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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Engenharia sem fronteiras do século 21

por Sheila Sacks

(na foto, o elevador do Cantagalo na favela Pavão-Pavãozinho que se conecta com o metrô de Ipanema)


Em 2008 a engenharia mundial escolheu o Brasil para realizar o seu maior encontro. A World Engineers Convention (WEC) reuniu em Brasília 5.200 engenheiros de 40 países para renovar os seus conhecimentos tecnológicos e também debater temas de relevância como a responsabilidade social, a ética, a inclusão e a inovação sem degradação ambiental. 


A convenção foi aberta pelo presidente Lula que na ocasião reafirmou a importância da engenharia na economia, no setor produtivo e no trabalho. O presidente destacou ainda o papel fundamental da profissão na implementação de projetos de transformação das cidades e da imensa capacidade do setor de inovar e criar novas realidades “mesmo sobre os escombros de modelos ultrapassados.”

Como seria natural, o presidente Lula citou o desafio do PAC – o Programa de Aceleração do Crescimento – com suas obras nas áreas de infraestrutura, energia, logística, social e urbana. Uma oportunidade valiosa, segundo ele, para os engenheiros que possuem “a inovação em seu DNA”. Para Lula, vitoriosa será a nação que melhor aproveitar a infinita capacidade humana de reinvenção da vida e de superação de cada problema que se apresenta.


No Rio de Janeiro, o trabalho de engenharia urbana que vem sendo executado nas favelas, através do PAC, introduziu novas diretrizes e padrões de comportamento social nos profissionais engajados no projeto. Engenheiros e arquitetos têm ao seu lado, participando e atuando no dia a dia, técnicos da área social que acompanham o desenrolar das obras nas comunidades. 

Há três anos o programa está promovendo uma inédita ponte de diálogo e entendimento com os moradores das favelas beneficiadas, estimulando os moradores a interagir e contribuir para que as melhorias introduzidas – acessos, novas moradias, escolas, equipamentos esportivos, áreas de lazer etc – sejam compartilhadas e mantidas de forma consciente e com cidadania. ( na foto, apartamentos construídos na favela de Manguinhos)

Esse tipo de abordagem mais humana e social por parte da engenharia, focalizada nos problemas das pessoas e das comunidades menos favorecidas, desabrochou de fato com o PAC das favelas. Seus objetivos se assemelham às propostas da organização internacional “Engenheiros sem Fronteiras” (Engineers Without Borders – EWB), criada em 2000 nos Estados Unidos, e que atualmente está presente em mais de 40 países, inclusive no Brasil. 

Com sede na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, o núcleo brasileiro foi implantado em 2007 na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e transferido para a UFV em junho de 2010. Na visão da organização, a engenharia deve atuar como uma ferramenta a serviço da equidade e da construção da dignidade humana, conciliando o conhecimento acadêmico e as necessidades dos segmentos mais carentes da população. Missão que vem sendo cumprida pelos engenheiros e arquitetos dos órgãos públicos do governo estadual do Rio de Janeiro em relação às obras do PAC, em consonância com as diretrizes do governo federal. 

Portanto, já se afigura lógica a participação brasileira na próxima WEC, a ser realizada em 2011 em Genebra (Suíça), se reportar à experiência e aos resultados positivos da vertendo social e urbana do PAC que tem transformado as condições de vida dos habitantes das favelas. (Na foto, construção do teleférico no Complexo de favelas do Alemão que vai se conectar com a via férrea). 

Propósito Coletivo

A Construção Civil, como tema expositivo, costumeiramente atrai abordagens tecnológicas associadas às inovações e ao aperfeiçoamento de itens técnicos tendo em vista a própria natureza científica e matemática do serviço e a formação específica e especializada de seus profissionais. No campo do trabalho aplicado, a prioridade está centrada na escolha dos materiais, equipamentos e maquinário a serem utilizados nas edificações e que devem, virtuosamente, se conjugarem com a qualidade e a funcionalidade desejáveis, adequando-se ainda a uma planilha de custos e prazos previamente calculada. A meta final é a entrega da obra de acordo com o planejamento e a expectativa iniciais, fatores que se preservados até o concluir dos serviços vão garantir o sucesso da empreitada em termos técnicos e contratuais.

