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quarta-feira, 5 de julho de 2017

Em uma manhã de 2029

 / a partir do relato de um estranho no bar / 

 Sheila Sacks  / 

Em pé, exalando a lavanda, Dona Edite aproxima o rosto do espelho. “Até que estou arrumadinha”, avalia satisfeita com o que vê. Levando em conta as estripulias do tempo, o resultado não era de todo ruim. Afinal, aquele olhar azul celeste de galantes elogios permanecia irretocável. Ou quase. Sorri complacente com a idade, as rugas e os cabelos estriados de branco. Por alguns segundos aprecia os novos óculos de armação coral e num galanteio maroto pisca o olho esquerdo, alegre com o dia que a espera.


Vai à cozinha e encontra Letícia, descalça e de short desfiado, limpando a prateleira mais alta do armário.  Vou ao banco avisa.  A jovem, de pouco mais de 18 anos, move a cabeça sem retirar os minúsculos fones encaixados nos ouvidos. Empoleirada na escada, repara que a patroa está de vestido florido, rosto empoado, batom vermelho e bolsa branca a tiracolo. “Dia de pagamento, dia feliz...” cantarola, com o som dos acordes sertanejos que zunem em seus ouvidos. A velha senhora se apruma, encolhe a barriga, acena com a mão e sai porta afora.


Alcançando a rua, ela anda por mais de dez minutos até chegar ao seu destino. Transeuntes rumo ao trabalho misturam-se a banhistas de sandálias, idosos de andar trôpego, donas de casa com sacolas de supermercado, um punhado de gente diversa apinhada nas esquinas. Da praia sopra um vento brejeiro que desarranja os cabelos de quem anda pela avenida principal


Já no interior do banco, dona Edite se alinha na fila dos idosos e observa o atendente, um de seus preferidos. ‘Melhor assim’, pensa. O jovem gorducho, como de hábito, trata-a com uma cordialidade que a deixa encabulada. Ao final, despede-se com um inebriante “até a próxima, minha linda de olhos azuis“, carinho verbal que tem o dom de afoguear seu rosto, revolver os sentidos, confundir a mente. Tal qual uma adolescente, deixa-se levar pelo encantamento, esbarrando na porta giratória sob o olhar impessoal do segurança.

 

2

 

De volta ao apartamento dona Edite liga para o taxista. Em sua bolsa as notas dobradas já tinham sido contadas. Vamos para o outro lado da cidade, seu Antônio informa satisfeita, ajeitando-se no interior do táxi.


O veículo contorna a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas e em uma das curvas a velha senhora se surpreende com a visão de meia dúzia de garças perfiladas sobre um estrado à beira do espelho d’água. Entre nuvens, o sol acanhado parece navegar para outras paragens. O táxi atravessa as extensas galerias do túnel Rebouças que desemboca no outro lado da cidade, onde nuvens mais escuras já sombreiam o céu. “Dia de pagar promessa”, associa a velha senhora apalpando o inseparável guarda-chuva no fundo da bolsa.


Pela segunda vez dona Edite repete o longo trajeto de Copacabana ao bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para cumprir a promessa assumida pelo pronto restabelecimento de uma prima muito querida. Iria doar três salários mínimos para uma creche mantida por uma dessas organizações sociais de ajuda ao próximo. O valor poderia parecer exorbitante para uma professorinha pública aposentada, mas dona Edite tinha a vantagem de ser viúva de um procurador da República.

 

Entorpecida pela viagem e pelos pensamentos, ela fecha os olhos. “O tempo corre como o táxi de seu Antônio”, matuta de forma vaga, perdida entre as fronteiras do consciente e do sono. Sorri ao lembrar a garotada da creche. “No Natal vou comprar uns brinquedinhos”, decide, enquanto o carro se embrenha pelo cenário desconhecido do subúrbio.


Um tempo depois o táxi diminui a velocidade e estaciona em uma esquina que parece desabitada. A rua silenciosa avança por dezenas de metros até uma pequena praça, ao fundo, de terra batida.  Casas de aparência diversas, com fachadas mal cuidadas ou parcialmente reformadas se seguem, uma após outra, sem guardar similaridade. Das calçadas irregulares irrompem raízes de amendoeiras centenárias cujos galhos e ramagens avançam sobre os paralelepípedos das ruas por onde os raros veículos transitam. Dona Edite olha a paisagem melancólica que traz à tona remendos de uma infância aflita e reprimida.

