Comunidade judaica foi expulsa do país na década de 1950 e seus bens e propriedades encampados pelo governo. Uma tragédia humanitária das muitas que marcaram o século 20.
/ Sheila Sacks /
Sinagoga Eliahu Hanavi - Alexandria |
Outrora uma das mais antigas e pujantes comunidades judaicas do Oriente,
o Egito conta hoje com menos de dez judeus remanescentes de uma era dourada onde o país chegou a somar mais de 80 mil judeus.
Depois da morte de Carmem Weinstein, em 2013, ela que foi
durante décadas a responsável pela preservação das quatro mais importantes
sinagogas e do único cemitério judaico que restou, sua sucessora, Magda Haroun,
70 anos, tem atuado junto às autoridades egípcias no trabalho de preservação
das construções e artefatos judaicos ainda presentes principalmente no Cairo e
Alexandria. Em 2018, a imprensa local deu ampla repercussão à notícia de que o Ministério
de Turismo e Antiguidades alocou recursos da ordem de 71 milhões de dólares
para a restauração dos locais de herança
judaica.
Em dezembro último, depois de mais de seis meses de reforma, a Sinagoga
Ben Ezra, no centro do Cairo, abriu suas portas para a visitação de turistas.
Acredita-se que foi construída em 882 sobre os restos de uma igreja copta e seu
nome homenageia o sábio e filósofo judeu Abraham Ibn Ezra, nascido no norte da Espanha por volta de 1093. O
interior da sinagoga, de dois pavimentos, é rico em colunas de mármore, madeira
e detalhes únicos, como flores de lótus e palmeiras.
A restauração ficou a cargo do
Ministério de Turismo e Antiguidades que em 2020 já havia aberto para visitação
pública a Sinagoga Eliyahu Hanavi, em Alexandria, depois de um período de
reforma onde foram investidos em torno de 6 milhões de dólares. A sinagoga, construída originalmente em 1345,
foi destruída em 1798 em um bombardeio por tropas de Napoleão, e reconstruída
em 1850. Estava fechada desde 2012.
Pelo trabalho realizado, o governo egípcio foi agraciado com o prêmio
internacional ENR 2021 Global Best
Projects Award na categoria de melhor projeto de Renovação/Restauração de
Engenharia. A revista americana ENR - Engineering News-Record é considerada uma das publicações de
maior influência no ramo da indústria da construção mundial.
De acordo com o Ministério
das Antiguidades até 1930 havia
20 sinagogas em Alexandria de propriedade de judeus marroquinos, turcos,
italianos, espanhóis, franceses e árabes.
Águas do Nilo
Sinagoga Ben Ezra - Cairo |
Em relação à antiga sinagoga Ben Ezra, os guias de turismo enfatizam que
talvez seja esse o local onde o bebê Moisés foi encontrado. Em recente
reportagem da revista ortodoxa Mishpacha (3/1/23),
dois visitantes judeus narram sua visita
à sinagoga: “Esta sinagoga, onde dizem que o Rambam (Maimônides:1135-1204 ) rezava,
foi reformada inúmeras vezes nos últimos mil anos e hoje é um importante local
turístico. Enquanto estávamos lá, grupos de turistas da Europa, Estados Unidos
e Ásia entraram e ouviram do guia egípcio como o rio Nilo na época das cheias supostamente
beirava o local onde estávamos e que pela tradição local, esse é o exato lugar
onde a cesta do bebê Moshe estava escondida nos juncos.”
Segundo a Sociedade Histórica dos Judeus do Egito -
Historical Society of Jews from Egypt /HSJE, sediada nos Estados Unidos, pouco
se sabe sobre o edifício original. “Por volta de 1012, o califa Al-Hakim bi-Amr
Allah ordenou a destruição de todos os locais de cultos judaicos e cristãos. O próximo califa Ali az-Zahir permitiu a
reconstrução de instituições cristãs e judaicas, e a sinagoga foi reconstruída
no período de 1025-1040.”
Desde então a sinagoga ganhou várias reformas e o prédio atual data de
1890. No século 19 (década de 1890), a
descoberta de uma geniza (área de
armazenamento de livros e manuscritos) no porão do da sinagoga, com mais de 300
mil documentos religiosos e seculares escritos em hebraico, aramaico e árabe,
tornou o local ainda mais significativo
para os estudiosos. A coleção
conhecida como Cairo Geniza foi
transferida inicialmente para a Universidade de Cambridge, na Inglaterra, por
iniciativa do rabino e educador Salomão Schechter (1847-1915). Atualmente, vários documentos estão
preservados em bibliotecas acadêmicas. Com o acesso aos papéis,
pesquisadores puderam conhecer mais a vida das comunidades judaicas locais nos
séculos 11 a 13.
O fundador e presidente da
HSJE, Desire L. Sakkal, é crítico em
relação a abrangência das restaurações das sinagogas. Ainda em 2019, por ocasião do anúncio das
obras, Sakkal viu na divulgação uma
manobra política e de propaganda do governo do Cairo para angariar simpatia dos
países ocidentais e incrementar o turismo, principalmente dos judeus
americanos.