Semelhante ao que ocorre, há décadas, nos projetos endereçados à área privada, agora também no setor público agrega-se à responsabilidade técnica do gestor a variante do compromisso sócioeconômico da cidadania, um valor já percebido e que começa a ser cobrado pelas comunidades beneficiadas pelas obras. Se em tempos passados o responsável por uma obra de edificação pública tinha como única preocupação cumprir, basicamente, os requisitos técnicos e burocráticos que acompanham esse tipo de trabalho, alijando-se de qualquer ação participativa que pudesse ser interpretada como um comprometimento político, hoje essa visão de gestor público está superada face à percepção de que atender bem o propósito coletivo é atribuição básica de uma empresa que gerencia obras com recursos governamentais.


Gestão com motivação e solidariedade


Essa mudança de ótica nas instituições públicas tem ocorrido sob a égide do núcleo governamental que, em anos recentes, vem promovendo a capacitação das gestões e dos gestores com a introdução de modelos contemporâneos de administração e o incremento de cursos e seminários voltados aos novos conceitos, normas, condutas e valores pró-ativos que combinem conhecimento e tecnologia com resultados que incluam a satisfação coletiva. É um novo paradigma de gestão organizacional, pautado no ícone da contínua aprendizagem e aprimoramento, que estimula a incorporação de padrões de cooperação, participação, confiança e de solidariedade.

Especialistas em gestão como Noel Tichy, professor de comportamento organizacional da Universidade de Michigan (EUA) e autor de dezenas de livros sobre o tema, considera de profunda importância motivar os funcionários com uma visão empolgante do trabalho que realizam. Exemplo desse modelo é relatado por Brian Dumaine, antigo editor da revista norte-americana “Fortune”, no artigo “Por que nós trabalhamos?”. 


O autor se vale de uma parábola para reafirmar a importância da noção de “missão” no cotidiano das tarefas. Citando três tipos de operários que executam o mesmo tipo de serviço – talhar uma pedra com um martelo e um cinzel – Dumaine conta que o primeiro se sente frustrado e irritado porque considera aviltante o trabalho que faz. O segundo, ao explicar que talha a pedra para um prédio, não parece nem zangado nem satisfeito. Já o terceiro cantarola feliz e, enquanto esculpe a pedra, responde com orgulho que está construindo uma catedral.

O aprendizado que evolui no cotidiano

Dessa forma, a tradicional noção de capacitação técnica não seria o valor preponderante a atuar na condução do trabalho em uma empresa. O engenheiro aeroespacial Peter Senge, Ph.D. em administração organizacional pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) e autor do best-seller “A Quinta Disciplina” (1990), aponta o engajamento do profissional “em relação aos princípios, às diretrizes e ao futuro que a empresa pretende criar e alcançar”, como um fator decisivo na evolução sustentável e competitiva da organização. A essa disciplina apreendida pelo grupo funcional ele chama de “visão compartilhada”.

Em entrevista à revista norte-americana “HSM Management” em julho de 1998, Senge questiona alguns mitos corporativos como a excelência de programas de treinamento e a importância da tecnologia de informação. Para ele é preciso pensar no tipo de aprendizado que a tecnologia proporciona, já que uma pessoa pode até receber mais informações graças à tecnologia, mas, se não possuir as capacidades necessárias para aproveitá-las, de nada adiantará, visto que a informação não cria aprendizado. ”Esse é um enorme mal-entendido que afeta muitas pessoas. A informação só pode nos ajudar a aprender alguma coisa que já entendemos.” Quanto aos programas de treinamento, Senge considera que poucos profissionais aprendem as coisas que são realmente importantes nesses programas. “O aprendizado ocorre no dia-a-dia, ao longo do tempo e sempre acontece quando as pessoas estão às voltas com questões essenciais ou se veem diante de desafios.“


