por Sheila Sacks
Publicado no Correio do Brasil (Direto da Redação)
(Garcia Lorca, poeta e dramaturgo espanhol, fuzilado em 1936)
Dois dias antes das eleições americanas de 4 de novembro de 2008 - que consagraram Barack Obama como o primeiro negro a atingir à presidência dos Estados Unidos -, uma reportagem do “New York Times” destacava os exemplos de heróis do então candidato democrata Obama e de seu oponente, o republicano John McCain. Para ambos, o protagonista do livro “Por quem os sinos dobram”, o brigadista Robert Jordan, era a representação do homem honrado, generoso, determinado, altruísta, idealista e disciplinado. Ambientado na guerra civil espanhola (1936-1939), o romance de Ernest Hemingway (1899-1961) foi publicado em 1940 e é baseado em sua vivência como correspondente de guerra em Madri. O escritor trabalhava para a North American Newspaper Alliance (NANA), a mais importante agência de notícias à época.
Engajado
contra o fascismo que avançava na Europa (e que matou Garcia Lorca aos 38 anos,
em Granada), Hemingway acompanhou a saga dos voluntários das Brigadas
Internacionais (1937-1938) que combatiam pela república espanhola contra o
golpe militar liderado pelo general Francisco Franco, com o apoio de Mussolini
e Hitler. Estima-se que 35 a 40 mil estrangeiros de 53 países, grande parte
jovens de ideais socialistas (sendo 8 mil judeus), atenderam ao apelo do
presidente espanhol Francisco Largo Caballero (1869-1946), o primeiro sindicalista
a chefiar um governo na Espanha. Os brigadistas chegaram ao país no que seria o
derradeiro despertar da consciência coletiva antes da hecatombe nazista.
No
contato diário com os combatentes vindos dos Estados Unidos, o escritor lapidou
o personagem central de seu livro que para alguns pesquisadores tem o perfil do
judeu novaiorquino Irving Goff (1900-1989), capitão da Brigada Abraham Lincoln,
com 3,2 mil voluntários, e para outros se assemelha a Milton Wolff (1915-2008),
também um judeu de Nova York, o último comandante da brigada. Com 40% de seu
efetivo composto por judeus americanos, a Brigada Lincoln foi desmobilizada em
outubro de 1938 e perdeu 900 combatentes em solo espanhol.
Atrás das linhas inimigas
Mas,
quem de fato teria inspirado o herói de Hemingway? No cinema, Jordan foi vivido
pelo galã Gary Cooper, no filme de 1943, tendo como parceira Ingrid Bergman. Na
história, o personagem é um professor de espanhol especialista em explosivos,
americano do estado de Montana que se engaja na luta contra o fascismo através
das Brigadas Internacionais. Ele viaja à Espanha para se juntar aos
republicanos da Frente Popular que lutam contra os franquistas nacionalistas.
Sua missão é explodir uma ponte para evitar que as tropas inimigas cheguem à
cidade de Segóvia.
Em
artigo para o “New York Times”, o jornalista e escritor David Margolick ao
analisar a preferência de Obama e McCain pelo personagem de Hemingway, destaca
que o escritor jamais revelou em quem se baseou para construir o seu herói.
Sabe-se que ele conheceu em Madri um jovem professor da Universidade da
Califórnia, Robert Merriman, que tinha estudado economia em Moscou e pertencia
ao comando tático da Brigada Lincoln. Morto por tropas franquistas em 1938,
Merriman, porém, não era perito em explosivos e nem se infiltrava através das
linhas inimigas como Jordan fazia. Já Irving Goff atuava em operações de
guerrilha no território inimigo, explodindo pontes, ferrovias e linhas de
energia. Também Milton Wolff participava de situações perigosas e protagonizou
ações heróicas comandando batalhas sangrentas. Ambos os brigadistas eram judeus
e filiados ao Partido Comunista americano (Communist Party USA- CPUSA).
No
mesmo artigo (‘A Hemingway hero embraced by both sides’ – Herói de Hemingway é
adotado por ambos os lados, em tradução livre), Margolick cita Allen Josephs,
professor de literatura na Universidade de West Florida, ao assinalar que o
Jordan criado por Hemingway era um comunista, mas que mudou sua filiação para
“antifascista” depois da objeção de seu editor, Charles Scribner. Ainda de
acordo com Margolick, certamente não cairia bem, até em termos comerciais,
Hemingway tipificar seu herói como um judeu comunista nascido no Brooklyn,
ainda que essa fosse a realidade dos muitos americanos que ele encontrou na
Espanha.