 

A senhora trouxe o endereço, dona Edite? pergunta o motorista olhando ao redor. Estou na dúvida sobre a rua. Abrindo a bolsa, dona Edite procura o papel onde anotou o endereço. Tinha esquecido em cima da cômoda. Não se preocupe, seu Antônio, é aqui mesmo afirma.  No céu, as nuvens se acumulam. Não vou demorar. Tome um cafezinho por minha conta e volte daqui a meia-hora.  À frente, o muro alto esconde a creche.

 

3


Encimado por pontudos cacos de vidros, o muro de cimento é um desafio a possíveis intrusos. Dona Edite toca a campainha já antevendo o abraço afetuoso da risonha auxiliar. Enquanto espera, alça a vista para o horizonte recortado pela admirável estrada suspensa do teleférico que se estende sobre o conjunto de favelas do Alemão, uma cidadela fortificada e inexpugnável. Atravessando as várzeas e os pontos altos dos morros apinhados de casas aboletadas umas sobre as outras, dezenas de pequenas gôndolas envidraçadas deslizam pelos cabos de aço suspensos por gigantescos pilares em um vai e vem contínuo entre as estações construídas sobre os platôs. Mais uma vez dona Edite se surpreende com a visão daquela obra de engenharia realizada há duas décadas.

 

Postada na calçada, pressiona mais uma vez o artefato eletrônico instalado na frente do muro. A demora em abrirem o portão sugere algum defeito no aparelho, imagina. O táxi há muito tinha sumido em uma curva em direção à avenida. Finalmente o portão é aberto e um sujeito de boca murcha, cabelos ralos e com as roupas sujas de massa e tinta assoma à soleira.

 

A creche está em obra, madame , apressa-se em explicar. E emenda: Só volta a funcionar na semana que vem. Dona Edite sente que a bexiga fraca dá sinais preocupantes. De supetão ela cruza o portão sem dar tempo ao homem de impedi-la. Preciso usar o toalete. É rapidinho e sei o caminho vai dizendo enquanto aperta o passo. Mas logo sente uma pressão violenta na nuca e se dá conta de que o homem a arrasta para o interior da casa. É largada em frente a uma enorme cratera escancarada no centro da sala. Homens de torsos nus empilham sacos de entulho trazidos do fundo do buraco que se alonga em um túnel por debaixo da casa. Outros cavam a terra dura e escura. Atônita, dona Edite percebe alguns homens fardados. Um deles se aproxima, o rosto oculto por uma touca de malha. Das fendas do gorro, dois olhos cinzentos e frios a avaliam. Deje la bolsa acá ordena. O portunhol range na voz cavernosa do gigante. Ele usa coturnos emborrachados e colete à prova de balas. Aponta o banheiro. Adelante, vá.

 

4


No estreito e comprido banheiro dona Edite se vê sem os documentos, dinheiro, celular, relógio e sua inseparável sombrinha. A bolsa revirada e confiscada. Tenta entender o que acontece. O susto a leva imaginar que a polícia realiza uma operação sigilosa, talvez algo relacionado com o aparato do disque-denúncia. Já alguns anos o instrumento para capturar criminosos se transformou em algo temido pela população. Detenções aconteciam no meio da noite, sem acusação formal.


Cerra os olhos e revê o enorme mapa das favelas do Alemão, ampliado e riscado ocupando uma das paredes da sala. Apesar do sobressalto notou grandes círculos pintados de vermelho ao redor dos pilares do teleférico. Ensaboando nervosamente as mãos, o coração dispara. Detectaram problemas de estrutura nos pilares, reflete, ou pior, se preparam para explodir o teleférico, delira. A data grifada no mapa, 11 de setembro, a remete para o atentado histórico contra as torres gêmeas de Nova York, no início do século. Ameaças de atentados reforçavam a segurança nos Estados Unidos, lembrou a reportagem na TV exibida há alguns dias. Confusa e dominada pelo terror, dona Edite sente que os pensamentos se embaralham em sua cabeça.

