
“A guerra é contra o terror, e não contra o islamismo” (Barack Obama, ao anunciar a morte de Osama bin Laden, líder da al-Qaeda, em 01.05.2011)
Padres, pastores, rabinos e clérigos muçulmanos são os representantes naturais das incontáveis comunidades religiosas, maiores ou menores, instaladas em mais de uma centena e meia de países do globo terrestre. Pouco ou muito influentes, de acordo com a quantidade de seus seguidores, essas coletividades se inserem basicamente no contexto de regras e de leis emanadas e exercidas pelo poder do Estado.
Nos regimes democráticos todos são livres para a prática de sua religiosidade, um direito constitucional que muitas vezes se confunde com outras formas de levar adiante o exercício da liberdade e da cidadania. Muitos resvalam nesse terreno escorregadio e pouco iluminado onde nem sempre é fácil manter uma autonomia que propicie conciliar a liberdade individual com a igualdade social, distinguir conceitos de pessoa e de comunidades, separar os valores éticos pessoais dos princípios públicos aceitáveis, compatibilizar os direitos individuais com o bem da sociedade.
Imparcialidade sem renunciar as convicções religiosas

No caso de exposição de imagens e símbolos religiosos em repartições públicas brasileiras, fato observado principalmente nos fóruns e tribunais de Justiça, o Ministério Público Federal, seção São Paulo, ajuizou uma ação civil pública, em 2009, no sentido de retirar todos os símbolos religiosos afixados em locais de atendimento ao público nas repartições federais localizadas no estado. Na justificativa protocolada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, é lembrado o princípio da laicidade estatal, a liberdade de crença e da isonomia, destacando que o símbolo religioso ostentado em local público demonstra uma “predisposição” para a religião que tal símbolo representa.
Tradição religiosa ainda é um fator influente nos julgamentos
Um ano depois, em agosto de 2010, essa ação foi indeferida pela juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia que decidiu, em caráter liminar, que a presença de símbolos religiosos em prédios públicos não ofende os princípios constitucionais da laicidade do estado nem da liberdade religiosa. Em seu despacho, a juíza considerou natural a presença de crucifixos em espaços públicos nacionais, dada a formação histórico-cultural cristã do povo brasileiro. Segundo ela, para os agnósticos ou pessoas de crenças diferenciadas, esses símbolos nada representam, “assemelhando-se a um quadro, escultura, adereços decorativos”. A magistrada ainda destacou, em sua exposição de motivos, um dado dos mais importantes: a de que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo religioso em qualquer ambiente de órgão do Poder Judiciário.
Em março de 2011, em prosseguimento a esse processo da Procuradoria Geral dos Direito dos Cidadãos, foi a vez do cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odílio Scherer, testemunhar a favor da manutenção dos símbolos religiosos nas repartições públicas. Em depoimento no Tribunal Regional Federal, ele disse não acreditar que um determinado símbolo religioso possa ser ofensivo a quem não professa aquela fé, conforme alegação do autor do pedido da ação, o engenheiro Daniel Sottomaior Pereira, que se declara ateu: – O fato de a maioria da população ser católica (73%, de acordo com o censo de 2000), culturalmente justifica a presença desses símbolos cristãos, afirmou o cardeal. O religioso também considera legítimo o Estado custear a manutenção dos símbolos religiosos em suas repartições “em respeito aos anseios dos representados”.

Pluralismo religioso no Tribunal do Rio
No Rio de Janeiro, o atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral, o desembargador Luiz Zveiter, também provocou polêmica quando no exercício da presidência do Tribunal da Justiça do estado (2009/20010) mandou retirar o crucifixo que estava na sala principal do órgão e transformou a capela existente em um espaço de culto ecumênico. De ascendência judaica e Grão-mestre da Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro por dois mandatos (seu pai, Waldemar Zveiter é o atual Grão–Mestre pela terceira vez e foi ministro do Superior Tribunal de Justiça, de 1989 a 2001), a atitude de Zveiter agradou a maioria dos 25 desembargadores do Tribunal, muitos deles evangélicos e espíritas. A medida não atingiu os juízes dos tribunais que continuaram com autonomia para manter ou retirar as imagens referentes à sua religião.
No discurso de posse, Zveiter foi incisivo quanto a sua disposição de atender a um consenso geral: “A toga do Juiz deve ter o talhe da sociedade. Deve seguir o modelo querido pelo povo, de modo a expressar, em seus procedimentos, a justiça social.” Na ocasião a Arquidiocese do Rio se manifestou desfavoravelmente à providência adotada, dizendo que as medidas deveriam ser vistas com cautela para que não contribuíssem para a intolerância religiosa (revista Consultor Jurídico, de 03.02.2009).
Dois anos depois, uma outra situação do gênero passou despercebida pela grande imprensa, mas foi bastante noticiada pelos sites judaicos. Indicado pela presidente Dilma Rousseff, em fevereiro de 2011, para ministro do Supremo Tribunal Federal, o carioca de ascendência judaica, Luiz Fux, instalou um símbolo religioso judaico, a mezuzá (umbral, em hebraico), na porta de seu gabinete, em Brasília. Constituindo-se em um pequeno estojo que abriga em seu interior um pergaminho que contém duas passagens bíblicas manuscritas em hebraico, o artefato é colocado no umbral direito da porta com a função de proteger as pessoas que habitam aquele local e evitar infortúnios. Usado principalmente nas portas de entrada dos lares das famílias judaicas e em alguns estabelecimentos comerciais, a colocação desse símbolo religioso em uma dependência da mais alta Corte Jurídica do país provocou controvérsia entre os leitores da “Rua Judaica”, newsletter de Osias Wurman, jornalista e cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro.