O desenvolvimento social como meta


Desde os anos de 1970, o tema da responsabilidade social das empresas em relação às comunidades onde estão inseridas tem sido foco de debates e de uma extensa literatura. Nota-se que a filosofia desse conceito é abrangente, englobando problemas sociais, econômicos e ambientais como pobreza, desemprego, segurança no trabalho, poluição e desmatamento, além de aspectos legais e jurídicos referentes a desapropriações e remoção de moradores, para citar alguns. Porém, o entendimento mais comum do termo é aquele que traduz a responsabilidade social empresarial como um comportamento socialmente responsável, do ponto de vista ético, praticado pelas organizações em suas atividades-fins.

Conhecidos teóricos da administração, como o filósofo e economista de origem austríaca Peter Drucker (1909-2005), e o americano Robert M. Grant, consultor e autor do livro “Análise da Estratégia Contemporânea” (1995), destacam a necessidade de uma gestão de empresas voltada para a evolução da sociedade moderna, já que as empresas são importantes e influentes agentes sociais, e seus gestores são percebidos como lideranças pelas comunidades onde atuam.

Na obra “O Líder do Futuro”, os autores Hesselbein, Goldsmith e Beckard enfocam o lado humanístico na condução empresarial. Para eles, o propósito de uma administração organizacional deve ser o de tornar eficazes os pontos fortes das pessoas e irrelevantes as suas fraquezas. O livro datado de 1996 advoga que as posturas serão mais úteis do que as habilidades e que as futuras lideranças vão flexibilizar as hierarquias, construindo um sistema de trabalho mais fluido: “O maior capital das empresas serão as pessoas que as compõem. Conseguir o comprometimento delas e colher o fruto de suas mentes criadoras deverá ser o grande desafio do século 21.”


A importância de fazer a coisa certa

Esse novo conceito de liderança se afasta do primitivo modelo de liderança carismática, onde não havia espaço para a argumentação ou contestação. Um tipo de comando criticado pelo próprio Drucker - o cultuado guru “inventor da gestão” - que aos 95 anos e em sua última entrevista à imprensa norte-americana (reproduzida pela revista “Exame” em fevereiro de 2006, sob o título “Liderança é Conversa Fiada”) questiona a fixação dos gestores executivos pela formação de líderes: “É um erro afirmar que as escolas de negócios formam líderes. Sua tarefa consiste em formar medíocres competentes para que realizem um trabalho competente Permita-me dizer com toda a sinceridade: não acredito em líderes. Toda essa conversa sobre líderes é uma bobagem muito perigosa. É tudo conversa fiada. Entristece-me constatar que, encerrado o século 20, com líderes como Hitler, Stálin e Mao, as pessoas ainda estejam em busca de quem as comande, apesar de todo esse mau exemplo. Acho que tivemos carisma demais nos últimos 100 anos.”

Autor de mais de 30 livros sobre práticas de administração de empresas, Drucker sempre acreditou que os bons resultados obtidos em uma gestão não advêm das soluções de problemas e sim de se saber explorar as novas oportunidades que se apresentam. Também alertava para a interpretação confusa dos gestores sobre os termos “eficácia – fazer a coisa certa – e eficiência – fazer certo as coisas. Segundo o teórico “é difícil achar algo tão inútil quanto fazer com grande eficiência algo que simplesmente não deveria ser feito”. Mas mesmo assim, assinalava Druker, as ferramentas utilizadas - sobretudo conceitos contábeis e dados - estavam todas voltadas à eficiência. “O que precisamos é de um jeito de identificar áreas de eficácia (de possíveis resultados relevantes) e de um método para nos concentrarmos nelas”, recomendava.


