Em pé, exalando a lavanda, Dona Edite aproxima
o rosto do espelho. “Até que estou arrumadinha”, avalia satisfeita com o que
vê. Levando em conta as estripulias do tempo, o resultado não era de todo ruim.
Afinal, aquele olhar azul celeste de galantes elogios permanecia irretocável.
Ou quase. Sorri complacente com a idade, as rugas e os cabelos estriados de
branco. Por alguns segundos aprecia os novos óculos de armação coral e num
galanteio maroto pisca o olho esquerdo, alegre com o dia que a espera.
Vai à cozinha e encontra Letícia, descalça e de
short desfiado, limpando a prateleira mais alta do armário. − Vou ao banco − avisa. A jovem, de pouco mais de 18
anos, move a cabeça sem retirar os minúsculos fones encaixados nos ouvidos.
Empoleirada na escada, repara que a patroa está de vestido florido, rosto
empoado, batom vermelho e bolsa branca a tiracolo. “Dia de pagamento, dia
feliz...” cantarola, com o som dos acordes sertanejos que zunem em seus
ouvidos. A velha senhora se apruma, encolhe a barriga, acena com a mão e sai
porta afora.
Alcançando a rua, ela anda por mais de dez
minutos até chegar ao seu destino. Transeuntes rumo ao trabalho misturam-se a
banhistas de sandálias, idosos de andar trôpego, donas de casa com sacolas de
supermercado, um punhado de gente diversa apinhada nas esquinas. Da praia sopra
um vento brejeiro que desarranja os cabelos de quem anda pela avenida principal
Já no interior do banco, dona Edite se alinha na
fila dos idosos e observa o atendente, um de seus preferidos. ‘Melhor assim’,
pensa. O jovem gorducho, como de hábito, trata-a com uma cordialidade que a
deixa encabulada. Ao final, despede-se com um inebriante “até a próxima, minha
linda de olhos azuis“, carinho verbal que tem o dom de afoguear seu rosto, revolver
os sentidos, confundir a mente. Tal qual uma adolescente, deixa-se levar pelo
encantamento, esbarrando na porta giratória sob o olhar impessoal do segurança.
2
De volta ao apartamento dona Edite liga para
o taxista. Em sua bolsa as notas dobradas já tinham sido contadas. −Vamos para o outro lado da cidade, seu
Antônio − informa
satisfeita, ajeitando-se no interior do táxi.
O veículo contorna a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas e em uma das curvas a
velha senhora se surpreende com a visão de meia dúzia de garças perfiladas sobre
um estrado à beira do espelho d’água. Entre nuvens, o sol acanhado parece
navegar para outras paragens. O táxi atravessa as extensas galerias do túnel
Rebouças que desemboca no outro lado da cidade, onde nuvens mais escuras já sombreiam
o céu. “Dia de pagar promessa”, associa a velha senhora apalpando o inseparável
guarda-chuva no fundo da bolsa.
Pela segunda vez dona Edite repete o longo
trajeto de Copacabana ao bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para cumprir a
promessa assumida pelo pronto restabelecimento de uma prima muito querida. Iria
doar três salários mínimos para uma creche mantida por uma dessas organizações
sociais de ajuda ao próximo. O valor poderia parecer exorbitante para uma
professorinha pública aposentada, mas dona Edite tinha a vantagem de ser viúva
de um procurador da República.
Entorpecida pela viagem e pelos
pensamentos, ela fecha os olhos. “O tempo corre como o táxi de seu Antônio”,
matuta de forma vaga, perdida entre as fronteiras do consciente e do sono.
Sorri ao lembrar a garotada da creche. “No Natal vou comprar uns
brinquedinhos”, decide, enquanto o carro se embrenha pelo cenário desconhecido
do subúrbio.
Um tempo depois o táxi diminui a velocidade e
estaciona em uma esquina que parece desabitada. A rua silenciosa avança por
dezenas de metros até uma pequena praça, ao fundo, de terra batida. Casas
de aparência diversas, com fachadas mal cuidadas ou parcialmente reformadas se
seguem, uma após outra, sem guardar similaridade. Das calçadas irregulares irrompem
raízes de amendoeiras centenárias cujos galhos e ramagens avançam sobre os
paralelepípedos das ruas por onde os raros veículos transitam. Dona Edite olha
a paisagem melancólica que traz à tona remendos de uma infância aflita e
reprimida.
