Por Sheila Sacks
Desde
que o músico inglês Roger Waters, ex-integrante do grupo Pink Floyd, tornou
pública a carta enviada a Caetano Veloso e Gilberto Gil em que pede aos
artistas para cancelarem o show em Tel Aviv, marcado para 28 de julho, um
frisson sacudiu a mídia opinativa brasileira e as redes sociais, normalmente
disponíveis para esse tipo de polêmica que envolve figuras conhecidas do show
business.
A
carta, escrita em maio logo após o anúncio da turnê dos brasileiros pela Europa
e Israel, foi encaminhada aos músicos pelo movimento BDS, sigla para “boicote,
desinvestimentos e sanções”, que desde 2005 faz campanha mundial contra Israel
e é coordenado por um “Comitê Nacional Palestino” (BNC).
Em
1 de junho, a “Folha de São Paulo” divulgou a carta de Waters que se utilizando
de uma miscelânea de pontos de vista e estereótipos piegas sobre o Brasil,
escreveu entre outras coisas, o seguinte: “ Eu tenho a praia de Ipanema nos
olhos da minha mente”; “Eu tenho uma camiseta de futebol assinada: Para Roger,
de seu fã Pelé”; “Eu amo o Brasil”.
Mas,
a pressão sobre Caetano e Gil vem logo no parágrafo inicial: “Quando olho para
as suas fotos, escuto as suas músicas, leio a histórias de suas lutas pessoais
e profissionais, lembro de todas as lutas de todos os povos que resistiram”. Ao
final do texto, mais coação: “Quando tudo isso acabar, nós iremos à Terra
Santa, cantaremos nossas músicas de amor e solidariedade”.
Em
23 de junho foi a vez de “O Globo” publicar a carta-resposta de Caetano Veloso
a Waters, em que é nítido o constrangimento do artista para explicar a sua
presença em Israel. “Eu cantei nos Estados Unidos durante o governo Bush e isso
não significava que eu aprovasse a invasão do Iraque”, alega. Mais adiante, desculpa-se:
“Charbel (o brasileiro integrante do BDS que entregou a carta de Waters) sabe
quantos problemas de produção teríamos no caso de cancelamento de um show que
já foi anunciado e completamente vendido”.
Em
30 de junho, Waters ataca novamente com outra missiva endereçada a Caetano e
publicada pelo “O Globo” que estranhamente adota o refrão do BDS nos títulos de
ambas as cartas: “Boicote a Israel”. No documento, o inglês faz uma convocação pública
ao brasileiro para se integrar às fileiras do movimento, a saber: “Temo que
você possa estar vendo a política israelense com lentes cor-de-rosa”; “mas se
você quer realmente influenciar o governo israelense, você se unirá a nós na
linha de piquete do BDS”; ”Eu imploro a você para não proceder com sua
participação em Tel Aviv”; “Caetano, eu não conheço você, nunca nos encontramos
pessoalmente, mas eu acredito que você tem boas intenções”.
Como
era de se esperar, algumas vozes com acesso à mídia e as redes sociais se
pronunciaram por meio de artigos defendendo a apresentação dos artistas
brasileiros em Israel. A série de explicações plausíveis apresentadas com o
objetivo de aplacar a propaganda virulenta desencadeada por Waters ecoaram,
mais uma vez, como vozes no meio do oceano, ouvidas apenas por aqueles que se
encontram no mesmo barco.
Para
além do oceano, no mundo da terra firme, a história, a experiência, a realidade
e o bom senso contidos nesses textos lamentavelmente soçobram diante do
universo fluido e digitalizado da propaganda, dos slogans e dos ídolos
pop, uma trinca que persevera imbatível na era globalizada. Lembrar que
Israel é a única democracia da região e que importantes lideranças palestinas até
hoje não reconhecem o estado de Israel, assim como o radicalismo islâmico
exclui Israel de qualquer acordo pra valer e o colonialismo inglês oprimiu
judeus e árabes no início do século 20, definitivamente, essas assertivas
apesar de verdadeiras já não têm o peso histórico de décadas anteriores.
Mas,
por outro ângulo, essa pressão do ex-líder do Pink Floyd sobre Caetano e Gil apresenta
características semelhantes ao que se convencionou tipificar como assédio
moral. Afinal, o músico inglês criou uma situação de constrangimento para o
colega brasileiro que se sentiu na obrigação de justificar em carta a sua
apresentação em Israel e reafirmar a sua posição a favor do estabelecimento de
uma pátria palestina. Uma asserção que, involuntariamente ou não, já politizou
um show que, na origem, não privilegiava esse aspecto.
Com
a publicação da segunda carta, mais incisiva contra a apresentação do show,
mostra-se patente a ação coercitiva de Waters sobre Caetano. Para a legislação
brasileira o assédio moral é uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que
se manifesta por meio de gesto, palavra, escritos, capaz de provocar danos à
personalidade ou imagem do assediado. No Rio de Janeiro, desde 2002 existe lei
contra assédio moral relativa ao ambiente de trabalho. E Waters, Caetano e Gil
têm no mundo dos espetáculos o seu ambiente de trabalho.
Também
no Código Civil Brasileiro, o artigo 186 preceitua: Aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ilícito. Sem esquecer o artigo 5º, inciso X da Constituição Federal:
São invioláveis a intimidade, vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Ao
insistir para que Caetano e Gil cancelassem o show em Israel, fazendo crer que
mantendo a apresentação eles se mostrariam, segundo palavras de Waters,
“cúmplices de políticas racistas e ilegais”, o artista inglês extrapolou a
barreira da sensatez, do respeito e da verdade, em um explícito abuso moral
contra a dupla brasileira e ao próprio estado de Israel, alvo constante de
ataques verbais de lideres muçulmanos. Há pouco mais de um mês, em 4 de junho,
em uma reunião em Beirute, no Líbano, representantes do Hamas, Hezbollah e influentes
clérigos muçulmanos, como o aiatolá Moshen Araki, do Irã, acordaram que “a
destruição de Israel” é a prioridade máxima dos movimentos islâmicos, sustentando
o apoio e o respaldo a ações terroristas desses grupos na região.