Bento XVI vê a religião marginalizada da vida pública
Em 2010, em visita a Londres, o Papa demonstrou preocupação com o que classificou de “crescente marginalização da religião, especialmente do cristianismo, em alguns lugares, inclusive em nações que outorgam uma grande ênfase à tolerância”. Falando no Westminster Hall do Parlamento britânico, Bento XVI afirmou que “há alguns que desejam que a voz da religião se silencie ou pelo menos que se relegue à esfera meramente privada”.
O pontífice disse ainda que os cristãos que desempenham um papel público não deveriam agir contra a sua consciência, ainda que muitos sustentem que às vezes, com a intenção de suprimir a discriminação, lancem mão do uso da razão prática. O Papa lembrou que os princípios éticos nos processos democráticos não devem ser regidos apenas por meros consensos sociais, pois resultarão em estruturas frágeis. - Sem a ajuda corretiva da religião, a razão pode ser também presa de distorções, como quando é manipulada por ideologias, sublinhou. “O papel da religião consiste justamente em ajudar a purificar e iluminar a aplicação da razão à descoberta de princípios morais objetivos” (agência Zenit, em 17.09.2010).
Pensadores contemporâneos defendem neutralidade religiosa
De acordo com os mais recentes estudos de contextos sociais, nas sociedades modernas as pessoas têm de assumir e cumprir diferentes papéis em diferentes domínios da vida (família, cidade, classe, nação ou povo) que podem entrar em conflito uns com outros. A questão que se apresenta é de como a pessoa que se sente pertencendo a uma comunidade familiar e religiosa pode permanecer sendo a mesma e única pessoa diante de visões e exigências contrárias. De que maneira é possível conciliar a “identidade do eu” - que está vinculada de maneiras diversas a várias comunidades e associações constituídas - com a pessoa “sujeito de direito” de uma comunidade política de normas jurídicas.

A respeito, o alemão Rainer Forst, 47, doutor em Teoria Política e professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, ressalta que existe uma diferenciação entre a pessoa ética e a pessoa de direito. “Preceitos jurídicos e normas morais têm a pretensão de serem válidos para todos, não importando as concepções éticas que as pessoas adotem. Em contraposição, os valores éticos são válidos apenas para os indivíduos que se identificam com esses valores como parte de suas identidades e de sua história pessoal.”
Na obra “Contextos da Justiça” (1994), Forst assinala que o Direito deve ser eticamente “neutro” em seu modo de validação, a fim de que ele mesmo não prescreva determinados “valores” como bens superiores que não podem ser justificados de modo recíproco e universal. Ele chama a atenção ainda para o fato de que uma comunidade política somente pode ser integrativa num sentido abrangente quando ela não absolutiza política e juridicamente uma determinada tradição ético-cultural.
A neutralidade ética do Direito também é defendida pelo norte-americano Bruce Akerman, 67, conceituado professor de Direito Constitucional e Ciências Políticas da Universidade de Yale (Connecticut-EUA). No livro “Social Justice in the Liberal State” (1980), ele assinala: “Nenhuma razão é uma boa razão quando exige que o dono do poder afirme que sua concepção do bem é melhor ou superior do que qualquer outra afirmada por seus concidadãos.”
Em tempo: A presidente brasileira Dilma Rousseff – que estudou em escola de freira e assume que é católica -, em sua primeira semana no Palácio do Planalto também foi motivo de polêmica ao retirar de seu gabinete o crucifixo e a bíblia. No dia seguinte à notícia, a Secretaria de Comunicação da Presidência informou que o crucifixo pertencia ao ex-presidente Lula, que havia recebido de um artista português, logo no início de seu mandato. Em relação à bíblia, a nota à imprensa afirmava que o livro permanecia em uma sala contígua ao gabinete, sobre uma mesa, onde a presidente encontrou ao chegar ao palácio.