− A senhora trouxe o endereço, dona Edite? − pergunta o motorista olhando ao redor. − Estou na dúvida sobre a rua. Abrindo a
bolsa, dona Edite procura o papel onde anotou o endereço. Tinha esquecido em
cima da cômoda. − Não se
preocupe, seu Antônio, é aqui mesmo –
afirma. No céu, as nuvens se acumulam. − Não vou demorar. Tome um cafezinho por
minha conta e volte daqui a meia-hora. À
frente, o muro alto esconde a creche.
3
Encimado por pontudos cacos de vidros, o muro de
cimento é um desafio a possíveis intrusos. Dona Edite toca a campainha já
antevendo o abraço afetuoso da risonha auxiliar. Enquanto espera, alça a vista
para o horizonte recortado pela admirável estrada suspensa do teleférico que se
estende sobre o conjunto de favelas do Alemão, uma cidadela fortificada e
inexpugnável. Atravessando as várzeas e os pontos altos dos morros apinhados de
casas aboletadas umas sobre as outras, dezenas de pequenas gôndolas
envidraçadas deslizam pelos cabos de aço suspensos por gigantescos pilares em
um vai e vem contínuo entre as estações construídas sobre os platôs. Mais uma
vez dona Edite se surpreende com a visão daquela obra de engenharia realizada há
duas décadas.
Postada na calçada, pressiona mais uma vez
o artefato eletrônico instalado na frente do muro. A demora em abrirem o portão
sugere algum defeito no aparelho, imagina. O táxi há muito tinha sumido em uma
curva em direção à avenida. Finalmente o portão é aberto e um sujeito de boca
murcha, cabelos ralos e com as roupas sujas de massa e tinta assoma à soleira.
− A creche está em obra, madame − , apressa-se em explicar. E emenda: − Só volta a funcionar na semana que vem. Dona
Edite sente que a bexiga fraca dá sinais preocupantes. De supetão ela cruza o
portão sem dar tempo ao homem de impedi-la. − Preciso usar o toalete. É rapidinho e sei o caminho − vai dizendo enquanto aperta o passo.
Mas logo sente uma pressão violenta na nuca e se dá
conta de que o homem a arrasta para o interior da casa. É largada em
frente a uma enorme cratera escancarada no centro da sala. Homens de torsos nus
empilham sacos de entulho trazidos do fundo do buraco que se alonga em um túnel
por debaixo da casa. Outros cavam a terra dura e escura. Atônita, dona Edite
percebe alguns homens fardados. Um deles se aproxima, o rosto oculto por uma touca
de malha. Das fendas do gorro, dois olhos cinzentos e frios a avaliam. − Deje la bolsa acá − ordena. O portunhol range na voz
cavernosa do gigante. Ele usa coturnos emborrachados e colete à prova de balas.
Aponta o banheiro. –Adelante,
vá.
4
No estreito e comprido banheiro dona Edite se vê
sem os documentos, dinheiro, celular, relógio e sua inseparável sombrinha. A
bolsa revirada e confiscada. Tenta entender o que acontece. O susto a leva
imaginar que a polícia realiza uma operação sigilosa, talvez algo relacionado
com o aparato do disque-denúncia. Já alguns anos o instrumento para capturar
criminosos se transformou em algo temido pela população. Detenções aconteciam
no meio da noite, sem acusação formal.
Cerra os olhos e revê o enorme mapa das favelas
do Alemão, ampliado e riscado ocupando uma das paredes da sala. Apesar do
sobressalto notou grandes círculos pintados de vermelho ao redor dos pilares do
teleférico. Ensaboando nervosamente as mãos, o coração dispara. Detectaram
problemas de estrutura nos pilares, reflete, ou pior, se preparam para explodir
o teleférico, delira. A data grifada no mapa, 11 de setembro, a remete para o
atentado histórico contra as torres gêmeas de Nova York, no início do século.
Ameaças de atentados reforçavam a segurança nos Estados Unidos, lembrou a
reportagem na TV exibida há alguns dias. Confusa e dominada pelo terror, dona
Edite sente que os pensamentos se embaralham em sua cabeça.
Tomada pela ansiedade anda por minutos pelo
apertado espaço entre o chuveiro e a pia. Exausta, calcula que está encerrada
naquele cubículo há mais de uma hora. ”Seu Antônio deve estar longe”, admite.
