conduzindo consigo, em sua caminhada pela vida, o frescor daquelas rimas aprendidas na juventude.

Em 1985 coube ao festejado jornalista e escritor Rubem Braga (1913-1990) editar uma coletânea com a seleção dos melhores poemas de Casimiro de Abreu. Interessante notar é que ambos, o poeta romântico e o cronista capixaba, considerado por muitos o melhor no gênero desde Machado de Assis (1839-1908), escreviam de forma lírica, mas em linguagem acessível, sobre a aventura do cotidiano, os sons e as cores da natureza e principalmente as vertigens das emoções e dos sentimentos comuns a todas as pessoas.

Uma janela aberta

Essa simplicidade de linguagem é realçada na apresentação do livro de Braga, para quem Casimiro foi um dos retratos mais perfeitos do estilo de uma época: “Era como uma janela aberta numa sala fechada havia muitos anos. O frescor e a espontaneidade dessa poesia, o lirismo simples, os namoricos ingênuos e levemente maliciosos, a melancolia e a certeza da morte prematura”. Aliás, o uso inspirado de palavras corriqueiras em temáticas simples e universais é recorrente em textos de ícones da literatura mundial, como Luís Vaz de Camões (1524-1580), aclamado o maior dos poetas da língua portuguesa. Rubem Braga cita o verso “a grande dor das coisas que passaram” como exemplo da genialidade poética do narrador de Os Lusíadas, a grande epopeia da navegação heroica do reino de Portugal.

O gênero cálido e amoroso de Casimiro também foi abordado por outro grande nome de nossa literatura. Em seu primeiro livro de prosa, “Confissões de Minas” (1944), o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) observa a capacidade do jovem autor romântico de se comunicar com o leitor de forma a atingir o âmago de seus mais profundos sentimentos. No ensaio intitulado “No Jardim Público de Casimiro”, Drummond usa um termo passível de interpretações em sua análise crítica. Diz ele: “O encanto de Casimiro de Abreu está em sua tocante vulgaridade. Nenhum sentimento nele se diferencia dos sentimentos gerais que visitam qualquer espécie de homem, de qualquer classe, em qualquer país. Em sua poesia tudo é comum a todos”. Mais adiante, Drummond completa: “O segredo de dizer coisas tristes sem envenenar muito a vida faz de Casimiro um parente de todos nós”.

Momentos mais importantes

Ainda em “Confissões de Minas”, o poeta de Itabira (MG) faz um relevante paralelo entre a poesia e a prosa, exaltando a singularidade da primeira e a sua inegável predileção por essa forma literária. Para Drummond, apesar de a prosa ser a linguagem de todos os instantes, a linguagem da poesia marca os instantes “mais densos e importantes da existência”. Foi o que vez com pureza e doçura Casimiro de Abreu em sua curta vida. Nos quatro anos que passou em Portugal (1853 a 1857) ele eternizou os sítios de sua infância, o afeto filial e o cenário de um país de paisagens deslumbrantes e acolhedoras.

Filho de um comerciante português, o poeta não teve uma esmerada formação cultural porque o pai o queria trabalhando em seus negócios. Mas, à revelia da vontade paterna, Casimiro mesmo na atividade comercial encontrava tempo para se dedicar à literatura. Em Lisboa, aos 17 anos, desenvolveu seus dons poéticos, exaltando as belezas de sua pátria distante. Em 1857, na volta ao Rio, publica textos na imprensa da época. Adoecendo, passa uma temporada em Nova Friburgo e, não tendo ocorrido melhora, retorna a São João da Barra, aonde vem a falecer prematuramente do chamado “mal dos poetas”.

Repetindo sentimentos

Entretanto, seus versos simples e sonoros se eternizam na memória e nas vozes de seus compatriotas, ainda que ao longo do tempo uma fatia da intelectualidade nativa mostre-se incomodada com uma possível falta de técnica e esmero lingüísticos de sua poesia impregnada de juventude e espontaneidade. Mas, relembrando G.K. Chesterton (1874-1936), o brilhante e profícuo escritor inglês, cuja obra influenciou líderes de movimentos sociais como Mahatma Gandhi (Índia) e Martin Luther King (Estados Unidos), “toda a verdade é um lugar-comum”. Dito que Carlos Drummond, em seu livro “A Retórica do Silêncio” (1979), confirma ao afirmar que “o poeta trabalha sempre a mesma obra, repetindo sentimentos”. Logo, o possível desmerecimento à obra de Casimiro advinda de sua capacidade de exprimir, de forma popular, as mesmas emoções primárias registradas em versões mais eruditas por outros poetas, seria uma visão preconceituosa, consequência direta da própria formação pessoal e cultural de cada indivíduo.