Coragem elogiada
Em
1938, em uma reportagem sobre os brigadistas americanos, Hemingway descreve
Milton Wolff como um jovem de 23 anos, “alto como Lincoln, magro como Lincoln e
tão corajoso e tão bom soldado como aqueles que lutaram nos batalhões em
Gettysburg” (local da batalha que marcou o fim da guerra civil americana, em
1863, dando a vitória ao governo abolicionista de Abraham Lincoln). O escritor
ressalta a habilidade de Wolff, atestando que dos “nove comandantes dos
batalhões Lincoln, quatro morreram, quatro foram feridos e o nono era Milton
Wolff”. E reforça: “Ele está vivo e sem ferimentos pela mesma casualidade que a
passagem de um furacão deixa em pé uma alta palmeira.”
Wolff
conheceu Hemingway em Madri, em julho de 1937, quando esteve na cidade por um
período de folga. O encontro em um bar é descrito no seu livro de memórias
“Another Hill” (Outra Colina), de 1994. Meses depois, como comandante da
Brigada Lincoln, Wolff é fotografado ao lado do escritor e a foto ilustra a
primeira página do jornal americano judaico The
Forward (atualmente semanário), com
tiragem de 270 mil exemplares. Seu autor, o húngaro Robert Capa, freqüentava o
grupo de Hemingway e tornou-se um dos mais célebres fotógrafos de guerra da
primeira metade do século 20.
Conta-se
que até então a mãe de Wolff, em Nova York, ignorava que o filho lutava nas
Brigadas Internacionais. Nas cartas, ele dizia que trabalhava em uma fábrica na
Espanha para ajudar os combatentes republicanos. A foto, que correu o mundo e
foi replicada por centenas de revistas e jornais, mostra um jovem magro,
envergando uma farda, de semblante sério e com os cabelos escuros cobertos por
uma boina. Ele olha para baixo como querendo evadir-se da lente da câmera. Ao
seu lado, a imagem marcante de um Hemingway parecendo bem à vontade em sua
missão de reportar a guerra.
Ativista até o fim

O jornalista e escritor Jacinto
Antón, em artigo no “El Pais” – o maior jornal da Espanha – é incisivo acerca
do mítico comandante “El Lobo”, como Wolff era chamado por seus companheiros:
“Caiu um valente”, escreve o articulista no início da matéria (‘Milton Wolff,
el último comandante de la Brigada Lincoln’, em 08.01.2008). Antón observa que
a descrição que Hemingway fez sobre o brigadista ainda permanecia atual. Apesar
da idade, Wolff viajava à Espanha todos os anos para voltar a cruzar o rio Ebro
– como na guerra, perseguido pelos inimigos – e jogar flores em suas águas em
memória dos companheiros mortos, saudando-os com um “Salud, camaradas!”.
Em 2002, em visita a Barcelona, Wolff
afirmou que sua luta na Espanha foi voluntária e pessoal. “Tenho a Espanha em
meu coração. Este é o meu segundo país”, disse. Convidado a falar sobre a sua
experiência como brigadista, Wolff admitiu que ao lutar pela república
espanhola ele desafiou as leis dos Estados Unidos e se arriscou a perder a
própria nacionalidade.
Visão “aventureira”

Um dos biógrafos de Hemingway, o
jornalista Milt Machlin (1924-2004), afirma que o escritor teve longas
conversas com Goff, que em companhia de dois outros brigadistas, Willian
Alstrom e Alex Kunslich, formavam um grupo especial de guerrilha. Kunslich
havia desaparecido nas montanhas durante uma incursão por trás das linhas
inimigas e essa história chegou aos ouvidos de Hemingway. Criador das
expressões “Triângulo das Bermudas” e “o abominável homem das neves”, Machlin
foi correspondente da agência “France
Presse” e depois se dedicou a reportagens de aventura. Ele
viajou a Cuba para conhecer pessoalmente o seu biografado. O livro “The Private
Hell of Hemingway” (O inferno Privado de Hemingway) foi publicado em 1962.