“Afinal, quem em sã consciência faria a besteira que eu fiz? Que se urinasse
nas calcinhas, ora pitombas!”, culpa-se mortificada.
Em parte, dona Edite não está longe da
realidade. O taxista havia retornado cinco minutos após o horário combinado. Ao
não avistar a velha senhora na calçada, fica apreensivo. Toca a campainha
várias vezes. Estranha o silêncio na casa e a ausência da passageira. Insisti,
bate no portão, grita o nome de dona Edite. Irritado volta ao carro e liga para
o celular de sua cliente. A resposta vem em forma de gravação: “Fora de área,
ligue mais tarde”. Pelo retrovisor vê ao
longe, perto da pracinha, um homem encostado em uma moto. Desiste de esperar.
Guarda o celular, aciona o motor e se põe a caminho. Alguns metros mais
adiante, em sentido contrário, uma patrulha motorizada da polícia faz a ronda
em baixa velocidade. Seu Antônio fala com os seus dois ocupantes, aponta a casa
e parte em direção à avenida principal na esperança tardia de encontrar a passageira
sumida.
5
Confinada no banheiro e
completamente sem ação, dona Edite se deixa ficar abandonada sobre o tampo do
vaso sanitário. Sons confusos e amortecidos pelas paredes vão ganhando
contornos esquisitos em sua cabeça. Pessoas discutem, as vozes alteradas pela
agitação e a raiva. Escuta xingamentos, gritos, urros de dor e o que parece ser
uma movimentação de luta. Súbito, a porta é aberta com um estrondo de ferragens
partidas e um homem é empurrado violentamente banheiro adentro. Ele bate com a
cabeça no piso de ladrilhos.
− Não faça isso, por Deus, colombiano −, implora o homem com a voz engasgada. Em
resposta, rajadas de metralhadora desfolham o seu peito que se rompe como um
vulcão em erupção. Uma larva gosmenta tinge o morto de vermelho. − Ninguna palabra, mujer −, ordena o justiceiro mirando a mulher
petrificada. A touca suja de sangue é jogada ao chão e com a mão faz um sinal
inesperado para segui-lo. Dona Edite percebe que as pernas estão imobilizadas
pelo terror. O gigante de botas se afasta e a velha senhora ganha fôlego
e se joga sobressaltada em direção à porta tropeçando sobre os pedaços do
morto que estranhamente se contorcem em convulsões.
Desordenada, ela se depara com a
carnificina, o vestido florido empapado de sangue. Atravessa alucinada a sala
onde corpos se espalham pelo chão. Gritos e batidas vindos do buraco tampado
por pedras a confundem. Uma nuvem de calor e fumaça se eleva do chão e ela se
desespera. O homem corre para o fundo do quintal e com precisão e agilidade
afasta os móveis empilhados que escondem uma portinhola que se abre para o
terreno baldio de uma rua próxima. Fora da casa, dona Edite por um instante tem
a impressão de que a cabeça vai explodir. De repente ela ouve o ronco
estridente de uma motocicleta que vem em sua direção. Travada pelo medo, as
pernas não a obedecem. O colombiano acelera em seus calcanhares. –
Detrás − bufa o
desconhecido em fuga, respingando saliva e indicando a garupa da motocicleta. A
velha senhora é arrancada do solo por um braço pesado como um trator. Ela se
agarra à cintura do homenzarrão que a joga como um saco de roupa suja sobre o
assento maltratado. A máquina saracoteia e ganha velocidade.
−Fogo! − berra alguém no fundo da rua. Dona Edite escuta, atrás
de si, duas violentas explosões e o estrondo de uma casa vindo abaixo. Um
furacão de poeira move-se velozmente sobre a rua. O colombiano faz uma manobra
arriscada e, por alguns segundos, se detém a olhar os escombros da creche
abraçada pelas chamas e rolos de fumaça.
6
Já na avenida principal, ziguezagueando entre
os carros, o bandido se lança para o complexo do Alemão, em um itinerário de
incerteza e medo. Logo, dona Edite percebe que estão sendo seguidos. O
colombiano acena para o comparsa na moto a pouca distância e este faz um sinal
indicando que está tudo bem.