 

Tomada pela ansiedade anda por minutos pelo apertado espaço entre o chuveiro e a pia. Exausta, calcula que está encerrada naquele cubículo há mais de uma hora. ”Seu Antônio deve estar longe”, admite. “Afinal, quem em sã consciência faria a besteira que eu fiz? Que se urinasse nas calcinhas, ora pitombas!”, culpa-se mortificada.

 

Em parte, dona Edite não está longe da realidade. O taxista havia retornado cinco minutos após o horário combinado. Ao não avistar a velha senhora na calçada, fica apreensivo. Toca a campainha várias vezes. Estranha o silêncio na casa e a ausência da passageira. Insisti, bate no portão, grita o nome de dona Edite. Irritado volta ao carro e liga para o celular de sua cliente. A resposta vem em forma de gravação: “Fora de área, ligue mais tarde”.  Pelo retrovisor vê ao longe, perto da pracinha, um homem encostado em uma moto. Desiste de esperar. Guarda o celular, aciona o motor e se põe a caminho. Alguns metros mais adiante, em sentido contrário, uma patrulha motorizada da polícia faz a ronda em baixa velocidade. Seu Antônio fala com os seus dois ocupantes, aponta a casa e parte em direção à avenida principal na esperança tardia de encontrar a passageira sumida.

 

5


Confinada no banheiro e completamente sem ação, dona Edite se deixa ficar abandonada sobre o tampo do vaso sanitário. Sons confusos e amortecidos pelas paredes vão ganhando contornos esquisitos em sua cabeça. Pessoas discutem, as vozes alteradas pela agitação e a raiva. Escuta xingamentos, gritos, urros de dor e o que parece ser uma movimentação de luta. Súbito, a porta é aberta com um estrondo de ferragens partidas e um homem é empurrado violentamente banheiro adentro. Ele bate com a cabeça no piso de ladrilhos.

 

 

Não faça isso, por Deus, colombiano , implora o homem com a voz engasgada. Em resposta, rajadas de metralhadora desfolham o seu peito que se rompe como um vulcão em erupção. Uma larva gosmenta tinge o morto de vermelho. Ninguna palabra, mujer , ordena o justiceiro mirando a mulher petrificada. A touca suja de sangue é jogada ao chão e com a mão faz um sinal inesperado para segui-lo. Dona Edite percebe que as pernas estão imobilizadas pelo terror. O gigante de botas se afasta e a velha senhora ganha fôlego e  se joga sobressaltada em direção à porta tropeçando sobre os pedaços do morto que estranhamente se contorcem em convulsões.

 

Desordenada, ela se depara com a carnificina, o vestido florido empapado de sangue. Atravessa alucinada a sala onde corpos se espalham pelo chão. Gritos e batidas vindos do buraco tampado por pedras a confundem. Uma nuvem de calor e fumaça se eleva do chão e ela se desespera. O homem corre para o fundo do quintal e com precisão e agilidade afasta os móveis empilhados que escondem uma portinhola que se abre para o terreno baldio de uma rua próxima. Fora da casa, dona Edite por um instante tem a impressão de que a cabeça vai explodir. De repente ela ouve o ronco estridente de uma motocicleta que vem em sua direção. Travada pelo medo, as pernas não a obedecem. O colombiano acelera em seus calcanhares. Detrás bufa o desconhecido em fuga, respingando saliva e indicando a garupa da motocicleta. A velha senhora é arrancada do solo por um braço pesado como um trator. Ela se agarra à cintura do homenzarrão que a joga como um saco de roupa suja sobre o assento maltratado. A máquina saracoteia e ganha velocidade.

 

Fogo! berra alguém no fundo da rua. Dona Edite escuta, atrás de si, duas violentas explosões e o estrondo de uma casa vindo abaixo. Um furacão de poeira move-se velozmente sobre a rua. O colombiano faz uma manobra arriscada e, por alguns segundos, se detém a olhar os escombros da creche abraçada pelas chamas e rolos de fumaça.

 

6

 

Já na avenida principal, ziguezagueando entre os carros, o bandido se lança para o complexo do Alemão, em um itinerário de incerteza e medo. Logo, dona Edite percebe que estão sendo seguidos. O colombiano acena para o comparsa na moto a pouca distância e este faz um sinal indicando que está tudo bem.