Aprender, desaprender e reaprender

Em 1930, na obra “O Mal-Estar na Civilização”, o fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), já especificava as três grandes forças causadoras da infelicidade no ser humano: o próprio corpo “condenado à decadência e à dissolução”; o mundo exterior “repressivo” e “ameaçador”:; e os relacionamentos com os outros, essa última correspondendo à frustração mais difícil de se lidar e adequadamente rotulada de “a fonte social do sofrimento”. Reconhecendo-se a importância das relações pessoais no contexto das organizações, torna-se um desafio para qualquer gestor desenvolver um clima de harmonia, integração e satisfação em sua comunidade funcional, face à diversidade dos “modelos mentais” inerentes a cada indivíduo.

No livro “A Força dos Modelos Mentais” (2005), os consultores norte-americanos Yoram Wind e Colin Crook explicam que esses processos cerebrais e emocionais - frutos de influências familiares, escolares, culturais e religiosas que se somam às experiências e vivências na fase adulta - moldam todos os aspectos da vida de uma pessoa e muitas vezes, no âmbito profissional, eles não acompanham ou não correspondem à realidade do momento, dificultando e limitando a evolução de uma carreira que poderia ser promissora. Caberia, pois, aos profissionais se reestruturarem, desfazendo-se de antigos referenciais e adaptando-se aos novos conceitos de competência e padrões de comportamento sinalizados pela empresa. “Daí a importância de aprender, desaprender e reaprender para construir nossos conhecimentos sob novos paradigmas”, desafiam Wind e Crook.


O trabalho que gera satisfação

Mas, para Freud a insatisfação humana é um fato imutável porque “nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não o permite”. Ou seja, o homem, faça o que fizer, estará condenado a conviver com a frustração na vida privada e profissional. Logo, gerenciar atividades e serviços da mais alta complexidade e tecnologia empresarial como grandes obras de engenharia também é administrar expectativas pessoais que não devem ser desconsideradas ou minimizadas pelos gestores.

Em uma pesquisa na cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA), na década de 1950, quando a localidade ainda era um grande pólo siderúrgico e o maior produtor de aço do mundo, o professor e psicólogo Frederick Herzberg, falecido em 2000, realizou entrevistas com 200 engenheiros e contadores de onze indústrias da região para descobrir os fatores que geravam satisfação e insatisfação no ambiente de trabalho. Percebeu que elementos relacionados com o conteúdo do trabalho (motivação), tais como o desenvolvimento do potencial intelectual, a possibilidade de crescimento profissional e a autorrealização, eram fortes indutores para a criação de um clima de satisfação entre os funcionários. Por outro lado constatou que o contexto físico e as condições de trabalho e de remuneração, mesmo apresentando ótimos padrões, não aumentavam o grau de satisfação entre os empregados, apesar de funcionarem como barreiras de contenção contra a insatisfação.

Esse estudo, compilado no livro “A Motivação para o Trabalho” (1959), serviu de base para outras centenas de observações e análises sobre modelos e teorias de administração produzidas ao longo do tempo que têm ajudado a redefinir o conceito de trabalho empresarial nas organizações públicas e privadas, incorporando às atividades econômicas e tecnológicas valores como o capital intelectual, o talento e a inovação, ferramentas insuperáveis na produção de ações que objetivem resultados promissores nos ambientes internos e externos em que atuam.


A singularidade do ser humano

Com essa opção pela gestão social, que se traduz por um gerenciamento mais participativo e solidário, priorizando o diálogo no desenvolvimento das pessoas e no interesse público das comunidades, as empresas vão se aproximando, pouco a pouco e de forma extraordinária, da filosofia política de Hannah Arendt (1906-1975) – uma das mais cultuadas pensadoras do século 20 –, algo impensável há alguns anos. Isso porque para Arendt, autora de “A Condição Humana” (1958), a suposição de que a identidade de uma pessoa transcenda, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir, seria um elemento indispensável da dignidade humana. Juntamente com a assombrosa capacidade de agir do ser humano, da qual, segundo a filósofa, “se pode esperar o inesperado e o infinitamente improvável, independentemente da produção de coisas, porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”.