Alguns metros acima da entrada da favela,
em um estreito descampado, a velha senhora avista o incêndio lá embaixo e
a confusão que se formou. Pessoas deixando as suas casas, outras
acorrendo ao local, curiosos já amontoados em frente à creche destruída.
Uma viatura dos bombeiros atravessa a rua na contramão com a sirene ligada. Ao
lado dos escombros um carro da polícia está em chamas.
Equilibrando-se na garupa, dona Edite
sente uma fisgada no peito quando o bandido se desvia de uma carroça de bananas
e a moto ameaça derrapar. A boca está seca, a cabeça lateja e os braços e
pernas parecem entorpecidos. Olha para o alto e percebe que os bondinhos do
teleférico estão parados. Passageiros contrariados saltam nas estações.
− Tá pegando fogo lá na creche da rua das
margaridas − grita o
garoto para a mulher na janela que solta uma gargalhada estridente. Os
dois motoqueiros aceleram e se enveredam pelas ruelas estreitas e
íngremes, desviando-se de restos de comida, latas de cerveja, garrafas
e pneus. Cachorros soltos, porcos e gatos famintos perambulam por entre
roupas estendidas em varais improvisados em meio a criançada que corre pelas
vielas sem ter o que fazer. A poucos metros do topo da favela, uma saraivada de
tiros interrompe a corrida. As motos rodopiam, estatelam-se no barro e seus
ocupantes rolam pelo matagal.
Dona Edite tem a queda amortecida pela
copa de uma árvore e cai sobre os restos de um colchão imundo misturado ao lixo
acumulado. Tenta se levantar a procura de um lugar para se esconder. Um corpo
cai ao seu lado, vísceras à mostra. O sangue espirra em seu
rosto e ela fecha os olhos espavorida. A cabeça dói e um fiapo de líquido quente
escorre pela face e pescoço. Um homem ensanguentado grita de dor e fúria. Nas
lajes, a céu aberto, um pelotão de bandidos varre o espaço com as
metralhadoras.
Desesperada, ela se arrasta até um beco próximo.
Espreme-se em um vão entre alguns casebres e deixa o corpo exaurido cair
ao chão. Os pés inchados dentro dos tênis sujos de lama a enojam. O
chão barrento exala forte fedor de urina. Seus lábios balbuciam a
oração dos aflitos até o cansaço, o medo e a desesperança silenciá-los.
Adormece e quando novamente abre os olhos as luzes mortiças de algumas
lâmpadas pintam a escuridão. Levanta-se com dificuldade, sob o olhar
curioso de um menino que parece observá-la há algum tempo. – Como eu chego à estação do teleférico?, − pergunta dona Edite. O vestido
florido virou um trapo amarfanhado e ela tem consciência de sua figura
patética. O garoto de pouco mais de seis anos chupa os dedos e leva
alguns segundos até apontar a localização da estação, um pouco abaixo de onde
estavam.
No interior da gôndola a velha senhora é a
única passageira. São quase 10 horas da noite e o bondinho completa seu último
trajeto até a avenida. A gigantesca favela parece envolta em um falso silêncio
de espreita, a ressonar como um paquiderme em vigília. A viagem se estende por
intermináveis quinze minutos até a linha férrea. Desorientada, ela avista um
táxi e solta um berro esganiçado. Joga-se no assento do carro e antes mesmo de
dizer para aonde vai, põe-se a soluçar. O taxista nota as condições deploráveis
da mulher e aguarda alguns segundos. Pergunta o que aconteceu. Dona Edite
respira fundo e finalmente consegue articular as palavras. − Me leva para a casa, pelo amor de Deus !
Em seguida, ainda aterrorizada pelos acontecimentos se afunda no estofado e
leva a mão trêmula ao coração.−
Copacabana, por favor!
7
Em seu apartamento, dona Edite fecha as malas. A
temporada em Fortaleza provavelmente será longa. A afilhada, residindo em uma
base militar, longe dos parentes e às voltas com dois filhos pequenos, tinha
ficado exultante com a novidade. Abatida, a velha senhora lembra mais uma vez a
manhã seguinte à explosão da creche. Os jornais falavam de incêndio acidental
na reforma do imóvel e apontavam a presença de botijões de gás, solventes e
garrafas de álcool como agravantes. Seis corpos carbonizados tinham sido
encontrados, sendo quatro deles dos operários da obra e de dois policiais em
ronda pelo local que foram colhidos pelas explosões.