 

Alguns metros acima da entrada da favela, em um estreito descampado, a velha senhora avista o incêndio lá embaixo e a confusão que se formou. Pessoas deixando as suas casas, outras acorrendo ao local, curiosos já amontoados em frente à creche destruída. Uma viatura dos bombeiros atravessa a rua na contramão com a sirene ligada. Ao lado dos escombros um carro da polícia está em chamas.

 

Equilibrando-se na garupa, dona Edite sente uma fisgada no peito quando o bandido se desvia de uma carroça de bananas e a moto ameaça derrapar. A boca está seca, a cabeça lateja e os braços e pernas parecem entorpecidos. Olha para o alto e percebe que os bondinhos do teleférico estão parados. Passageiros contrariados saltam nas estações.
Tá pegando fogo lá na creche da rua das margaridas grita o garoto para a mulher na janela que solta uma gargalhada estridente. Os dois motoqueiros aceleram e se enveredam pelas ruelas estreitas e íngremes, desviando-se de restos de comida, latas de cerveja, garrafas e pneus. Cachorros soltos, porcos e gatos famintos perambulam por entre roupas estendidas em varais improvisados em meio a criançada que corre pelas vielas sem ter o que fazer. A poucos metros do topo da favela, uma saraivada de tiros interrompe a corrida. As motos rodopiam, estatelam-se no barro e seus ocupantes rolam pelo matagal. 

 

Dona Edite tem a queda amortecida pela copa de uma árvore e cai sobre os restos de um colchão imundo misturado ao lixo acumulado. Tenta se levantar a procura de um lugar para se esconder. Um corpo cai ao seu lado, vísceras à mostra. O sangue espirra em seu

rosto e ela fecha os olhos espavorida.  A cabeça dói e um fiapo de líquido quente escorre pela face e pescoço. Um homem ensanguentado grita de dor e fúria. Nas lajes, a céu aberto, um pelotão de bandidos varre o espaço com as metralhadoras.


Desesperada, ela se arrasta até um beco próximo. Espreme-se em um vão entre alguns casebres e deixa o corpo exaurido cair ao chão. Os pés inchados dentro dos tênis sujos de lama a enojam. O chão barrento exala forte fedor de urina. Seus lábios balbuciam a oração dos aflitos até o cansaço, o medo e a desesperança silenciá-los. Adormece e quando novamente abre os olhos as luzes mortiças de algumas lâmpadas pintam a escuridão. Levanta-se com dificuldade, sob o olhar curioso de um menino que parece observá-la há algum tempo. Como eu chego à estação do teleférico?, pergunta dona Edite. O vestido florido virou um trapo amarfanhado e ela tem consciência de sua figura patética.  O garoto de pouco mais de seis anos chupa os dedos e leva alguns segundos até apontar a localização da estação, um pouco abaixo de onde estavam.

 

No interior da gôndola a velha senhora é a única passageira. São quase 10 horas da noite e o bondinho completa seu último trajeto até a avenida. A gigantesca favela parece envolta em um falso silêncio de espreita, a ressonar como um paquiderme em vigília. A viagem se estende por intermináveis quinze minutos até a linha férrea. Desorientada, ela avista um táxi e solta um berro esganiçado. Joga-se no assento do carro e antes mesmo de dizer para aonde vai, põe-se a soluçar. O taxista nota as condições deploráveis da mulher e aguarda alguns segundos. Pergunta o que aconteceu. Dona Edite respira fundo e finalmente consegue articular as palavras. Me leva para a casa, pelo amor de Deus ! Em seguida, ainda aterrorizada pelos acontecimentos se afunda no estofado e leva a mão trêmula ao coração. Copacabana, por favor!

 

7


Em seu apartamento, dona Edite fecha as malas. A temporada em Fortaleza provavelmente será longa. A afilhada, residindo em uma base militar, longe dos parentes e às voltas com dois filhos pequenos, tinha ficado exultante com a novidade. Abatida, a velha senhora lembra mais uma vez a manhã seguinte à explosão da creche. Os jornais falavam de incêndio acidental na reforma do imóvel e apontavam a presença de botijões de gás, solventes e garrafas de álcool como agravantes. Seis corpos carbonizados tinham sido encontrados, sendo quatro deles dos operários da obra e de dois policiais em ronda pelo local que foram colhidos pelas explosões.

