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domingo, 31 de agosto de 2025

Sem palavras - uma aventura urbana

 / Sheila Sacks /

Pela segunda vez dona Edite repete o longo trajeto de Copacabana ao bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para finalizar a promessa assumida pelo pronto restabelecimento de uma prima muito querida. A doação seria para uma creche mantida por uma dessas organizações sociais de ajuda ao próximo. Entorpecida pela viagem, os pensamentos vagam perdidos entre as fronteiras do consciente e do sono. Sorri ao lembrar a garotada da creche. Tem 70 anos e o físico esbelto a faz esquecer a idade.

Um tempo depois o táxi diminui a velocidade e estaciona em uma rua que parece desabitada. A via silenciosa avança por dezenas de metros até uma pequena praça de terra batida. − A senhora trouxe o endereço? − pergunta o taxista olhando ao redor. − Estou na dúvida sobre a rua, diz. Dona Edite abre a bolsa e procura o papel onde anotou o endereço. Tinha esquecido em cima da cômoda. − É aqui mesmo – afirma, reconhecendo o muro em frente. Desce do táxi. No céu, as nuvens se acumulam.

Encimado por pontudos cacos de vidros, o muro de cimento é um desafio a possíveis intrusos. Dona Edite toca a campainha já antevendo o abraço afetuoso da risonha atendente. Enquanto espera, alça a vista para o horizonte recortado pela admirável estrada suspensa do teleférico que se estende sobre o conjunto de favelas do Alemão, uma cidadela fortificada e inexpugnável.

Postada na calçada, pressiona mais uma vez o botão vermelho instalado na frente do muro. Finalmente o portão é aberto e um sujeito de boca murcha, cabelos ralos e com as roupas sujas de massa e tinta assoma à soleira. − A creche está em obra, madame − apressa-se em explicar. E emenda: − Só volta a funcionar na semana que vem.

Dona Edite sente que a bexiga fraca dá sinais preocupantes. De supetão ela cruza o portão sem dar tempo ao homem de impedi-la. − Preciso usar o toalete. É rapidinho e sei o caminho − vai dizendo enquanto aperta o passo. Mas logo sente uma pressão violenta na nuca e se dá conta de que a arrastam para o interior da casa. É largada em frente a uma enorme cratera escancarada no centro da sala. Operários de torsos nus empilham sacos de entulho trazidos do fundo do buraco que se alonga em um túnel por debaixo da casa, em direção, talvez, à agência bancária instalada a poucos metros da esquina. Outros cavam a terra dura e escura. Atônita, dona Edite percebe alguns homens fardados. Um deles se aproxima, o rosto oculto por uma touca de malha. Das fendas do gorro, dois olhos cinzentos e frios a avaliam. − Deje la bolsa acá − ordena. O portunhol range na voz cavernosa do gigante. Ele usa coturnos emborrachados e colete à prova de bala. Aponta o banheiro. –Adelante, vá.

No estreito banheiro dona Edite se vê sem os documentos, dinheiro, celular, relógio e sua inseparável sombrinha. Ela se abandona desolada sobre o tampo do vaso sanitário. As horas passam impassíveis às garras da aflição. De repente escuta uma sirene. Sons confusos e amortecidos pelas paredes vão ganhando contornos estranhos em sua cabeça. Pessoas discutem, as vozes alteradas pela agitação e a raiva. Escuta xingamentos, gritos, urros de dor e o que parece ser uma movimentação de luta. Súbito, a porta é aberta com um estrondo de ferragens partidas e um homem é empurrado violentamente banheiro  adentro. Ele bate com a cabeça no piso de ladrilhos. – Traidor! − berra o gigante

− Não faça isso, colombiano, tenha dó! − implora o homem com a voz engasgada. Em resposta, rajadas de tiros de fuzil desfolham o seu peito que se rompe como um vulcão em erupção. Uma larva gosmenta tinge o morto de vermelho. – Ninguna palabra, mujer − ordena o justiceiro mirando a mulher petrificada. A touca suja de sangue é jogada ao chão e com a mão faz um sinal inesperado para segui-lo. Dona Edite percebe que as pernas estão imobilizadas pelo terror. O gigante de botas se afasta e a velha senhora ganha fôlego e  se joga sobressaltada em direção à porta tropeçando sobre o corpo do morto que estranhamente se contorce em convulsões.