Porém, não foram os enganos da notícia que a
surpreenderam, nem tampouco o mau-humor e as perguntas de seu Antônio ao
telefone. No dia seguinte, um pouco antes das onze da manhã, o interfone do
prédio tocou e um motoboy apareceu com os documentos roubados. Ansiosa e
perplexa, ela recebeu de volta a bolsa e os pertences intatos. O homem
estava abraçado a um arranjo de rosas vermelhas, envolto em papel
celofane e arrematado por um laço dourado. − A pessoa que achou seus documentos também envia
as rosas − diz marcando as palavras.
A velha senhora se sobressalta ao lembrar
o meio sorriso ameaçador do homem com o rosto encoberto pelo capacete. Corajosa,
dona Edite sempre enfrentou as adversidades evitando se julgar vítima. O mundo
não respeita os fracos, era o que dizia a si mesmo diante dos baques da vida.
Dias depois, sentada em uma delegacia, dona Edite se apresenta como testemunha
do incêndio da creche. O atendente anota seus dados e pede para retornar na
semana seguinte.
Ansiosa, dona Edite passa os dias
ensaiando o que vai falar. Na opressiva sala do delegado, um policial oferece
um cafezinho. Dona Edita recusa assustada ao reconhecer a figura do colombiano.
Logo em seguida, um sorridente delegado entra na sala e a cumprimenta
afetuosamente.− Dona
Edite Rosa do Prado Fonseca Guedes, boa tarde! Espero que esteja bem acomodada.
O homem alto, vestindo um terno escuro elegante, senta na confortável cadeira
de couro. − Mas,
afinal, o que a senhora tem para me contar, dona Edite? − indaga em tom didático. - Sou todo
ouvidos! Seu olhar cruza com o do colombiano que permanece de pé, ao lado do
armário. − Quero igualmente
saudá-la como a ilustre viúva do eminente procurador dr. Paulo José de Almeida
Guedes, aliás, morto covardemente exercendo suas funções de caçador de bandidos
de colarinho branco. Na época eu era estudante de Direito − explica o delegado de uma forma
aparentemente respeitosa. Dona Edite balbucia um “obrigada” antes de irromper
em um choro abafado. −
Desculpe senhor delegado. Peço, por favor, para me liberar de qualquer
depoimento − implora,
procurando a melhor maneira de se esquivar da armadilha que pressentia estarem
armando contra ela. −Pois
é, dona Edite, a creche estava em obras há mais de três meses − argumenta o delegado. − O que exatamente a senhora fazia no
local?
Dona Edite pede um pouco de água para
tomar o remédio de pressão. O colombiano de imediato a atende com solicitude. − Não tenho passado bem, senhor delegado. E
minha cabeça às vezes falha −
justifica. − Quero
retirar qualquer testemunho e voltar para casa. Estou com 77 anos − suplica.
Os dois homens a olham com uma espécie de piedade cínica. O delegado
rasga uns papéis em cima da mesa e fica de pé. − É a decisão mais inteligente, sem dúvida. Abraça
carinhosamente a velha senhora. E com um perverso galanteio aliciador, encerra
a conversa. − Com esses
olhinhos azuis a senhora ainda deve ser muito elogiada, acertei? Já fora da delegacia, dona Edite faz o sinal
da cruz e respira fundo. Suas pernas ainda tremem e o suor escorre do rosto.
8
Com a sinopse na mão, Rogério Reis, o veterano repórter das
crônicas policiais, ouve as alterações sugeridas pela produção milionária do
seriado “Missão Rio”, a ser exibido nas plataformas mundiais de TV. A começar
pelo título: ao invés do atual “Dia de Pagamento”, algo mais impactante como
“Terror no Alemão”. A cidade, nomeada como um dos destinos turísticos que mais
despertam curiosidade nos viajantes, estava com uma agenda de grandes eventos e
era preciso aproveitar o bom momento. A data emblemática de 11 de setembro e
sua relação com o histórico ataque às torres gêmeas em Nova York, também
envolveria uma mudança de foco. Trocavam-se as milícias e os comandos de drogas
por organizações transnacionais envolvidas com tráfico de armas, minérios,
sequestros, extorsões e roubo de fórmulas vacinais, químicas e nucleares.