 

 Porém, não foram os enganos da notícia que a surpreenderam, nem tampouco o mau-humor e as perguntas de seu Antônio ao telefone. No dia seguinte, um pouco antes das onze da manhã, o interfone do prédio tocou e um motoboy apareceu com os documentos roubados. Ansiosa e perplexa, ela recebeu de volta a bolsa e os pertences intatos. O homem   estava abraçado a um arranjo de rosas vermelhas, envolto em papel celofane e arrematado por um laço dourado. A pessoa que achou seus documentos também envia

as rosas diz marcando as palavras.

 

A velha senhora se sobressalta ao lembrar o meio sorriso ameaçador do homem com o rosto encoberto pelo capacete. Corajosa, dona Edite sempre enfrentou as adversidades evitando se julgar vítima. O mundo não respeita os fracos, era o que dizia a si mesmo diante dos baques da vida. Dias depois, sentada em uma delegacia, dona Edite se apresenta como testemunha do incêndio da creche. O atendente anota seus dados e pede para retornar na semana seguinte.

 

Ansiosa, dona Edite passa os dias ensaiando o que vai falar. Na opressiva sala do delegado, um policial oferece um cafezinho. Dona Edita recusa assustada ao reconhecer a figura do colombiano. Logo em seguida, um sorridente delegado entra na sala e a cumprimenta afetuosamente. Dona Edite Rosa do Prado Fonseca Guedes, boa tarde! Espero que esteja bem acomodada. O homem alto, vestindo um terno escuro elegante, senta na confortável cadeira de couro. Mas, afinal, o que a senhora tem para me contar, dona Edite? indaga em tom didático. - Sou todo ouvidos! Seu olhar cruza com o do colombiano que permanece de pé, ao lado do armário. Quero igualmente saudá-la como a ilustre viúva do eminente procurador dr. Paulo José de Almeida Guedes, aliás, morto covardemente exercendo suas funções de caçador de bandidos de colarinho branco. Na época eu era estudante de Direito explica o delegado de uma forma aparentemente respeitosa. Dona Edite balbucia um “obrigada” antes de irromper em um choro abafado. Desculpe senhor delegado. Peço, por favor, para me liberar de qualquer depoimento implora, procurando a melhor maneira de se esquivar da armadilha que pressentia estarem armando contra ela. Pois é, dona Edite, a creche estava em obras há mais de três meses argumenta o delegado. O que exatamente a senhora fazia no local?

 

Dona Edite pede um pouco de água para tomar o remédio de pressão. O colombiano de imediato a atende com solicitude. Não tenho passado bem, senhor delegado. E minha cabeça às vezes falha justifica. Quero retirar qualquer testemunho e voltar para casa. Estou com 77 anos suplica.  Os dois homens a olham com uma espécie de piedade cínica. O delegado rasga uns papéis em cima da mesa e fica de pé. É a decisão mais inteligente, sem dúvida. Abraça carinhosamente a velha senhora. E com um perverso galanteio aliciador, encerra a conversa. Com esses olhinhos azuis a senhora ainda deve ser muito elogiada, acertei?  Já fora da delegacia, dona Edite faz o sinal da cruz e respira fundo. Suas pernas ainda tremem e o suor escorre do rosto.

 

8

 

Com a sinopse na mão, Rogério Reis, o veterano repórter das crônicas policiais, ouve as alterações sugeridas pela produção milionária do seriado “Missão Rio”, a ser exibido nas plataformas mundiais de TV. A começar pelo título: ao invés do atual “Dia de Pagamento”, algo mais impactante como “Terror no Alemão”. A cidade, nomeada como um dos destinos turísticos que mais despertam curiosidade nos viajantes, estava com uma agenda de grandes eventos e era preciso aproveitar o bom momento. A data emblemática de 11 de setembro e sua relação com o histórico ataque às torres gêmeas em Nova York, também envolveria uma mudança de foco. Trocavam-se as milícias e os comandos de drogas por organizações transnacionais envolvidas com tráfico de armas, minérios, sequestros, extorsões e roubo de fórmulas vacinais, químicas e nucleares. Também seria agregada ao roteiro uma rocambolesca perseguição policial pelas ruelas do Alemão, com helicópteros em voos rasantes sobre o teleférico.