Desorientada, ela se depara com a carnificina, o vestido florido empapado de sangue. Atravessa a sala onde corpos se espalham pelo chão. Gritos e batidas vindos do buraco agora tampado por pedras a confundem. Uma nuvem de calor e fumaça se eleva do chão e ela se desespera. O homem corre para o fundo do quintal e com precisão e agilidade afasta os móveis empilhados que escondem uma portinhola que se abre para o terreno baldio de uma rua próxima. Fora da casa, dona Edite por um instante tem a impressão de que a cabeça vai explodir. Repentinamente, ouve o ronco ruidoso de uma motocicleta que vem em sua direção. Travada pelo medo, as pernas não obedecem. O colombiano acelera em seus calcanhares. – Detrás − bufa o desconhecido em fuga, respingando saliva e indicando a garupa da motocicleta. A velha senhora é arrancada do solo por um braço pesado como um trator. Ela se agarra à cintura do homenzarrão enquanto a máquina saracoteia e ganha velocidade.

−Fogo! − berra alguém no fundo da rua. Dona Edite escuta, atrás de si, duas violentas explosões e o estrondo de uma casa vindo abaixo. Um furacão de poeira move-se velozmente sobre a rua. O colombiano faz uma manobra arriscada e por alguns segundos a mulher avista os escombros da creche e um carro da polícia encobertos pelas chamas e rolos de fumaça. Já na avenida principal, ziguezagueando entre os carros, o bandido se lança para o Complexo do Alemão, em um itinerário de incerteza e medo.

Alguns metros acima da entrada da favela, em um pequeno descampado, a velha senhora avista novamente o incêndio lá embaixo e a confusão que se formou. Pessoas deixando as suas casas, outras acorrendo ao local, curiosos já amontoados comentando a tragédia. Uma viatura dos bombeiros atravessa a rua na contramão com a sirene ligada. Em frente aos escombros da creche, voluntários tentam se aproximar do carro da polícia ainda em chamas.

Equilibrando-se na garupa, dona Edite sente uma fisgada no peito quando o bandido se desvia de uma carroça de bananas e a moto ameaça derrapar. A boca está seca, a cabeça lateja e os braços e pernas entorpecidos. Olha para o alto e percebe que os bondinhos do teleférico estão parados. Passageiros contrariados saltam nas estações.

− Tá pegando fogo lá na creche da rua das margaridas − grita o garoto para a jovem na janela que solta uma gargalhada estridente. O colombiano acelera e se envereda pelas ruelas íngremes, desviando-se de restos de comida, latas de cerveja, garrafas e pneus. Cachorros soltos, porcos e gatos famintos perambulam por entre roupas estendidas em varais improvisados em meio a criançada que corre pelas vielas sem ter o que fazer. A poucos metros do topo da favela, uma saraivada de tiros interrompe a corrida. A moto rodopia, estatela-se no barro e seus ocupantes rolam pelo matagal. 

Dona Edite tem a queda amortecida pela copa de uma árvore e cai sobre os restos de um colchão imundo misturado ao lixo acumulado. Tenta se levantar a procura de um lugar para se esconder. Um corpo desconhecido cai ao seu lado, vísceras à mostra. O sangue espirra em seu rosto e ela fecha os olhos espavorida.  A cabeça dói e um fiapo de líquido quente escorre pela face e pescoço. Nas lajes, a céu aberto, um pelotão de bandidos varre o espaço com uma torrente de disparos.

Desesperada, ela se arrasta até um beco próximo. Espreme-se em um vão entre alguns casebres e deixa o corpo exaurido cair ao chão. Os pés inchados dentro dos tênis sujos de lama a enojam. O chão barrento exala forte fedor de urina. Seus lábios balbuciam a oração dos aflitos até o cansaço, o medo e a desesperança silenciá-los. Adormece e quando novamente abre os olhos uma garoa umedece os barracos e luzes mortiças de algumas lâmpadas pintam a escuridão. Levanta-se com dificuldade, sob o olhar curioso de um menino que parece observá-la há algum tempo. – Como eu chego à estação do teleférico? − pergunta, sentindo um fragmento de esperança. O vestido de fundo branco salpicado de flores coloridas tornou-se um trapo amarfanhado e dona Edite tem consciência de sua figura patética.  O garoto de pouco mais de sete anos chupa os dedos e leva alguns instantes até apontar a localização da estação, um pouco abaixo de onde estavam.