Legião do Mérito
Com a Segunda Grande Guerra em curso,
Goff foi convidado por Milton Wolff, companheiro das brigadas, para trabalhar a
serviço da Inteligência Britânica, através da Agência de Serviços Estratégicos
(Office of Strategic Services – OSS), precursora da CIA. Comandada pelo general
William J.Danovan (o militar mais condecorado dos Estados Unidos), a agência
começou a funcionar em 1941, quando os americanos ainda não estavam envolvidos
oficialmente na Segunda Grande Guerra.
Goff aceitou a convocação e partiu
para o norte da África onde iniciou o treinamento de recrutas espanhóis para
habilitá-los nas operações atrás das linhas alemãs. Em 1943, é enviado à Itália
pelo general Danovan para preparar os voluntários italianos nas operações de
guerrilha contra tropas nazistas, no norte do país. Anos depois recebe a Legião
do Mérito (Legion of Merit –LOM), medalha militar das Forças Armadas dos
Estados Unidos, concedida àqueles que prestam serviços especialmente meritórios
à Nação. Ao falecer, em 1989, é sepultado no Cemitério Nacional de Arlington,
em Washington, onde os veteranos e militares mortos nas guerras são enterrados
com honras de Estado.
Causa coletiva

A
mesma opinião tem a historiadora Raquel Ibáñez Sperber, de origem espanhola e
que reside em Israel. Ela considera que o alto grau de antissemitismo presente
nos governos de direita na Europa dos anos 1930 constituiu um fator importante
para explicar a alta proporção de judeus (em torno de 20%) nas Brigadas
Internacionais. Responsável pela exposição que reuniu fotos, documentos e
objetos sobre os voluntários judeus das Brigadas Internacionais, em 2003, na
Universidade Hebraica de Jerusalém, Ibáñez destaca que diante do acordo
explícito do General Franco com a Alemanha hitlerista, judeus liberais da
classe “burguesa”, antes indiferentes, mostraram simpatia pela causa
republicana.
Voluntários de Israel
Além
dos judeus da Europa, das Américas e parte da África, as Brigadas também
contaram com voluntários judeus originários de Israel. Uma mostra instalada no
Museu de Eretz Israel (Terra de Israel) de Tel Aviv, em 2013, resgata a memória
desses combatentes esquecidos pelas páginas da história. A exposição intitulada
”From here to Madri” (De aqui para Madri) homenageia os 267 voluntários judeus
nascidos na antiga Israel sob o Mandato Britânico que combateram na guerra
civil junto aos republicanos espanhóis.
A
história desses brigadistas também é contada no documentário produzido em 2007
pelo israelense Eran Torbiner, intitulado “Madri before Hanita”, em alusão ao
kibutz Hanita, na Galileia. O filme expõe as críticas que esses jovens
receberam por colocarem a luta contra o fascismo na Espanha acima do projeto de
edificação de uma pátria na Terra Santa, ou seja, “Madri antes de Hanita”.
Tendo que combater, por um lado os ingleses colonialistas e por outro os árabes
que queriam destruí-los, foi grande o desagrado das lideranças judaicas com a
partida desses combatentes.

Homenagens na Espanha
Dois
anos depois (1988), em Madri, os brigadistas judeus mortos em combate na
Espanha ganharam uma lápide no cemitério de Fuencarral. Além dos nomes dos 15
combatentes (aos quais posteriormente se acrescentaram mais quatro), um texto
“In Memoriam” testemunhava: “Aqui jazem os voluntários judeus heroicamente
caídos em Madri, no transcurso da guerra civil espanhola em defesa da
liberdade. A vossa e a nossa.” Também em Barcelona a passagem dos brigadistas
judeus pela Espanha foi lembrada. Desde 1990, uma escultura em forma da
“Estrela de David” está instalada no cemitério de Montjuic, junto às lápides de
outros brigadistas e das vítimas da repressão franquista.
Em
1996, por ocasião dos 60 anos do início da guerra civil, 350 veteranos
remanescentes das Brigadas, a maioria com mais de 80 anos, voltaram a Madri,
convidados pelo governo espanhol. Na saudação, é citada a frase do escritor
Antonio Muñoz Molina, autor da obra “A Noite dos Tempos” (2009), centrada na
guerra civil espanhola: “Viajaram para um país que não conheciam dispostos a
perder, não somente a juventude, mas também, se fosse preciso, a sua vida em
defesa da liberdade.”