Também seria agregada ao roteiro uma rocambolesca perseguição policial pelas
ruelas do Alemão, com helicópteros em voos rasantes sobre o teleférico.
Enquanto anota as modificações, Rogério Reis a princípio
pensa em reagir e defender o texto original. Mas esse impulso dura apenas
alguns instantes. Para todos os efeitos, o seriado seria uma coprodução
internacional, passível de alterações visando uma melhor comercialização no
mercado exterior. A globalização e a contemporaneidade iriam prevalecer sobre o
regional, tinham alertado os produtores, visto que a série já tinha sido
negociada para mais de 90 países em quatro continentes.
Os demais roteiristas da equipe, já
familiarizados com as sutilezas e artimanhas de textualizar histórias de olho
na audiência, tiveram suas sinopses pouco modificadas. Cada uma delas a enfocar
as muitas maravilhas da cidade - do Pão de Açúcar, Corcovado, Floresta da
Tijuca, Arcos da Lapa e Ponte Rio-Niterói, ao estádio do Maracanã e Complexo do
Alemão – com muitas cenas de ação, mistério, crime, perigo, violência e paixão.
Finda a reunião, por instantes Rogério se sente um tanto
deslocado com o ambiente de camaradagem e a própria visão do mundo daquela
rapaziada talentosa e criativa que acolhiam, de uma maneira admiravelmente
informal e despojada, um sujeito retrô, pinçado nos estertores do
século 20. Aos 65 anos, o jornalista chegava a sombria conclusão de que a
redação de um jornal não mais correspondia ao sonho que o motivou por tanto
tempo a se lançar em busca da verdade do fato. A geração de profissionais
destemidos, e de certa forma idealistas em seus propósitos, estava acabada e
enterrada. O mundo havia mudado, a
começar pelo clima do lado de fora da emissora gelada. Naquele bizarro fim de
inverno, os dias se mostravam perversamente abafados, estranhamente secos e
anormalmente inquietantes, varridos por ventos que uivavam ao entardecer.
9
À noite, da janela de seu quarto de
celibatário, Rogério Reis admira a paisagem que se descortina majestosa. Aquele
pequeno apartamento, no alto do histórico bairro de Santa Teresa, o tornava um
homem feliz e era um dos poucos bens adquiridos em quase 40 anos de profissão.
Estava animado como um adolescente com a perspectiva de trabalhar no texto e se
integrar à irmandade dos jovens ficcionistas, seus irmãos de alma e imaginação.
Com cuidado abre a caixinha de madeira que mantém escondida
no fundo de uma das gavetas do guarda-roupa e retira o dispositivo
metalizado. Insere no antiquado laptop e mais uma vez fica
estarrecido diante da quantidade de informações sobre o esquema e o
poderio dos senhores do crime envolvidos no fracassado atentado de 2029. Lá
estavam citados nominalmente chefões de grupos paramilitares, contraventores,
narcotraficantes, policiais, empresários, políticos e conhecidas autoridades. A
estratégia do ataque ao teleférico, detalhada nas várias etapas, diligentemente
elaborada como uma operação de guerra. Uma reposta à presença nas favelas da
recém- criada Força Urbana Nacional de Combate ao Crime.
Nos dois últimos anos o jornalista tinha mantido segredo
sobre o registro da operação terrorista que não se concretizou por um desses
imbróglios do destino. O pen drive com detalhes do ataque lhe foi entregue às
escondidas no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, semanas depois de
um mal explicado incêndio em uma creche em obras perto do complexo do Alemão.
Na ocasião, quatro dos mais importantes chefes das milícias e das facções
criminosas mais temidas da cidade, já há algum tempo unificadas sob um comando
central, foram assassinados em suas celas, dias antes da remoção para uma
prisão federal em Rondônia.
Como cenas de flashback, o jornalista rememora o
dia em que foi enviado pelo jornal para cobrir os assassinatos e a
sangrenta rebelião que se seguiu. Sorrateiramente, um dos guardas havia lhe
entregue o pen drive, logo após a entrevista coletiva do diretor do presídio.
Na ocasião, descobriu que os mortos faziam parte do esquema do atentado ao
teleférico e que um túnel subterrâneo tinha sido escavado a partir da creche
até os pontos onde seriam colocados os explosivos. Entretanto, a inesperada
presença de uma patrulha no local forçou a mudança de planos. A operação foi
interrompida, os operários eliminados e a construção incendiada.