    No interior da cabine a velha senhora e o mendigo enrolado em uma manta são os únicos passageiros. O temor não a impede de embarcar. O relógio da estação marca quase dez horas da noite e o bondinho completa seu último trajeto até a avenida. A gigantesca favela parece blefar em um falso silêncio, espreguiçada como um paquiderme em vigília. A viagem se estende por intermináveis quinze minutos até a linha férrea. Desorientada, ela avista um táxi e solta um grito esganiçado. Joga-se no assento do carro e, antes mesmo de dizer para aonde vai, põe-se a soluçar. O taxista nota as condições deploráveis da mulher e aguarda alguns segundos. Indaga o que aconteceu. Dona Edite respira fundo. – Sem palavras, responde com um fio de voz.  Finalmente consegue articular um pedido de socorro. − Me leva para a casa, pelo amor de Deus! Em seguida, ainda aterrorizada pelos acontecimentos se afunda no estofado e leva a mão trêmula ao coração. − Copacabana, por favor.  

Publicado na antologia "Contos e Poemas Noturnos", vol.8 (agosto de 2025), da plataforma digital Revista Conexão Literária, do editor Ademir Pascale.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A loja dos bibelôs encantados - Recordando papai

/ Sheila Sacks /

https://www.revistariototal.com.br/pais/sheilasacks.htm

Sentada no banquinho de madeira nos fundos da loja, eu olhava fascinada papai desenhar as letras e os números nas páginas do livro-caixa encadernado com uma brochura azul marinho. As palavras eram escritas metricamente em cima das linhas, com arabescos que as tornavam mágicas. Os valores numéricos também pareciam desenhos ornamentais que mexiam com minha imaginação.     

O pequeno escritório, protegido por um balcão arredondado onde ficava a imponente máquina registradora de metal, abrigava uma escrivaninha com tampo de vidro, um armário, a pequena geladeira e duas cadeiras, uma delas maior, de madeira clara envernizada, com apoio para os braços. Sobre a mesa ficavam o bloco de notas e o telefone preto que a primeira chamada papai já atendia de forma elegante com a voz singular que todos elogiavam.  – Casa Carlos, boa tarde!

A mesa também comportava um pote bojudo de couro no qual estavam três lápis pretos de meticulosas pontas finas e duas borrachas parecendo goma de mascar, em suas cores laranja e azul, e mais o xodó de papai, o estojo de camurça marrom forrado em seu interior de seda bege, onde era guardada a caneta-tinteiro Parker usada para assinar documentos e recibos.

A loja tinha duas portas altas geminadas na entrada e uma vitrine na qual eram exibidos panelas e faqueiros na parte de baixo, e nas prateleiras superiores a “prata da casa”: jogos de pratos, xícaras e sopeiras de porcelana inglesa; copos e taças de cristal lapidado da Boêmia; vasos coloridos de vidro Murano; e, para o meu prazer infinito, os incríveis bibelôs de porcelana alemã de Dresden, explicava papai, que reproduziam cenas galantes do tempo de Luiz XV, quando os casais dançavam em jardins monumentais, as damas de vestidos rendados e seus pares de jaquetas e coletes bordados.

No lado direito da loja onde armazenavam os materiais de construção, as gavetinhas com os mais variados tamanhos de pregos me mantinham fascinada. Observava “seu Silva” examinando com rigorosa atenção o comprimento e as dimensões certas de cada preguinho conforme os pedidos dos clientes e depois pesá-los na pequena balança de pratos de metal, um deles para colocar a mercadoria e no outro os pesos de diversos tamanhos.   

No balcão do lado esquerdo, papai comandava as vendas das louças, sempre gentil no atendimento e distinto em suas camisas sociais de algodão de cores claras e calças de linho. Os meus amados bibelôs, ao lado de outros enfeites de porcelana e cristal, ficavam expostos aleatoriamente nas compridas prateleiras no centro da loja. Ao fundo, no galpão, as folhas de madeira ficavam empilhadas por tamanho e espessura, e uma enorme balança de ferro servia para pesar os volumosos sacos de cimento e outros materiais ensacados.

Meu irmão passava todo o tempo nessa área da loja. Ele acompanhava o encarregado subir nas pilhas de madeira, escolher a que considerava mais adequada e depois descer para serrar na medida certa. E, compenetrado, ajudava a arrumar os sacos menores de pó de gesso que ficavam a alguns metros de um pequeno banheiro.  

Algumas tardes, depois da escola, nós visitávamos papai na loja. Essa atividade contava como um passeio especial, apesar de morarmos na mesma rua. Tínhamos que atravessar a avenida principal onde passavam o bonde e as lotações para alcançar a loja que ficava próxima à estação de trem.

Adorávamos esse passeio e na nossa chegada papai largava o que estava fazendo e nos abraçava, sem esquecer, porém, de apontar para o enorme relógio redondo na parede, perto do galpão. − Crianças, quando marcar 4 horas, vocês se despedem e voltam para casa. Combinado?