Esse
reconhecimento fica patente com o decreto real emitido naquele ano pelo qual os
brigadistas poderiam optar pela nacionalidade espanhola, ainda que tivessem de
renunciar a sua cidadania anterior. Restrição anulada em 2007 com a instituição
da “Lei de Memória Histórica” que concedeu a cidadania, sem imposições. A Lei
da Memória também abriu os documentos sigilosos da guerra civil e criou
mecanismos para a reparação moral e jurídica dos combatentes e dos perseguidos
da ditadura de Franco (regime que durou até a sua morte, em 1975).
De
acordo com o historiador alemão Carlos Collado–Seidel, especializado em
história espanhola, o golpe militar de 18 de julho de 1936 contra o governo
republicano não iria adiante sem os aviões de Hitler e Mussolini. As aeronaves
transportaram os milhares de soldados das tropas africanas do Protetorado espanhol
de Marrocos para lutarem ao lado dos franquistas. No livro “España, regufio
nazi” (2004), o historiador revela a afinidade ideológica e a comunhão de
interesses que uniram Franco a Hitler.
Estima-se
que Hitler enviou às forças franquistas 14 mil soldados alemães, centenas de
tanques, armamentos e mais de 700 aviões que formaram a “Legião Condor”. O
bombardeio à cidade basca de Guernica, imortalizado na pintura de Pablo
Picasso, foi executado pela força aérea alemã. A Itália de Mussolini também
colaborou com mais de 30 mil homens, tanques, armas e 660 aviões Do lado dos
republicanos, o apoio veio basicamente da União Soviética que enviou mil
aviões, 900 tanques, armamentos e instrutores. A Inglaterra, França e Estados
Unidos, alegando que o conflito se limitava ao território espanhol, se
desobrigaram de qualquer tipo de ajuda ou intervenção. Calcula-se que 400 mil
espanhóis morreram no conflito e mais 180 mil durante os anos de chumbo da
ditadura.
A
historiadora austríaca Renée Lugschitz estudou por quinze anos a guerra civil
espanhola e publicou a obra “Luchadoras en España: Mujeres extrajeras en La
Guerra Civil Española”, em 2012. Ela explica que um terço dos brigadistas
morreu nas frentes de batalha e aqueles que sobreviveram sofreram perseguição
política ao voltarem para seus países. “Um grande número acabou em campos de
concentração na França, mas outros terminaram em prisões comunistas após a
Segunda Guerra Mundial.” No Brasil,
dos 20 voluntários que decidiram lutar na Espanha, dois eram judeus de São
Paulo. Ernest Yosk e Wolf Reutberg, comunistas perseguidos pela ditadura de
Vargas, combateram na Espanha e morreram na Europa durante a Segunda Grande
Guerra. O primeiro em um campo de concentração na Alemanha e o outro fuzilado
pelos nazistas na França ocupada.
“Sentido à vida”
Correspondente
do “New York Times” na guerra civil espanhola, o jornalista americano Herbert
L. Mattews (1900-1977) tornou-se amigo de Hemingway em Madri. Ele ganhou
notoriedade internacional anos depois, em 1957, ao entrevistar com
exclusividade, em Sierra Maestra, o então guerrilheiro Fidel Castro que
comandava nas montanhas os grupos rebeldes na luta armada contra a ditadura de
Fulgencio Batista.
No
livro que publicou em 1973 sobre a sua vivência na guerra espanhola (“Half of
Spain Died: a reappraisal of the Spanish Civil War” – Metade da Espanha morreu:
uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola, em tradução livre), Mattews escreve
sobre os sentimentos que o animavam naqueles tempos: “Nada tão maravilhoso vai
me acontecer novamente como esses dois anos e meio que eu passei na Espanha.
Deu sentido à vida; incutiu coragem e fé na humanidade. Aqui eu aprendi que
homens podem ser irmãos e que nações, fronteiras e raças são apenas aparatos
externos.”
Saudando
os brigadistas que conheceu nesse período, o jornalista americano exaltou a sua
ligação emocional com essas pessoas. “Hoje, neste mundo, onde quer que eu
encontre um homem ou uma mulher que lutou pela liberdade na Espanha, eu
encontro uma alma gêmea. Nada vai quebrar esse vínculo, jamais. Lá, nós
deixamos nossos corações.”