Se esses fatos tivessem chegado ao seu conhecimento em
outros tempos, quando as editorias dos jornais eram menos dependentes dos
conglomerados econômicos e não tão acorrentadas a interesses e compromissos
inconfessáveis, Rogério Reis iria adiante, buscando mais informações. Assim
havia conquistado expressivos prêmios de reportagens. Contudo, o medo e a
sensação de impotência o sitiavam em um penoso cárcere interior. Sentia que o
mundo tinha se fragmentado em fortificados cartéis manobrados por imperadores
inatingíveis e insubmissos às leis vigentes. Todos conectados e interligados em
organizações, grupos e facções. Mandarins de um submundo tentacular em que transitavam
com naturalidade pelo legal e pelo ilícito, a salvos da pressão das mídias e
redes sociais, agora monitoradas e cerceadas por um severo código de regras e
multas imposto pelo Judiciário. Não havia mais os dois lados da moeda,
dizia para si mesmo, porque a percepção do mal se tornou obsoleta.
Fechando o armário,
o jornalista empurra o minúsculo drive atolado de segredos para debaixo das
camisas e meias. Seguiria com as suas aflições, que se por um lado o castigavam,
por outro o impediam de desistir de si próprio. Todavia, entregava os pontos
como profissional da notícia. No contexto social e político de 2029 revelar a
verdade seria como assinar a própria sentença de morte, no sentido mais
implacável do termo.
Animado com o novo trabalho, Rogério Reis entra pela
madrugada reescrevendo a sinopse. Só percebe que o quarto ganha novos contornos
com a réstia de luz que recorta o aposento. Vai até a geladeira e sorve alguns
goles de mate pelo gargalo da garrafa. Por instantes se vê perdido entre o
cansaço e a sonolência. Tinha adormecido
em frente à tela do laptop e precisava acordar para concluir o enredo. Mas o
espelho da sala reflete a imagem real de um homem insone, com os cabelos
desgrenhados e barba por fazer.
Sob a ducha gelada o jornalista bufa e solta
impropérios, os músculos retesados pela friagem. Veste as surradas calças de
brim, a camiseta branca de algodão, procura as sandálias de velcro embaixo da
cama e aos poucos recupera a sanidade. Com os cabelos ainda molhados e a
sinopse pronta na mochila, sai do apartamento e vai ao encontro dos produtores.
Fechados os ajustes das principais cenas, o argumento
é finalmente aprovado. Ainda com os nervos tensionados pelos debates, o
jornalista agora tem certeza que seu episódio no seriado “Missão Rio” não fará
feio perante os colegas. E mais uma vez lembra a conversa um tanto louca que
teve no bar perto da redação, tempos depois do atentado. O homem parecia meio
bêbado e jurava que levou uma passageira para a fatídica casa que explodiu. Ao
ver o crachá do jornalista, ele fica ainda mias falante e conta uma fantasiosa
história de ameaças, medo, fuga e de um estranho buquê de rosas. − Dona Edite era minha cliente há anos − insistia o homem que se dizia taxista aposentado. − Até hoje, nem a empregada sabe do seu paradeiro − baixa a voz em tom de segredo.
Em casa, ele se dá duas semanas para costurar o enredo e
desenvolver os diálogos. Mestre do jornalismo investigativo, Rogério Reis está
determinado a afastar as brumas da apatia e da indiferença que obscureceram
seus últimos anos como repórter e professor de jornalismo. Lamentava, nos
longos domingos solitários, sua crescente incapacidade de incutir entusiasmo
naqueles jovens universitários que sonhavam com uma profissão em que a busca da
verdade era a força motriz da atividade.
Desfazendo-se das roupas, completamente nu,
senta-se à frente do laptop. Por alguns segundos mantém a cabeça baixa, imóvel.
Impulsivamente retira os óculos. Precisa de uma grande dose de inspiração e
paixão para recriar a realidade de uma forma que não seja superficial e vã. Na
adaptação acordada com a produção, a inusitada heroína setentona terá de
enfrentar novos vilões. Pensa no homem do bar e na sua história de folhetim. Sorri
interiormente ao imaginar dona Nenê, sua amada mãe, travestida de dona Edite. A
homenagem tardia a única pessoa que o amou sem reservas e cobranças. Ele, o
caçula rebelde de dona Nenê, agora viva e presente na pele de dona Edite.