Balançávamos as cabeças concordando com o veredito, já esperando a recomendação que viria logo em seguida. − Com as mãozinhas comportadas. Não mexam em nada, dizia, olhando para nós com aqueles olhos cor do céu por trás dos óculos redondos de aros dourados.

Mas, diante da formosura e graciosidade dos bibelôs, essa assertiva era difícil de cumprir. Só os olhos não davam conta de tanta doçura. Desejava tê-los para mim, tocá-los, acariciá-los em seus contornos emoldurados por flores, passarinhos e querubins.

Uma noite, na volta para a casa, papai trouxe uma caixinha de música de madeira escura e a colocou sobre o buffet. Após o jantar, abriu com cuidado a tampa e uma mimosa bailarina de saiote rosa surgiu em meio a um forro de cetim escarlate e um espelho redondo ao fundo. Papai girou várias vezes a pequena manivela dando corda como fazia todas as manhãs no relógio que usava no pulso. Como por encanto a bailarina começou a girar suavemente  sob um fundo musical que muitos anos depois descobri ser uma canção de ninar do compositor Johannes Brahms.

A meu pedido, papai acomodou a caixinha de música aberta, com a bailarina à vista, ao lado dos três bibelôs que ele trouxera para a casa devido a pequenos defeitos. O conjunto ficou ainda mais destacado na majestosa cristaleira da sala, um móvel alto de madeira maciça com ornamentos entalhados e portas de vidro. Lá estavam o aparelho de porcelana de doze pratos e xícaras hexagonais com bordas prateadas, e os copos, taças e cálices com desenhos em alto relevo usados na páscoa e ano novo judaicos.

Uma noite acordei com um som que, a princípio, pensei vir da rua. Pulei da cama e pela janela do quarto vi uma lua cheia, redonda e brilhante no céu noturno. Percebi então que o som vinha da caixinha de música e corri para a sala. Uma claridade prateada iluminava a cristaleira onde a pequena bailarina dançava rodeada pelos alegres bibelôs. Estes se movimentavam graciosamente ao som da música e as damas e os cavalheiros de louça pareciam felizes com a novidade. Permaneci extasiada com aquela visão e me senti transportada para uma esfera mágica além do real.

De manhã contei ao papai o que aconteceu à noite. Estava radiante e ofegante. Ele me ouviu em silêncio e logo achou uma explicação, com sua voz mansa e pausada. A corda deve ter se soltado e a trepidação fez os bibelôs se mexerem, argumentou. – Mais tarde dou uma olhadinha na engrenagem, disse, balançando minhas trancinhas arrumadas para ida à escola.   

Os anos se passaram, trocamos de casa e de bairro, o mobiliário antigo substituído por outro mais contemporâneo. Uma tarde, vendo papai em sua poltrona preferida, absorto nas páginas de um livro, me lembrei dos bibelôs que dançavam e compreendi como papai foi sábio e generoso. Isso porque em nenhum momento ele questionou minha história, opinando que poderia ser fruto da minha imaginação ou simplesmente um sonho. Nem tampouco considerou que fosse um engano ou uma bobagem de criança.  Eu tinha oito anos, era uma menina tagarela e inquieta. Papai ouviu o que eu disse e atencioso procurou uma resposta dentro da lógica de um adulto.

Apesar disso, durante um bom tempo eu tive a grata sensação de que os bibelôs encantados, de maneira extraordinária e inexplicável, talvez sentindo o imenso amor que eu tinha por eles, ganharam um breve sopro de vida e, sob a noite enluarada, dançaram radiantes na cristaleira. Dois anos depois, para meu desalento, os três ornamentos não resistiram às mãos pesadas dos carregadores do caminhão de mudanças. Papai ainda tentou colar as pequenas figuras, mas sem sucesso porque alguns pedacinhos se perderam.

Restou solitária a dançarina na caixinha de música que sobreviveu mais alguns anos até que a ferrugem corroeu o mecanismo da corda e os pinos que a sustentavam. Da loja, enfim, não sobrou nenhum bibelô para dar vida à nova cristaleira, agora de madeira em tom vinho e embutida na parede.  

Porém, afortunadamente, a sensação de magia, acompanhada da alegria e entusiasmo tão próprios do mundo infantil, não se perdeu nos intrincados ramais do tempo. Muitas noites, quando o vagão da memória me leva à singular figura de meu pai e à extraordinária loja de bibelôs encantados, fecho os olhos devagar e me entrego, em devaneio, a esses felizes instantes de fantasia, saudade e gratidão.