Sakkal observa que restam
muito poucos judeus no país capazes de realizar serviços religiosos e que os
turistas precisam de permissão especial e guias egípcios para visitar os locais
judaicos. Aos egípcios não são permitidas visitas por questão de segurança.
De fato, pouco tempo depois
do anúncio repercutido pelas mídias judaicas e até pelo site da Embaixada
israelense no Cairo, o próprio Ministro
das Antiguidades corrigiu a informação e disse que o montante de recursos, na
verdade, iria para a restauração de todos os monumentos religiosos (mesquitas e igrejas
inclusive) que necessitassem de reparos.
O rabino Andrew Baker,
diretor de assuntos internacionais do grupo de defesa do Comitê Judaico
Americano (American Jewish Committee -AJC ), conta que nas diversas vezes que
visitou o Egito percebeu que o governo não está interessado em parcerias com
organizações de fora. “Eles sustentam que a herança judaica também faz parte da
história do Egito”, relata Baker que
também já criticou o estado deplorável da maioria das construções judaicas
ainda existente no país.
Sinagogas sob tutela
Em recente entrevista à CBS News, Magda Haroun falou que ainda existem
doze locais de culto judaico no Cairo e que as chaves ficam sob a sua
guarda. Preocupada com o destino dessas
construções, já que a comunidade judaica está praticamente extinta no país, ela
conseguiu que as sinagogas ficassem sob a tutela do Ministério das Antiguidades
e assim protegidas em relação a demolições. Isso inclui a Sinagoga Ben Ezra, a
mais antiga do Oriente Médio. Haroun destacou que foi feito um inventário de
cada sinagoga, com as peças catalogadas com fotos e numeração.
Em novembro do ano passado, através de outra parceria, desta vez com a
Embaixada americana no Cairo, a Drop Mil Foundation, uma organização centenária
que visa preservar a herança judaica no Egito, e a American Research Center in
Egypt (ARCE), um centro de pesquisa que
apoia a preservação de bens culturais no país, foi inaugurada a restauração de
parte do cemitério de Bassatine ( a ala reservada aos judeus caraítas), o segundo cemitério judeu mais antigo do
mundo, construído no século 9 (o primeiro está situado no Monte das Oliveiras,
em Jerusalém).
Foram investidos 150 mil dólares na recuperação do local que ganhou
também um Jardim Memorial com doações dos judeus caraítas que vivem nos Estados
Unidos. Os caraítas seguem apenas a Torá escrita – os mandamentos divinos
transmitidos a Moisés - não considerando a lei oral (Talmud ) e outras
tradições orais que são parte fundamental do judaísmo rabínico. Vivem em Israel
de 30 a 50 mil judeus caraítas, a maioria na cidade de Ashdod. Também existem pequenos grupos na Turquia,
Europa e Estados Unidos.
O cemitério de Bassantine foi saqueado ao longo
do tempo e invadido por pessoas sem moradia. Desde 1970, o trabalho de Carmem Weinstein foi fundamental para preservar
300 túmulos cujas lápides de mármore estavam sendo roubadas ou destruídas por
construções na periferia. Com o auxílio
de judeus sefarditas da França e da Suiça, ela construiu um muro circular de 2
quilômetros ao redor do terreno, mas, anos depois, uma parte foi derrubada,
novamente invadida e transformada em lixão. A situação era tão degradante que
por ocasião de seu falecimento ela teve de ser enterrada longe do túmulo da
mãe, em outro terreno do cemitério.
Expulsão traumática
O êxodo dos judeus egípcios teve início após a criação do Estado de
Israel e a guerra da coligação dos países árabes contra o novo estado. O
antissemitismo aumentou ainda mais quando estourou o Conflito do Canal de Suez,
em 1956 ( com tropas israelense se juntando às tropas francesas e britânicas
para garantir o acesso ao canal), e na chamada Guerra dos Seis Dias (1967),
quando o exército israelense destruiu as defesas do Egito, Síria e Jordânia,
conquistando a Península do Sinai, as Colinas do Golã, a Faixa de Gaza,
Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém.
A organização Justice for Jews from Arab Countries (JJAC), com sede em
Nova York, estima que cerca de 856.000 judeus de 10 países árabes ( Egito, Marrocos,
Iraque, Síria , Iêmen Irã , Tunísia,
Líbia, Argélia e Líbano) fugiram ou foram expulsos em 1948 , sendo que
muitos foram mortos ou ficaram feridos em consequência dos violentos ataques praticados
pelos árabes desses países. Perto de 800
mil vieram para Israel.
Em 2019, depois de 18 meses de trabalho, o governo israelense calculou
em mais de 250 bilhões de indenização pelas propriedades e ativos dos judeus forçados
a fugir, partir de 1948. Também já foi estimado que os imóveis de judeus
deixados para trás em terras árabes equivalem a 100 mil quilômetros quadrados,
quatro vezes o tamanho do estado de Israel.
