Por Sheila Sacks
“Posso resistir a tudo, exceto à tentação.” (Oscar Wilde, escritor e dramaturgo irlandês do século 19)
Esse artigo foi publicado no Observatório de Imprensa, em 02.09.2014 na edição 814 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed814_o_jornalista_que_espionava

Envolvido no escândalo de espionagem que mobilizou a mídia e a opinião pública alemãs, resultando em uma comissão parlamentar de inquérito, Dietl sempre negou que espionava ou fornecia informações contra os seus colegas de profissão, apesar de admitir que por onze anos foi um agente pago do serviço secreto alemão. Ele revela que seu trabalho consistia em coletar informações e recrutar agentes para o BDN, principalmente na região do Oriente Médio, e por conta disso ele se arriscou e enfrentou situações de perigo.
Em 2007, em uma longa entrevista ao jornalista israelense Yossi Melman, do jornal Haaretz, Dietl disse que foi cooptado para trabalhar no BDN por conta de um trabalho jornalístico que realizava em 1982 sobre o Afeganistão. Depois de um encontro com o porta-voz da agência em um subúrbio de Munique, onde fica a sede do BDN, ele foi convidado a trabalhar para o órgão colhendo informações e elaborando relatórios, mantendo, porém, a sua rotina de jornalista especializado em questões de geopolítica.

Experiência como correspondente
Anos antes de entrar para o serviço secreto, o jornalista alemão já tinha estado no Irã, acompanhando a Revolução Islâmica, e se encontrado com o aiatolá Khomeini. No Líbano, falou com o presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat (1929-2004), e com membros da organização fundamentalista Hezbollah. Durante a guerra do Afeganistão contra a ocupação soviética (1979-1989), Dietl posou ao lado do comandante rebelde Gulbuddin Hekmatyar, que se tornou primeiro-ministro do país na década de 1990 e depois se aliou ao movimento fundamentalista islâmico Taliban e à rede terrorista al-Qaida.
![]() |
Militantes da Irmandade Muçulmana |
Essas e outras incursões de Dietl pelo mundo muçulmano em ebulição, focalizadas em primeira mão nas reportagens que traziam os bastidores dos fatos e as palavras dos principais líderes envolvidos – deixando entrever a existência de uma agenda pessoal de contatos e fontes de informação superlativas –, provavelmente foram determinantes para o convite do BDN ao jornalista. Ele afirma que no início hesitou, mas que depois concordou com a proposta, imaginando que estaria servindo ao país.
O trabalho como jornalista funcionou como excelente cobertura, segundo Dietl, facilitando o seu acesso às informações e às pessoas, como no caso do jornalista sírio Louis Fares, amigo pessoal do presidente Hafez al-Assad (1930-2000). O político sírio que governou o país por quase 30 anos, pai do atual presidente Bashar al-Assad, enviou Fares em missões clandestinas à França e Dietl dá a entender que essa amizade e de outras fontes sírias lhe renderam importantes documentos sigilosos, os quais enviava para seus contatos na Alemanha.
No Líbano, Dietl manteve contato com fontes que se relacionavam com militantes do grupo Hezbollah e da Organização para Libertação da Palestina, a OLP. Ele conta que em Beirute ouviu relatos dessas fontes sobre o assassinato de Ali Hassan Salameh, um dos líderes da organização Setembro Negro, levado a termo por uma agente do Mossad, o serviço secreto israelense. Chefe operacional do atentado que matou onze atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972, Salameh foi morto em 1979, enquanto dirigia em uma rua de Beirute, após uma caçada que durou sete anos. Coube à agente conhecida como “Erica Chambers” acionar por controle remoto a bomba instalada na viatura. Dietl confessa que ficou fascinado pela história dessa agente secreta, inglesa de nascimento, que ingressou no Mossad aos 21 anos, quando estudava na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Espiões, inteligência e geopolítica
Durante o período em que foi agente secreto, Dietl amealhou o equivalente a cerca de 600 mil marcos (algo como R$ 1,8 milhão). Quando se desligou do BDN por divergências com o órgão, ele conta que até sentiu alívio, pois admite que estava com os “nervos em frangalhos”. Ele se reunia com terroristas, comandantes militares, representantes de serviços de inteligência e políticos na condição de correspondente, com a incumbência de escrever reportagens sobre os acontecimentos no Oriente Médio. Entretanto, o ofício paralelo de espionar em cidades como Teerã, Amã ou Damasco era desgastante do ponto de vista psicológico, já que Dietl se utilizava do recurso do suborno envolvendo funcionários oficiais para conseguir documentos e material de interesse da agência alemã.
