por Sheila Sacks
Existem livros que transcendem o tempo. Talvez porque falem de temas universais presentes em nosso cotidiano. Foi o que fez o rabino norte-americano Harold Kushner ao escrever, na década de 1980, a obra “Quando Coisas Ruins acontecem às pessoas Boas”. Traumatizado com a morte do filho de 14 anos que sofria de uma doença genética incurável, Kushner repassou para o papel toda a sua experiência de dor e sofrimento, e também a sua inabalável fé no Criador. Isso porque como rabino de uma pequena congregação, em Massachusetts (EUA), ele pôde observar que as pessoas atingidas por uma tragédia geralmente mostravam-se revoltadas e terrivelmente abaladas em sua crença religiosa. Citando a figura bíblica de Jô, homem íntegro que vê os filhos morrerem, os negócios falirem e a doença atacar o seu corpo, Kushner dá o seguinte recado: mesmo nas adversidades, não ceda à tentação de abandonar a fé em Deus. Entretanto, essa tragédia pessoal faz o rabino repensar tudo o que ensinava sobre Deus e os caminhos de Deus.
A visão do tapete
No livro acompanhamos os inúmeros casos verídicos de adultos bons, decentes e fiéis em suas crenças, e de crianças alegres e inocentes, os quais, em um momento de suas vidas, são atingidos por um infortúnio ou mesmo pela tragédia. Kushner observa que muitas dessas pessoas e as que estão ao seu redor têm a ideia de que possíveis tropeços e desmandos possam ser as causas de suas desgraças. Isso é, que Deus dá a cada um o que cada um merece. Uma culpa que geralmente se mistura à revolta e a inevitável questão: “Que razões poderia ter Deus para fazer o que fez, já que não sou pior do que o meu vizinho?”.
O rabino lembra que no livro “O Oitavo Dia” (1967), o escritor norte-americano Thornton Wilder (1897-1975) dá uma visão interessante dos desígnios de Deus. A história descreve um homem bom cuja vida é arruinada pela má sorte e hostilidade. Ele e sua família sofrem, embora sejam inocentes. E não existe final feliz. O que Wilder apresenta, destaca Kushner, se assemelha à imagem de um lindo tapete. Olhando do lado direito, é um trabalho de arte, muito bem tecido, reunindo fios de diferentes tamanhos e cores para formar um desenho inspirado. Mas, virando o tapete pelo avesso, percebe-se uma confusão de fios, uns curtos outros compridos, alguns cortados, outros amarrados. Logo, seria dessa forma que veríamos o mundo, do nosso ponto de vista, ou seja, olhando o tapete de baixo, enxergando o seu avesso. E dessa maneira, os padrões de recompensa e punição poderiam parecer arbitrários e sem lógica porque não temos a capacidade de compreensão e o entendimento divino.
Kushner assinala em seu livro que nem sempre há uma razão para os males que nos afligem: “Será que somos capazes de aceitar a ideia que há fatos que surgem sem qualquer razão, de que no universo existem circunstâncias fortuitas?”. Muita gente não se conforma com o conceito de casualidade e procura nexo e sentido em tudo que lhes ocorrem. Outras enxergam a mão de Deus atrás de tudo o que acontece. Mas suponhamos, escreve o rabino, que Deus não tenha terminado toda a sua obra no sexto dia, de acordo com a metáfora bíblica da Criação, e o processo de colocar ordem no caos ainda esteja em andamento.
Pela vida
Sobreviventes do Holocausto também são bons exemplos quando se aborda os desígnios de Deus. No livro “Por Aqueles que eu amo”, Martin Gray, que sobreviveu ao Gueto de Varsóvia e ao Holocausto, conta que depois da guerra se casou e constituiu uma família feliz. Entretanto, um incêndio em sua casa no sul da França matou a esposa e seus filhos. Ainda que arrasado com a tragédia, Gray preferiu não ir atrás de possíveis culpados e aplicar os seus recursos em um movimento para proteger as florestas de incêndios. A vida, explicou o sobrevivente, tem que ser vivida por alguma coisa, não contra alguma coisa.
Kushner também cita o trecho de um livro escrito por um sobrevivente de Auschwitz ( A Fé e a Dúvida dos Sobreviventes do Holocausto, de Brenner) sobre a vontade de Deus e a matança de milhares de inocentes nos campos de concentração nazista. Afirma o sobrevivente: “Nunca me ocorreu questionar o que Deus fez ou deixou de fazer, enquanto eu fui um habitante de Auschwitz... Eu não fiquei menos ou mais religioso com o que os nazistas nos faziam... Nunca me ocorreu associar a calamidade que estávamos experimentando a Deus, censurá-Lo, deixar de crer, porque Ele não vinha em nosso socorro. Devemos a Deus nossas vidas, pelos poucos ou muitos anos que vivemos, e temos a obrigação de cultuá-Lo e fazer o que Ele nos ordena. Para isso estamos na terra – a serviço de Deus, para cumprir a Sua vontade”.
No mais, o rabino Harold Kushner, nascido em 1935, escreveu vários livros de sucesso (Quando Tudo não é o Bastante; Quando as Crianças perguntam sobre Deus) e foi considerado pela organização católica norte-americana “The Christophers” uma das 50 pessoas que na última metade do século 20 tornaram o mundo melhor.