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sábado, 26 de setembro de 2009

Paz para o ano 5770


por Sheila Sacks

As guerras ainda assombram pela dor e sofrimento que causam.

Às vésperas do ano judaico de 5770, uma peregrinação inédita lembrou os 70 anos do início da 2ª Guerra Mundial e do Holocausto. Foi na cidade polonesa de Cracóvia, onde mais de 200 líderes das principais religiões do mundo, na primeira semana de setembro, caminharam sobre o solo empapado de sangue e tragédias dos campos de Auschwitz-Birkenau. Presente ao evento, o rabino Meir Lau, de Tel Aviv (rabino-chefe de Israel durante dez anos), lembrou a conversa que teve, em 1993, com o papa João Paulo II. Na ocasião o papa disse lembrar do avô de Lau caminhando para a sinagoga, aos sábados, sempre rodeado de muitas crianças. Rabino na cidade de Cracóvia onde o papa então servia como bispo, o avô de Lau tinha 47 netos. João Paulo II perguntou quantas dessas crianças sobreviveram ao Holocausto e ouviu que apenas cinco foram salvas. O irmão de 13 anos de Lau e todos os primos pereceram na guerra. O papa também se interessou em saber se o rabino Lau tinha filhos. Sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald (foi salvo em 1945, com oito anos de idade) e hoje presidindo o Instituto Yad Vashem que abriga o Museu do Holocausto, em Jerusalém, Lau, de 72 anos, pôde dizer ao papa que sim, tinha filhos e netos, todos vivendo em Israel. E essa resposta, segundo o rabino israelense, seria a expressão de sua revanche às atrocidades do passado. Uma vida familiar plena, assentada na tolerância, na amizade, no amor e na paz.

Uma herança que ninguém quer

No outro extremo, que condições restariam à conduta, ao modo de viver, aos pensamentos e sentimentos daqueles que se dispuseram a violar os preceitos mais básicos da condição humana, exterminando friamente famílias inteiras, deixadas despidas e amontoadas em cubículos injetados de gás letal? O psiquiatra e filósofo austríaco Viktor Frankl, sobrevivente do campo de Auschwitz e falecido em 1997, conta uma história interessante. Quando os aliados libertaram os campos de concentração, duas prisioneiras judias sobreviventes do Holocausto esconderam um oficial da SS, de nome Hoffman, e só concordaram em entregá-lo às autoridades com a condição de que ele não fosse maltratado. Frankl foi testemunha em seu julgamento e, durante algum tempo, manteve correspondência com o oficial, tentando confortá-lo, já que o homem vivia atormentado por sua participação no processo de extermínio implantado pela máquina nazista. Sem dúvida, muitos outros Hoffman que lograram escapar da Justiça se viram presos ao horror de suas memórias odientas. A fuga e o anonimato aparentemente não os puseram a salvo de seus medos, temores e fantasmas, restando a essas pessoas uma sombria e miserável vida acuada de fugitivos da lei. Personagens do limbo da história, execrados pelas gerações posteriores de compatriotas para as quais sobraram uma abominável herança de ódio e um legado de desconforto e vergonha

O silêncio dos que sabiam

Passadas sete décadas do infortúnio do Shoá, o tema já aglutinou uma vastíssima literatura que imortalizou nomes como o da jovem Anne Frank (1929-1945) e do italiano Primo Levi (1919-1987), consagrando ainda figuras do porte do escritor e ativista de direitos humanos Elie Wiesel, de 81 anos, prêmio Nobel da Paz de 1986. É difícil imaginar um outro assunto que nos últimos cinqüenta anos tenha monopolizado todas as gamas de arte e cultura de forma tão intensa e diversificada através de livros memorialistas, romances, ensaios, filmes, peças teatrais, museus, monumentos, esculturas, exposições de pintura, seriados de TV etc.
O rabino Meir Lau, também autor de uma autobiografia que conta a sua experiência no campo de Buchenwald, lembrou aos participantes do encontro em Cracóvia que houve apenas três grupos associados ao monstruoso crime do Holocausto: os nazistas e seus colaboradores, as vítimas, e aqueles que sabiam e não diziam nada. Para esses últimos, muitos ainda vivos, a quantidade estupenda de literatura disponível sobre esse terrível momento histórico expõe de forma brutal o silêncio covarde que ajudou a aniquilar milhões de seres humanos de forma vil e bestial.

A voz do coração

Em outro patamar e com um enfoque diverso, a guerra do Líbano (1982) e demais guerras empreendidas pelo estado de Israel em defesa de sua nacionalidade, têm feito surgir uma geração inquieta e aflita de escritores, artistas e diretores de cinema memorialistas. Dispostos a abrir seus corações ao mundo, o foco de suas atenções é o serviço militar israelense, o exército, as guerras, a perplexidade de uma juventude atada a um destino único em termos de história de perseguições e sobrevivência. Estimulados e adulados pela mídia internacional, são convidados em congressos e bienais, e ganham importantes prêmios em festivais.

É o caso do escritor israelense David Grossman, convidado da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. O festejado intelectual, nos debates e nas entrevistas das quais participou, fez questão de explicitar a íntima ligação de sua literatura com a vivência contínua de um país em guerra. O ato de escrever, segundo ele, funcionaria como uma espécie de redenção, de contradição à guerra que “nacionaliza” e encouraça a própria alma. Uma percepção que também se mostra presente nos filmes israelenses “Valsa com Bashir”, de Ari Folman, e “Lebanon”, de Samuel Maoz, co-produzidos pela França e Alemanha. Ambos de caráter autobiográfico e relacionados às memórias de soldados na guerra do Líbano (1982), os filmes foram criados, segundo seus autores, para exorcizar os medos e culpas dos que enfrentam e sobrevivem às guerras. O primeiro, produzido em 2008, já conquistou o “Globo de Ouro” norte-americano e o César francês (uma espécie de Oscar), e o segundo acaba de ganhar o prêmio máximo no Festival de Veneza de 2009.

Enfatizando a sua simbiose com o filme (‘escrito com as próprias entranhas’) e dedicando o prêmio a todos que se defrontaram com uma guerra e “tiveram de aprender a viver com essa dor”, Moaz, de 47 anos, talvez sem perceber, singularmente reconcilia os dois lados do conflito, um e outro nivelados pela tragédia interior de sobreviverem como reféns de um passado de pesadelo e horror. Esse sentido essencialmente humano da questão que inclui a primorosa qualidade da solidariedade com o sofrimento do seu antagonista, é a autêntica expressão da face judaica, revelada com coragem e generosidade pelo israelense. Uma declaração nada fácil que deveria servir de inspiração aos povos e líderes de nações que estimulam a guerra e o terrorismo. Palavras que iluminam um pouco mais o novo ano de 5770, que se deseja melhor que os anteriores no quesito da paz.