Para lembrar a saída e deportação desses judeus, o parlamento (Knesset) instituiu, em 2014, a data de 30 de novembro como um dia de conscientização e de eventos
diplomáticos visando reforçar, a nível internacional, os direitos de
ressarcimento dessas famílias. A data se relaciona com o 29 de novembro de
1947, quando a ONU votou a resolução a favor da partilha da Palestina. No dia
seguinte, 30/11, teve início a perseguição aos judeus no mundo árabe.
Ressaltando que a península do Sinai foi devolvida ao Egito nos acordos
de Camp David, em 1978; a Cisjordância entregue para controle da Autoridade
Palestina (acordos de Oslo, nos anos de 1990); e a Faixa de Gaza desocupada por
colonos israelenses durante o governo de Ariel Sharon, em 2005.
Segurança reforçada
Em dezembro último, a festa de Hanuchá
foi celebrada na Sinagoga Meyr
Biton (inaugurada em 1934), no arborizado bairro Maadi, com a participação de
diplomatas e de três idosas judias que ainda vivem no Cairo. A plataforma de
notícias Al Monitor reportou que os
arredores da sinagoga no dia do evento concentravam mais policiais do que
visitantes. Um exagero, para alguns, que viram na ação o reflexo da ainda
presente desconfiança das forças de segurança egípcia em relação a qualquer
reunião judaica.
O diretor do documentário Judeus no Egito, Amir Ramses (44 anos) disse
que a palavra "judeu" é em si uma fonte de paranoia para a segurança
nacional do Egito - talvez o resultado
de décadas de doutrinação pela mídia estatal e livros escolares que incitam o
ódio aos judeus. O documentário exibido
em cinemas do Cairo, em 2013, conta a história da comunidade judaica exilada do
Egito, através de uma série de depoimentos de judeus egípcios
residentes em Paris, intelectuais e até de um membro da Irmandade Muçulmana que
participou, em 1947, dos ataques às lojas judaicas.
Magda, que representa uma comunidade praticamente extinta, afirma que ainda existem judeus egípcios que escondem sua
condição e vivem como muçulmanos. Considera que tem havido progresso em seu
empenho de resguardar os locais judaicos e preservar algumas tradições
religiosas. Diz que recebe o apoio de organizações locais, embaixadas
estrangeiras, principalmente a dos Estados Unidos, e do próprio governo. Sonha em promover
concertos musicais nas antigas sinagogas e ver restaurantes kosher se
espalharem pela cidade. “Quero conciliar os egípcios com seu passado”, justifica.
Em 1967, seu pai, advogado e
político, fundador do Partido Comunista Egípcio, foi preso por sua condição de
judeu. Chehata Haroun se recusou a sair
do país e permaneceu vários anos na cadeia. Antissionista, morreu no Cairo, em
2001, aos 82 anos. Intrigante também é a história pessoal de Magda. Foi casada
com muçulmano, tem duas filhas muçulmanas que foram criadas por um cristão, seu
segundo marido. Se declara pluralista
mas, como o pai, é antissionista e não mantém contato com a embaixada de
Israel.
Foco no turismo
Um dos principais roteiros turísticos da região, o Egito recebeu 4,9
milhões de visitantes no primeiro semestre de 2022. Em novembro, a filha do
ex-presidente Donald Trump, Ivanka, em visita de férias ao Egito, levou a
família para conhecer as principais atrações turistas do país, entre elas, a
Sinagoga Ben Ezra. Ela estava acompanhada do marido, Jared Kushner, e dos três
filhos.
Segundo a reportagem da revista
Mishpacha, turistas individuais geralmente não têm segurança, mas o grupo
israelense ganhou escolta policial durante os dias que esteve no Egito. “Na verdade,
achamos um pouco exagerado ter um carro da polícia na frente de nosso ônibus e outro carro da polícia atrás, o tempo todo”, revelaram os dois israelenses
autores da matéria (Ary Z. Zivotofsky e Ari Greenspan). “Além da presença de um
guarda armado dentro do ônibus”, enfatizam.
Outro lance que os autores classificam de “incrível” diz respeito aos quiosques turísticos nas
paradas de ônibus. “Todos oferecem a opção de compra de lanches e bebidas
kosher para os visitantes ”, ressaltam.
Mas, muito mais surpreendente que os lanches kosher nas paradas de ônibus foi o evento que ocorreu em maio do ano passado, quando da comemoração
do 74º aniversário da criação do estado de Israel. Sob os auspícios da
embaixada israelense no Cairo, uma orquestra de Israel se apresentou para convidados
egípcios e de outras nacionalidades, executando clássicos egípcios das décadas
de 1950/60. O concerto a céu aberto teve como cenário as famosas pirâmides do
Egito.
A orquestra Firqat Alnoor (do árabe Banda da Luz) é especializada em música árabe e seu maestro Ariel Cohen se disse emocionado pela recepção calorosa do público presente. Ainda que nas redes sociais egípcias e de países árabes o clima fosse outro com muitas críticas contundentes à organização e localização do evento. "Os israelenses comemoram o Dia da Independência nas pirâmides, que vergonha para o Egito", escreveu um internauta. O assunto foi registrado pela a plataforma de notícias Times of Israel , em 25/5/2022, sob o título Israeli orchestra performs in Egypt for the first time in 40 years.
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