 

Enquanto anota as modificações, Rogério Reis a princípio pensa em reagir e defender o texto original. Mas esse impulso dura apenas alguns instantes. Para todos os efeitos, o seriado seria uma coprodução internacional, passível de alterações visando uma melhor comercialização no mercado exterior. A globalização e a contemporaneidade iriam prevalecer sobre o regional, tinham alertado os produtores, visto que a série já tinha sido negociada para mais de 90 países em quatro continentes.


Os demais roteiristas da equipe, já familiarizados com as sutilezas e artimanhas de textualizar histórias de olho na audiência, tiveram suas sinopses pouco modificadas. Cada uma delas a enfocar as muitas maravilhas da cidade - do Pão de Açúcar, Corcovado, Floresta da Tijuca, Arcos da Lapa e Ponte Rio-Niterói, ao estádio do Maracanã e Complexo do Alemão – com muitas cenas de ação, mistério, crime, perigo, violência e paixão.

 

Finda a reunião, por instantes Rogério se sente um tanto deslocado com o ambiente de camaradagem e a própria visão do mundo daquela rapaziada talentosa e criativa que acolhiam, de uma maneira admiravelmente informal e despojada,  um sujeito retrô, pinçado nos estertores do século 20. Aos 65 anos, o jornalista chegava a sombria conclusão de que a redação de um jornal não mais correspondia ao sonho que o motivou por tanto tempo a se lançar em busca da verdade do fato. A geração de profissionais destemidos, e de certa forma idealistas em seus propósitos, estava acabada e enterrada.  O mundo havia mudado, a começar pelo clima do lado de fora da emissora gelada. Naquele bizarro fim de inverno, os dias se mostravam perversamente abafados, estranhamente secos e anormalmente inquietantes, varridos por ventos que uivavam ao entardecer.

 

9


À noite, da janela de seu quarto de celibatário, Rogério Reis admira a paisagem que se descortina majestosa. Aquele pequeno apartamento, no alto do histórico bairro de Santa Teresa, o tornava um homem feliz e era um dos poucos bens adquiridos em quase 40 anos de profissão. Estava animado como um adolescente com a perspectiva de trabalhar no texto e se integrar à irmandade dos jovens ficcionistas, seus irmãos de alma e imaginação.

 

Com cuidado abre a caixinha de madeira que mantém escondida no fundo de uma das gavetas do guarda-roupa e retira o dispositivo metalizado. Insere no antiquado laptop e mais uma vez fica estarrecido diante da quantidade de informações sobre o esquema e o poderio dos senhores do crime envolvidos no fracassado atentado de 2029. Lá estavam citados nominalmente chefões de grupos paramilitares, contraventores, narcotraficantes, policiais, empresários, políticos e conhecidas autoridades. A estratégia do ataque ao teleférico, detalhada nas várias etapas, diligentemente elaborada como uma operação de guerra. Uma reposta à presença nas favelas da recém- criada Força Urbana Nacional de Combate ao Crime.  

 

Nos dois últimos anos o jornalista tinha mantido segredo sobre o registro da operação terrorista que não se concretizou por um desses imbróglios do destino. O pen drive com detalhes do ataque lhe foi entregue às escondidas no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, semanas depois de um mal explicado incêndio em uma creche em obras perto do complexo do Alemão. Na ocasião, quatro dos mais importantes chefes das milícias e das facções criminosas mais temidas da cidade, já há algum tempo unificadas sob um comando central, foram assassinados em suas celas, dias antes da remoção para uma prisão federal em Rondônia.

 

Como cenas de flashback, o jornalista rememora o dia em que foi enviado pelo jornal para cobrir os assassinatos e a sangrenta rebelião que se seguiu. Sorrateiramente, um dos guardas havia lhe entregue o pen drive, logo após a entrevista coletiva do diretor do presídio. Na ocasião, descobriu que os mortos faziam parte do esquema do atentado ao teleférico e que um túnel subterrâneo tinha sido escavado a partir da creche até os pontos onde seriam colocados os explosivos. Entretanto, a inesperada presença de uma patrulha no local forçou a mudança de planos. A operação foi interrompida, os operários eliminados e a construção incendiada.