Impaciente, dá um murro na mesa, como quisesse se apartar
do sentimento de perda que sempre o acomete quando seus pensamentos se remetem
à mãe, aquela figura pequena e de pouca fala que o acompanhou por mais de
quatro décadas. Recoloca os óculos, respira fundo e se lança ao texto. Sente-se
estranhamento leve, talvez porque liberto das pesadas amarras morais que a
verdade impõe. Mas, nem por isso frívolo o bastante para não reconhecer que
apesar da verdade cobrar um preço demasiado caro, como cobrou no imponderável
ano de 2029, o tempo, a história e a experiência têm ensinado, de maneira
incontestável, que segredos não são eternos.
10
De costas para a câmara, o personagem de
Rogério Reis se lança ao trabalho. Lentamente a zoom se afasta do homem e
se desloca para a janela aberta, avançando em um sobrevoo fantástico pelas
paisagens turísticas do Rio. Os acordes atrevidos de uma
melodia funk invadem a tela enquanto as imagens lentamente submergem em uma
nuvem azulada.
Com demorados aplausos e assovios, a plateia de universitários manifesta sua admiração
pelo renomado escritor acomodado na cadeira de rodas. Aos 87 anos, José Tales sofre
com a doença crônica que fragiliza seus pulmões. A polêmica obra “Em uma manhã
de 2029” teve uma aceitação inédita, com várias edições e uma adaptação para o
cinema. Ainda assim, foi com uma certa dose de esforço que o escritor atendeu o
convite do reitor para conversar com os estudantes. A idade o havia
transformado em um recluso impaciente com as pessoas.
Com a grata sensação de alívio escuta as últimas perguntas
do encontro. − Você é o personagem Rogério Reis? − provoca a jovem de cabelos ondulados sentada no fundo do
anfiteatro. − E qual o motivo em ambientar a história em um tempo
futuro? − pergunta em seguida a colega ao lado. O escritor faz
uma pausa, antes de responder. − Fui por um bom tempo jornalista, trabalhando em
reportagens sobre boa alimentação e bem estar. Rogério Reis, por sua vez, é um
repórter investigativo da área policial − explica. − Um personagem dos muitos que criei. E confesso que sua
empatia com os leitores não me surpreende, apesar de sua figura de anti-herói.
Um burburinho agita a plateia. Um rapaz franzino, de óculos
de aros finos, solta a voz. − E como explica a razão dessa
empatia? Afinal, vivemos os tempos dos super-heróis! O autor faz um gesto com a
mão para o jovem aguardar. − Ainda respondendo à pergunta
anterior sobre o tempo futuro, não acredito que faria alguma diferença Rogério
Reis viver em 2018, quando escrevi a história, ou em 2029 − , afirma, levando o copo com água aos lábios. “Talvez porque
provavelmente gostaria de estar vivo nessa data”, avalia em pensamento. E sem
esconder o cansaço, o escritor observa o auditório lotado e a diversidade de
pessoas, rostos e olhares concentrados em sua figura. − Não quero parecer ingrato com um personagem que me deu
tanto prazer em criar – enfatiza, para o alento dos fãs
que vieram prestigiá-lo. E levando as mãos ao coração, reforça. − Assim como vocês, eu amo Rogério Reis, porque literatura é
isso: as pessoas se vão e os personagens ficam − finaliza.
Em casa, olhando o mar através da varanda envidraçada, José Teles está tranquilo. A ansiedade que o atormentou durante a maior parte da vida arrefeceu e aos poucos se extinguiu sem saudades. A diligente enfermeira que o acompanha desde o agravamento da doença traz os remédios. − Obrigado dona Edite. O que seria de mim sem a senhora? A mulher sorri e condescendente retruca. − Já disse ao senhor que meu nome não é esse. O escritor parece absorto em algum pensamento. − Vá lá, dessa vez passa − diz, procurando iniciar uma conversa. Mas, José Teles já está longe abraçado ao passado, dessa vez à singular visão da professora do bê-a-bá da infância. Dona Edite, com seus vestidos floridos, bolsa a tiracolo e a inseparável sombrinha para os dias de chuva e de sol.
Pintura do artista novaiorquino Marcus Jansen