Quanto ao saudosismo e a recorrente ode ao passado encontrados nos versos de Casimiro, vale citar outro expoente da literatura brasileira, o escritor Guimarães Rosa (1908-1967), que na sua obra máxima “Grande Sertão-Veredas”, faz uma referência ao tempo “recordado” através de um dos personagens: “Tem horas antigas que ficam muito mais perto da gente do que outras, de recente data”. Trata-se do tempo psicológico, entendido como memória, um tempo sobre o qual o homem ainda é capaz de ordenar, diferentemente do tempo cronológico, que avança incontrolável às nossas vontades. Para o poeta Percy Shelley (1792-1822), romântico inglês que faleceu aos 29 anos, “a poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos melhores e dos mais felizes espíritos”.

Via de acesso

Aliás, o tempo também é a matéria-prima da poesia para o escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998), prêmio Nobel de Literatura em 1990. Em seu ensaio “O Arco e a Lira” (1956), Paz afirma que “a poesia nada é se não tempo, ritmo perpetuamente criador". O poema seria “a via de acesso ao tempo puro”, ao momento imortalizado pela palavra. Paz também acredita que o poeta e o leitor são personagens de uma mesma trama, cabendo ao segundo decifrar e se encantar com o ritmo, a cadência e os sons da mensagem de seu criador. “Cada leitor procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si”. Diante disso, explica-se a aceitação e a acessibilidade dos versos de Casimiro de Abreu, imersos em humana e comovente espiral de sentimentos.

Quanto à releitura feita pela literatura modernista, na primeira metade do século XX, e, mais recentemente por estudiosos contemporâneos, no que concerne ao estilo algo ingênuo, simples, subjetivo, sentimental dos poetas ultra-românticos, e em especial de Casimiro de Abreu (cuja expressão “aurora da minha vida”, designando a infância, já faz parte do inventário popular), classificando-o de ultrapassado e seus poemas de “mero devaneio poético”, vale citar mais uma vez Octavio Paz: “Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa de ser um poeta e se converte em construtor de artefatos literários. Os estilos nascem, crescem e morrem. Os poemas permanecem.”

Versos imortais

Daí que a partir de algumas palavras encantadas, a poesia de Casimiro renasce a cada dia, através do tempo, reascendendo a chama das emoções básicas de todo o ser humano. Como, por exemplo, quando fala no amor filial, expresso nos versos “Eu choro e soluço por quem me chamava/ - Oh filho querido do meu coração!”; ou no primaveril entusiasmo da mocidade que canta “Não era belo, Maria/ Aquele tempo de amores/ Quando o mundo nos sorria/ Quando a terra era só flores/ Da vida na primavera?” ; ou mesmo na doce e melancólica saudade das paisagens natais, sussurradas em Eu nasci além dos mares/ Os meus lares/ Meus amores ficam !”; e na pura musicalidade lírica de "Oh! Que saudades que tenho/ da aurora da minha vida,/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais!”

Na crônica “Salão dos Românticos”, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 2001, o escritor, jornalista e imortal Carlos Heitor Cony, 84 anos, faz uma defesa bem-humorada dos poetas românticos, que possuem um sala especial na Academia Brasileira de Letras. Segundo Cony, “não fosse o romantismo ficaríamos atrelados ao classicismo das arcádias, à pomposidade do verso burilado que tem o equivalente cinematográfico nos efeitos especiais. Sem falar nos poemas-piadas, a partir de 1922, tidos como vanguarda da vanguarda”.

Para o autor de “A Casa do Poeta Trágico” (1997) “o homem, qualquer homem, é uma casa habitada por um poeta e foram os românticos, na prosa e no verso, que colocaram em nossas letras, as palmeiras, os índios, as praias selvagens, o sabiá, as borboletas de asas azuis, a juriti. Enfim, o cheiro e o gosto de nossa gente”.

A casa de Casimiro

Em 2009, o governo estadual promoveu a restauração do imóvel onde o poeta viveu boa parte de sua breve vida. Situada na Praça das Primaveras, à margem do Rio São João, a casa do século 19 tinha sido transformada em museu em 1957 e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 1974. Ponto de atração turística mais visitado do município, cuja identidade cultural está intimamente ligada à imagem do poeta e de sua poesia, a recuperação arquitetônica da casa e de seu entorno foi ansiosamente aguardada pela população local. Isso porque, à parte a exuberante paisagem e os atrativos dos esportes radicais praticados em seus rios e matas, a curiosidade e o interesse dos brasileiros, e em especial dos estudantes, em conhecer o berço natal de um dos maiores poetas brasileiros – estar na casa em que o poeta viveu e registrou as suas emoções, percorrendo os cenários imortalizados em seus poemas - ainda são os mais intensos motores a impulsionar o turismo na cidade.
Também em 2009, em homenagem aos 150 anos da publicação do livro “Primaveras”, o Correio Brasileiro emitiu um selo alusivo à data.