 

Se esses fatos tivessem chegado ao seu conhecimento em outros tempos, quando as editorias dos jornais eram menos dependentes dos conglomerados econômicos e não tão acorrentadas a interesses e compromissos inconfessáveis, Rogério Reis iria adiante, buscando mais informações. Assim havia conquistado expressivos prêmios de reportagens. Contudo, o medo e a sensação de impotência o sitiavam em um penoso cárcere interior. Sentia que o mundo tinha se fragmentado em fortificados cartéis manobrados por imperadores inatingíveis e insubmissos às leis vigentes. Todos conectados e interligados em organizações, grupos e facções. Mandarins de um submundo tentacular em que transitavam com naturalidade pelo legal e pelo ilícito, a salvos da pressão das mídias e redes sociais, agora monitoradas e cerceadas por um severo código de regras e multas imposto pelo Judiciário. Não havia mais os dois lados da moeda, dizia para si mesmo, porque a percepção do mal se tornou obsoleta.

 

 Fechando o armário, o jornalista empurra o minúsculo drive atolado de segredos para debaixo das camisas e meias. Seguiria com as suas aflições, que se por um lado o castigavam, por outro o impediam de desistir de si próprio. Todavia, entregava os pontos como profissional da notícia. No contexto social e político de 2029 revelar a verdade seria como assinar a própria sentença de morte, no sentido mais implacável do termo.

 

Animado com o novo trabalho, Rogério Reis entra pela madrugada reescrevendo a sinopse. Só percebe que o quarto ganha novos contornos com a réstia de luz que recorta o aposento. Vai até a geladeira e sorve alguns goles de mate pelo gargalo da garrafa. Por instantes se vê perdido entre o cansaço e a sonolência.  Tinha adormecido em frente à tela do laptop e precisava acordar para concluir o enredo. Mas o espelho da sala reflete a imagem real de um homem insone, com os cabelos desgrenhados e barba por fazer.


Sob a ducha gelada o jornalista bufa e solta impropérios, os músculos retesados pela friagem. Veste as surradas calças de brim, a camiseta branca de algodão, procura as sandálias de velcro embaixo da cama e aos poucos recupera a sanidade. Com os cabelos ainda molhados e a sinopse pronta na mochila, sai do apartamento e vai ao encontro dos produtores.

 

Fechados  os ajustes das principais cenas, o argumento é finalmente aprovado. Ainda com os nervos tensionados pelos debates, o jornalista agora tem certeza que seu episódio no seriado “Missão Rio” não fará feio perante os colegas.  E mais uma vez lembra a conversa um tanto louca que teve no bar perto da redação, tempos depois do atentado. O homem parecia meio bêbado e jurava que levou uma passageira para a fatídica casa que explodiu. Ao ver o crachá do jornalista, ele fica ainda mias falante e conta uma fantasiosa história de ameaças, medo, fuga e de um estranho buquê de rosas. Dona Edite era minha cliente há anos insistia o homem que se dizia taxista aposentado. Até hoje, nem a empregada sabe do seu paradeiro baixa a voz em tom de segredo.

 

Em casa, ele se dá duas semanas para costurar o enredo e desenvolver os diálogos. Mestre do jornalismo investigativo, Rogério Reis está determinado a afastar as brumas da apatia e da indiferença que obscureceram seus últimos anos como repórter e professor de jornalismo. Lamentava, nos longos domingos solitários, sua crescente incapacidade de incutir entusiasmo naqueles jovens universitários que sonhavam com uma profissão em que a busca da verdade era a força motriz da atividade.


Desfazendo-se das roupas, completamente nu, senta-se à frente do laptop. Por alguns segundos mantém a cabeça baixa, imóvel. Impulsivamente retira os óculos. Precisa de uma grande dose de inspiração e paixão para recriar a realidade de uma forma que não seja superficial e vã. Na adaptação acordada com a produção, a inusitada heroína setentona terá de enfrentar novos vilões. Pensa no homem do bar e na sua história de folhetim. Sorri interiormente ao imaginar dona Nenê, sua amada mãe, travestida de dona Edite. A homenagem tardia a única pessoa que o amou sem reservas e cobranças. Ele, o caçula rebelde de dona Nenê, agora viva e presente na pele de dona Edite.