![]() |
Execuções no Irã |
No início de 1982, chegou a ser detido pelas forças de segurança sírias na cidade de Hama, ao norte de Damasco, durante os sangrentos confrontos com o grupo da Irmandade Muçulmana, que se rebelou contra o governo central. Mas conseguiu escapar mostrando a seus interrogadores a gravação da entrevista que teve com o ministro de Informações do país e mentindo acerca de um suposto encontro agendado com o presidente Hafez Assad (que não pode ser checado porque o serviço de telefonia estava interrompido). Esse episódio na Síria e mais as constantes viagens de Dietl ao Oriente Médio em função de pesquisas que realizava sobre as organizações secretas do Islã para o livro Holy War (Guerra Santa), publicado em 1983, também foram decisivas para a sua proximidade com os oficiais do BDN. “Estou orgulhoso do que fiz”, declara Dietl. “Não tenho que pedir desculpas. Eu agi acreditando em valores e ideais; denunciei terroristas perigosos, abortando operações e salvando vidas humanas.”
Falando sobre a sua contratação pelo serviço secreto alemão em 1982, Dietl admite que os tempos mudaram. “Hoje, as organização de espionagem enviam os seus agentes a zonas de conflito sob o disfarce de jornalistas, o que não ocorreu comigo, pois eu era um jornalista de fato”, afirma. Suas memórias sobre esse período podem ser conferidas no livro Deckname Dali: als agente des BND im Nachen Osten (Codinome Dali: Relatórios de um agente do BDN, em tradução livre), lançado em 2007, dois anos após o seu segredo vir à tona. A esse respeito, o ex-correspondente da revista Time David Halevy não se mostra surpreendido com a proximidade de jornalistas com as agências de inteligência. Amigo de longa data de Dietl, Halevy nasceu em Jerusalém e por mais de quinze anos trabalhou na revista americana. Para ele, a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é muito turva. “O jornalista pode se achegar das fontes e pagar pelas informações sem levantar suspeitas”, avalia (“Cover Story”, Haaeretz Magazin, 14/8/2007).
![]() |
Mulheres presas no Egito |
![]() |
Prisão de Kermanshah (Irã) |
É o seu décimo oitavo livro e, como a maioria, versando sobre espiões, agências de inteligência e a geopolítica de guerra do Oriente Médio. Uma experiência que já o havia levado a escrever, em 1997, o livro Operation Eichmann: Pursuit and Capture (Operação Eichmann: Perseguição e Captura), em parceria com o agente do Shin Bet (o serviço se segurança de Israel) Zvi Aharoni (1921-2012). A obra detalha aspectos da localização e captura do oficial nazista Adolf Eichmann na Argentina, em 1960.
Amizade e segredos
No Brasil, o jornalista Claudio Tognolli, diretor-fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), professor da USP e autor de livros polêmicos (Mídia, Máfia e Rock and Roll; 50 anos a mil; Assassinato de reputações, entre outros), é incisivo ao traduzir o envolvimento do jornalismo com o ambiente da inteligência e espionagem. “Todo mundo que cobre inteligência tem algum amigo que trabalhou ou trabalha para CIA ou pra KGB.” Ex-correspondente da Folha de S.Paulo nos Estados Unidos, Tognolli também trabalhou na revista Veja. Em entrevista ao blog “Brasil no mundo”, de Fábio Pereira Ribeiro (Exame.com, em 20.03.2014), o jornalista fala de sua amizade com o delegado paulista Mauro Marcelo de Lima e Silva, formado no FBI, e nomeado por Lula, em 2004, para comandar a Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
Por conta dessa amizade, em 2006 ele foi convocado por Mauro para uma missão humanitária no Iraque, em parceria com a CIA, que acabou não se consumando por motivos pessoais (um colega do New York Times o alertou para o fato de que os sunitas o matariam ao verem seus braços e costas tatuados em hebraico). Ainda de acordo com Tognolli, antes de se tornar diretor-geral da Abin Mauro Marcelo era a sua melhor fonte, além de um grande amigo. “Mauro me contava segredos inacreditáveis”, relembra. “Eu sempre os enterrava. Mas repetia a ele: ‘Doutor, não me conta isso porque em jornalismo eu acato a frase do Oscar Wilde: ‘Posso resistir a tudo, exceto à tentação’.”
![]() |
Atentado ao prédio da Amia, em Buenos Aires |
Uma frase que se aplica de alguma forma à maioria das reportagens investigativas que se apoiam em documentos e dados de fontes sigilosas, na maioria das vezes obtidos no interior dos órgãos de governo. Um caminho sinuoso onde a amizade e a confiança mútuas flexibilizam regras e conceitos. Recentemente, O Globo publicou uma reportagem investigativa do jornalista José Casado acerca da conexão islâmica no Cone Sul que prima pelos detalhes das informações. A reportagem reconta os preparativos para os atentados à embaixada de Israel em Buenos Aires e ao prédio da Amia (Associação Mutual Israelita da Argentina), em 1992 e 1994. Casado expõe a fragilidade de atuação dos órgãos governamentais na Tríplice Fronteira e “a relutância dos governos da América do Sul em admitir a possibilidade de conexão regional com a novidade do terrorismo político-religioso em escala global” (“A Conexão Brasil no Extremismo Islâmico”, em 13/07/2014). Uma reportagem extraordinária, de leitura imperdível, melhor que qualquer relatório “confidencial” da CIA, reforçando a sensação de que a fronteira entre o jornalismo e a espionagem é uma questão de opinião.