 

Impaciente, dá um murro na mesa, como quisesse se apartar do sentimento de perda que sempre o acomete quando seus pensamentos se remetem à mãe, aquela figura pequena e de pouca fala que o acompanhou por mais de quatro décadas. Recoloca os óculos, respira fundo e se lança ao texto. Sente-se estranhamento leve, talvez porque liberto das pesadas amarras morais que a verdade impõe. Mas, nem por isso frívolo o bastante para não reconhecer que apesar da verdade cobrar um preço demasiado caro, como cobrou no imponderável ano de 2029, o tempo, a história e a experiência têm ensinado, de maneira incontestável, que segredos não são eternos.

 

10

 

De costas para a câmara, o personagem de Rogério Reis se lança ao trabalho.  Lentamente a zoom se afasta do homem e se desloca para a janela aberta, avançando em um sobrevoo fantástico pelas paisagens turísticas  do Rio. Os acordes atrevidos de uma melodia funk invadem a tela enquanto as imagens lentamente submergem em uma nuvem azulada.

 

Com demorados aplausos e assovios, a  plateia de universitários manifesta sua admiração pelo renomado escritor acomodado na cadeira de rodas. Aos 87 anos, José Tales sofre com a doença crônica que fragiliza seus pulmões. A polêmica obra “Em uma manhã de 2029” teve uma aceitação inédita, com várias edições e uma adaptação para o cinema. Ainda assim, foi com uma certa dose de esforço que o escritor atendeu o convite do reitor para conversar com os estudantes. A idade o havia transformado em um recluso impaciente com as pessoas.

 

Com a grata sensação de alívio escuta as últimas perguntas do encontro. Você é o personagem Rogério Reis? provoca a jovem de cabelos ondulados sentada no fundo do anfiteatro. E qual o motivo em ambientar a história em um tempo futuro? pergunta em seguida a colega ao lado.  O escritor faz uma pausa, antes de responder.   Fui por um bom tempo jornalista, trabalhando em reportagens sobre boa alimentação e bem estar. Rogério Reis, por sua vez, é um repórter investigativo da área policial explica. Um personagem dos muitos que criei. E confesso que sua empatia com os leitores não me surpreende, apesar de sua figura de anti-herói.

 

Um burburinho agita a plateia. Um rapaz franzino, de óculos de aros finos, solta a voz. E como explica a razão dessa empatia? Afinal, vivemos os tempos dos super-heróis! O autor faz um gesto com a mão para o jovem aguardar. Ainda respondendo à pergunta anterior sobre o tempo futuro, não acredito que faria alguma diferença Rogério Reis viver em 2018, quando escrevi a história, ou em 2029 − , afirma, levando o copo com água aos lábios. “Talvez porque provavelmente gostaria de estar vivo nessa data”, avalia em pensamento. E sem esconder o cansaço, o escritor observa o auditório lotado e a diversidade de pessoas, rostos e olhares concentrados em sua figura. Não quero parecer ingrato com um personagem que me deu tanto prazer em criar enfatiza, para o alento dos fãs que vieram prestigiá-lo. E levando as mãos ao coração, reforça. Assim como vocês, eu amo Rogério Reis, porque literatura é isso: as pessoas se vão e os personagens ficam finaliza.

 

Em casa, olhando o mar através da varanda envidraçada, José Teles está tranquilo. A ansiedade que o atormentou durante a maior parte da vida arrefeceu e aos poucos se extinguiu sem saudades. A diligente enfermeira que o acompanha desde o agravamento da doença traz os remédios.   Obrigado dona Edite. O que seria de mim sem a senhora? A mulher sorri e condescendente retruca. Já disse ao senhor que meu nome não é esse. O escritor parece absorto em algum pensamento. Vá lá, dessa vez passa diz, procurando iniciar uma conversa. Mas, José Teles já está longe abraçado ao passado, dessa vez à singular visão da professora do bê-a-bá da infância. Dona Edite, com seus vestidos floridos, bolsa a tiracolo e a inseparável sombrinha para os dias de chuva e de sol.

Pintura do artista novaiorquino Marcus Jansen